O novo filme do cineasta iraniano Jafar Panahi, Taxi Teerã (Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim de 2015), narra os encontros entre o próprio diretor - improvisado como um gentil e insólito chofer de táxi que circula sem a autonomia e conhece mal as ruas de Teerã (como se a limitação de seu ir e vir o estivesse fazendo esquecer os logradouros públicos de sua cidade) - e seus supostamente fortuitos passageiros. Do ponto de vista de seu gênero, a obra é um objeto híbrido. Considerado como um falso documentário, ela também pode ser percebida como um road movie, um filme de esquetes (ainda que esse gênero apareça invariavelmente associado ao cômico), um documentário de ficção e, mais do que tudo, como um filme autobiográfico e político, o que ele realmente é. Destarte, além de apresentar um retrato crítico do Irã contemporâneo, cada esquete procura dialogar com um - ou alguns - dos filmes mais importantes da curta carreira de seu premiado diretor, sem esquecer de citar alguns episódios de sua atribulada vida pessoal. Mais do que um simples exercício narcísico, o cineasta procura fazer um breve panorama de sua obra, tentando impedi-la de cair no ostracismo (desejo das forças obscurantistas que governam seu país), mantê-la viva na mente de seus fãs (na medida em que, proibida, ela é pouco difundida) e revelar a sua atualidade.
A verve militante, política e crítica do diretor aparece em seu primeiro esquete. Através de uma discussão entre um homem do povo, com um discurso intuitivo de tendência conservadora, e uma mulher de classe média, com um raciocínio mais progressista, contextualizado e sociológico, o filme denuncia a barbaridade da pena de morte imposta pela lei islâmica (a sharia) e a banalidade com que ela é aplicada no país. Além de sua condenação veemente, a sequência revela a polarização e a cisão entre as classes sociais tornadas evidentes na eleição de 2009, quando o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad, apoiado pelas classes populares defensoras de seu governo religioso, populista e de linha dura, foi reeleito. Acusando-o de ter manipulado as eleições, os partidários do candidato da oposição, Mir Hussein Mussavi (candidato das elites econômicas e intelectuais), saíram às ruas para protestar (qualquer relação com algum país da América do Sul é mera coincidência). Acusados de desejarem depor o presidente, vários dos manifestantes foram presos e arbitrariamente condenados, incluindo Jafar Panahi, que desde então vive em regime de liberdade vigiada, sem poder filmar, dar entrevistas ou viajar para o exterior.
A caracterização dos dois personagens dessa sequência revela ainda a desigualdade existente entre homens e mulheres (que aparece também em outros esquetes). Enquanto o homem, irônico e provocador, veste roupas leves e sexs, e fala com a mulher como se a conhecesse há anos, esta última, que aparece vestida como uma religiosa, como obriga a lei islâmica, trata-o com respeito e distância. Toda essa sequência, que poder parecer ambígua e caricatural na medida em que representa o povo como ignorante e analfabeto político, parece revelar a irreconciliável fratura existente no país entre o povo e os intelectuais, entre os pobres e os remediados.
Um outro esquete mostra um vendedor de DVDs piratas como um revolucionário. Em uma sociedade fechada, com poucas ofertas de produtos culturais, o mascate falsário aparece como um resistente a ser valorizado. O cinema, mais do que qualquer outra arte, precisa circular, precisa ser visto para existir. Panahi presta uma homenagem àqueles que são os responsáveis pela circulação de seus filmes no território iraniano e denuncia a ineficácia da censura, cuja arbitrariedade serviria apenas para estimular a indústria da contrafação.
