Casa de Areia gera algumas expectativas. A leitura da sinopse deste novo filme de Andrucha Waddington indica uma saga feminina fiel aos moldes tradicionais da produção de época. Felizmente, o cineasta não fornece o esperado.
A história de Andrucha começa em 1910, mas, desde o início, algo contradiz esta informação. Num plano mais superficial, não há dificuldade em descobrir este algo. Afinal, Casa de Areia é ambientado no lugar do não-tempo, na medida em que completamente desvinculado do correr dos anos – e Andrucha aproveita, de modo esquemático, em algumas cenas, o contraste entre os grandes acontecimentos do mundo e a absoluta ignorância das personagens em relação a eles.
O interessante, porém, reside no fato das duas mulheres que abrem o filme – Maria e sua filha, Áurea – não surgirem como figuras de época. Apesar dos figurinos que trajam (instigantes, de Claudia Kopke), não soam particularmente dessintonizadas com a contemporaneidade. Mas como não participam da passagem do tempo, as sucessivas mudanças nas roupas parecem indicar mais um despojamento do que alguma espécie de elo, por menor que seja, com o exterior. Casa de Areia é, num certo sentido, um filme sem época.
Fica mais interessante considerar 1910 como uma espécie de estímulo estético do que como um dado concreto. É sugestivo ver Fernanda Montenegro e Fernanda Torres em vestidos austeros vagando pelos Lençóis Maranhenses. Um quadro que, como o restante do filme, não cede à tentação do exotismo. Andrucha Waddington não envereda por apelos emocionais e pelo exibicionismo de uma câmera turística.
O humor, ingrediente presente em uma ou outra seqüência no roteiro de Elena Soárez – desenvolvendo parceria com o cineasta depois de Eu, Tu, Eles e confirmando sua habilidade no manejo de diálogos sintéticos –, não é usado como forma de negociação. E se talvez pudesse ter feito um filme ainda mais radical, Andrucha não se dobra diante das concessões habituais. Ruy Guerra, presente no elenco, permanece como inspiração, a julgar pela disponibilidade à experimentação constatada em Estorvo .
Sem se prender a convenções, Andrucha fala de mulheres que se acomodam, se apropriam ou mantêm tenacidade diante da situação em que se vêem colocadas na vida; mulheres que sustentam uma esperança, sempre frustrada, de escapar de um imenso descampado que as aprisiona. Referências podem ser evocadas: a Winnie, de Dias Felizes , texto de Samuel Beckett encenado mais de uma vez por Fernanda Montenegro, enterrada na areia até o pescoço, se insinua ao longe, bem como a simplicidade sábia das poesias de Adelia Prado – reunidas pela mesma Fernanda no bem-sucedido monólogo Dona Doida – Um Interlúdio – quando a atriz volta à cena como Áurea.
Ainda assim, não há como deixar de notar um certo vazio atravessando Casa de Areia , um filme carente de um foco mais consistente. De resto, Andrucha Waddington sai ileso de eventuais acusações de monotonia, reservando para o público pequenas surpresas (como a inclusão de uma tradicional canção judaica na trilha sonora, a cargo de Carlo Bartolini e João Barone) e desempenhos na medida. Em contracena firme com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro impõe a naturalidade resultante da sintonia com o presente, da disponibilidade no aqui/agora.
# CASA DE AREIA
Brasil, 2004
Direção: ANDRUCHA WADDINGTON
Roteiro: ELENA SOÁREZ
Produção: LEONARDO MONTEIRO DE BARROS, PEDRO GUIMARÃES, PEDRO BUARQUE DE HOLLANDA, ANDRUCHA WADDINGTON, LUIZ CARLOS BARRETO, LUCY BARRETO, WALTER SALLES
Música: CARLO BARTOLINI e JOÃO BARONE
Fotografia: RICARDO DELLA ROSA
Direção de Arte: TULÉ PEAKE
Figurino: CLÁUDIA KOPKE
Edição: SÉRGIO MEKLER
Elenco: FERNANDA MONTENEGRO, FERNANDA TORRES, SEU JORGE, LUÍS MELODIA, RUY GUERRA, STENIO GARCIA
Duração: 103 minutos
Site do filme: clique aqui