O que Sartre realmente disse com o aforismo “O inferno são os outros” se refere à nossa vivência subjetiva quando nos deixamos aprisionar a uma imagem congelada e imutável que os outros possam ter de nós; aí é que viveremos o pior dos infernos: deixamos de existir no modo em que podíamos vir-a-ser, ou seja, existencialmente vivos - e, portanto, com possibilidades abertas para o devir. Já no inferno sartreano ficamos como mortos em vida, pois o morto não pode mais aspirar a mudanças, reconstruções, ressignificações: nunca mais será experimentada a possibilidade de vir-a-ser, de recriar-se como antes seria possível (para repetir o filósofo, a existência precedendo a essência).
Nem o inferno imaginado pela teologia cristã nem seu derivado dantesco na “Divina Comédia” poderiam conceber o inferno vivido pelos personagens principais de O Filho de Saul, aprisionados - mais do que em um campo de concentração nazista - em um papel de subserviência automática, de perda de identidade humana, de anulação do ser e do vir-a-ser - tal como no inferno de Sartre.
O 'Saul' do título, além de tudo, foi reduzido/deixou-se reduzir/teve que se submeter (por suposta expectativa de sobrevivência física?) ao papel ainda mais humilhante do que o de “kapo” (cuja designação pode ter surgido como contração das sílabas iniciais de Kameraden Polizei - em alemão, “capataz”). Eram pessoas que faziam os piores trabalhos dentro dos campos, inclusive “contra” seus semelhantes, na esperança de estarem vivos quando acabasse o inferno físico do nazismo, da guerra e dos campos; muitas vezes podiam receber melhor alimentação ou/e lugar para dormir, e em alguns campos havia hierarquia bem germânica: Unterkapo, Kapo, Oberkapo... mas com frequência eram também assassinados tal como os demais prisioneiros - porque seriam facilmente substituídos pela chegada de mais prisioneiros - o que é anunciado em um letreiro de abertura neste filme de László Nemes, cineasta húngaro em seu primeiro longa, ex-assistente de seu prestigiado compatriota Béla Tarr.
Muitos kapos não passavam de criminosos comuns (que usavam um triângulo verde no peito), pois os nazistas os priorizavam para esses serviços: era melhor um criminoso comum alemão levar essa vantagem do que outros grupos, como por exemplo judeus, comunistas, homossexuais... Mas Saul é um desses prisioneiros judeus que colaboravam com as atividades ligadas ao extermínio dentro de um campo. Sendo judeus, seria imperativo desfazer seus laços identificatórios, não manifestar (não sentir?) nada quando “ajudassem” novos grupos de prisioneiros a tirar suas roupas para serem encaminhados aos “banhos” - que eram as câmaras de gás. Depois, trabalhavam nos crematórios para reduzir os corpos a cinzas.
Até que, em algum momento, Saul identifica um jovem morto como seu filho e parte, obsessivamente, em busca de um rabino que recite a reza fúnebre do kaddish, visando enterrar aquele corpo de forma menos indigna - e diversa de tudo o que ele vinha fazendo até então.
Como disse o diretor do filme, o Holocausto não é uma história de sobrevivência, mas de extermínio dos judeus da Europa. E é com esta premissa que o filme vai se desenvolver de forma absolutamente original e, podemos mesmo dizer, brilhante. O foco está quase sempre em primeiro plano no rosto de Saul (quando muito, no rosto dos demais personagens com quem ele está), enquanto os corpos dos muitos e muitos mortos só são vistos de modo amorfo, em segundo plano e totalmente fora de foco, não havendo o menor traço de “exploitation” sensacionalista (como parece ter virado regra em tantos outros filmes que estabelecem relações sado-masoquistas com suas plateias; ou –pior –banalizam o mal que exibem de modo explícito, mais do que pornográfico, uma pornografia da violência e destrutividade).
Mas o que é admirável no modo escolhido para narrar este filme, com mínima - mas pertinente - utilização de trilha musical e máximo uso de som ambiente (inclusive sons de origem em imagens extra-campo) é que, ao mesmo tempo em que consegue induzir um certo grau de imersão do espectador na realidade subjetiva do que pode ter sido estar em um campo de extermínio, também leva a plateia a um distanciamento crítico. São longuíssimos planos-sequência sem cortes com a câmera instável e em planos fechados no rosto absolutamente impassível do ator Géza Röhrig, capaz de transmitir, sem mudança de expressão facial, a chance de seu personagem quebrar com a condição em que foi colocado pelo entorno: ele vai estabelecer um vínculo com aquele corpo, um filho que pode não ser seu, mas que é como que “adotado” por meio de um investimento emocional de consideração e respeito - tudo a que ele tivera que renunciar desde que passou àquela condição abjeta.
Se a tenacidade de Saul passa a ser predominante em seu foco de re-existir (como alguns kapos que exerceram seu poder de forma humana quando possível), isso não quer dizer que, no inferno sartreano em que vive, a cada momento, ele não seja levado a deixar de lado sua busca obsessiva para atender de modo robotizado às ordens dos superiores chefes nazistas ou Oberkapos... para em seguida retomar sua meta de modo incansável.
Além de tocar no melindroso tema de judeus que foram kapos ou, em um degrau ainda mais baixo, “Sonderkommandos” (equipe que limpava as câmaras de gás do "lixo humano" e queimava os restos nos fornos crematórios), também quebra-se a tradição de mostrar judeus submissos indo passivamente para o sacrifício: pois o roteiro enfoca, paralelamente à busca de Saul para dar uma sepultura a seu “filho”, revoltosos: desde gente que tentou fotografar os horrores para, de algum modo, informar ao mundo o que se passava naqueles locais de extermínio, até gente que tentaria de fato, brigar, fugir do inferno.
O Filho de Saul é um filme ao qual é impossível ficar indiferente: sem seduzir a plateia com lances de heroísmo, sobrevivência, apaziguamento, aproxima e “distancia” o espectador de experiências-limite, permanecendo com a gente depois que termina e, se possível, “melhorando” a cada lembrança de sua construção formal e dos temas aos quais tal tipo de narrativa está a serviço sem gratuidades "estilosas".
Um dos grandes filmes para a História do Cinema e da Humanidade.