Logo após revelar o misticismo supersticioso que atingiria uma parte da população (em uma rápida história envolvendo peixes vermelhos e que serve de pretexto para citar seu primeiro filme, O Balão Branco) que, parece insinuar o cineasta, pode ser considerado como um dos responsáveis pela permanência da sharia, surge o esquete com a sua jovem sobrinha (a simpaticíssima, articulada e eloquente Hana Saídi, que recebeu o prêmio em Berlim, já que o cineasta não obteve autorização para viajar), cujo personagem lembra o da menina do filme de seu tio chamado O Espelho (1997). Proibido de falar (o que ele pouco faz durante todo o filme), o diretor transfere para a sua sobrinha a sua crítica sobre as condições da mulher e as aberrações da censura no país, que impõe aos cineastas argumentos, nomes e até a caracterização dos personagens, de forma a mascarar a realidade.
Na última parte de seu filme, o cineasta aborda um tema que aparece em várias outras obras, particularmente em O Círculo : a difícil condição das mulheres no Irã e, por extensão, em várias outras repúblicas islâmicas. O esquete apresenta a história de uma advogada ligada aos direitos humanos que é perseguida por defender a causa de uma jovem anglo-iraniana, Ghoncheh Ghavami, uma personagem real que, em 2014, decidiu burlar a lei que proibia mulheres de frequentarem os estádios. Presa ao tentar assistir um jogo de vôlei, ela foi condenada a um ano de prisão, mas agraciada em 2015. Sua luta e sua greve de fome não foram todavia em vão. A partir de 2015, as mulheres receberam a autorização para, sob certas condições, frequentar os estádios.
Esse esquete serve para lembrar a atualidade de um outro filme de Jafar Panahi que a jovem Ghavami deve, muito seguramente, ter visto, além de nos rememorar a própria greve de fome do cineasta, realizada quando ele esteve preso. Rodado em 2006, Offside, que se chama em português Fora do Jogo (mas que poderia se chamar "Impedimento", em razão da famosa regra de futebol à qual ele faz alusão, mas também em relação à lei que impedia as mulheres de frequentarem os estádios), narra a história de uma jovem apaixonada por futebol que vai fazer o impossível para tentar assistir a uma partida.
Seguindo o exemplo de Fora do Jogo, em Taxi Teerã o cineasta também optou por utilizar apenas atores amadores para reforçar a noção de realismo. Neste último filme, o realismo é corroborado ainda pela presença de Jafar Panahi, que é reconhecido pela maioria de seus pretensos passageiros (o que rompe com uma possível ideia de ficção), do dispositivo, denunciado a todo instante, assim como pela câmara fixa e pelos muitos planos-sequências.
Os atores, apesar de amadores, são todos formidáveis. Vale ressaltar a simpatia do feliniano vendedor de DVDs, da sobrinha de Panahi, que representa muito bem o papel de uma mini-intelectual burguesa e arrogante, e a do próprio diretor, que aparece como uma pessoa afável, tranquila, gentil e bonachona, perdendo o sorriso tímido, mas sempre generoso, apenas quando ouve eventuais barulhos da sirene da polícia ou quando pensa ter ouvido a voz da pessoa que ele considera como seu inquisidor (o responsável pela sua vigilância), o que revela o estado permanentemente policialesco da sociedade iraniana.
Muito simples em sua forma, Taxi Teerã lembra, em seu dispositivo, o filme Dez, de Abbas Kiarostami, para quem Jafar Panahi trabalhou como assistente de direção no início de sua carreira. Através desse filme, que se assemelha a uma espécie de auto-retrato, o cineasta utiliza a sua própria história para fazer, de maneira microcósmica, uma radiografia do Irã contemporâneo e narrar as vicissitudes de milhares de vítimas da censura, revelando um país amordaçado pelo medo da repressão e pela falta de liberdade de expressão e de opinião. Ele aproveita ainda para atribuir ao aumento das desigualdades sociais o recrudescimento da violência. Uma crítica contundente e oportuna ao despotismo e ao fundamentalismo de algumas sociedades islâmicas. Rodado quase que inteiramente no interior de seu táxi, o filme apenas procura passar a sensação de clausura e de cerceamento espacial vivida pelo diretor e pela sociedade iraniana de modo geral.