De que lado está o diretor de um filme quando aborda temas complexos/polêmicos? Só os que fazem leituras muito superficiais não captaram de que lado Kubrick estava quando filmou Laranja Mecânica: não era a suposta apologia da violência que provocou a censura em muitos países – como no Brasil sob a ditadura militar -, mas sim o reconhecimento de que não há modos ideais de reduzir o risco do homem ser lobo do homem. Kubrick demonstrava que a própria sociedade, ao pretender transformar um psicopata violentíssimo em um sujeito cordato e passivo por métodos e técnicas de condicionamento... deixaria de fora suas antigas vítimas sequiosas de vingança e com o mesmo potencial agressivo/destrutivo que sofreram - agora liberado pela reação “olho por olho”. O mal não está fora, mas dentro do homem. Como lidar com isso? - era a pergunta que Kubrick se fazia deixando a resposta em aberto, mas sem jamais "aprovar" os estupros e perversidades cometidos pelo personagem “Alex”, que etimologicamente seria um “não-Lei”, um que recusa a Lei do projeto civilizatório, sempre tão frágil em cada um de nós.
A personagem Paulina do filme argentino La Patota pensa diferente de Kubrick. Ela parece ter certeza que o mal está “fora”: as falhas em projetos sócio-educativos são as responsáveis pelas perversidades que os bons selvagens humanos, paradoxalmente, acabam por perpetrar. Parece ser assim que ela vê os rapazes de uma região sul-americana relegada ao abandono quando eles cometem um ato bárbaro contra ela, uma mulher dedicada a seus ideais sociais: eles seriam “produto do meio” e é por isso que ela, estoicamente, se nega a denunciá-los.
Ela diz algo como “quando há pobres envolvidos, a Justiça só busca culpados em vez da verdade”. Mas a tal verdade do enredo mostrada ao espectador é que um sujeito, descartado por uma moça com quem antes saía, pretende submetê-la a um estupro coletivo depois que seus colegas da mesma “patota” (título original) flagraram-na fazendo sexo com outro homem (mas por engano confundem inicialmente a moça visada com a professora Paulina).
A ferida no narcisismo machista (que implica na pretensão de posse definitiva da fêmea com quem teve um “quase namoro”) reduziria aquela outra moça, segundo o imaginário do homem que se sente ofendido pela liberdade sexual da mulher, a ser vista como uma "vagabunda" que transa - e porque transa - com diferentes homens, “merecendo” ser estuprada por muitos, “já que” ela escolhe ter variados parceiros sexuais sem se manter em relacionamentos estáveis.
Por ironia, o uso da moto da outra em noite fechada faz com que a vítima do estupro acabe sendo a dedicada Paulina do título brasileiro, na verdade uma promissora advogada idealista que saiu de Buenos Aires para lecionar naquela região longínqua e abandonada pelos grandes centros políticos, onde o projeto civilizatório esbarra mais ainda em reações mais primitivas do bicho-homem. (Nada muito diferente do que acontece em nossas favelas geograficamente vizinhas - ou mesmo fazendo parte - dos bairros e núcleos sociais que se pretendem mais civilizados, apesar das fontes de renda de uma parte desses “civilizados”, especialmente dos que estão no “topo da pirâmide”, venha da rapina dos cofres do Estado e que está sendo devassada pelas investigações em curso no Brasil pretensamente "civilizado").
ATENÇÃO: SPOILER
Paulina, de 2015, é refilmagem de La Patota de 1961, e o título original da nova produção é o mesmo. No filme do século passado também uma professora idealista sofria um estupro e escolhia não denunciar os estupradores - e nem abortar o embrião concebido desta forma: a personagem era católica e não denunciava seus alunos estupradores para que eles se comprometessem (!) a não praticar mais estupros. Pelo que li a respeito, fiquei com o entendimento de que esta gravidez sofria um abortamento natural, o que fez Santiago Mitre, o diretor da nova versão considerar o desfecho do antigo filme "abjeto". Entendo essa desqualificação, supondo que o roteiro antigo (no qual a professora não provocava o aborto, conformada à religião católica prevalente naquela época, cultura e extrato social) providenciava que a “Mãe-Natureza” ou/e a "Criação Divina" fizesse(m) a sua parte “premiando”, talvez, a estoica crente com o feliz desfecho de não carregar no ventre o resultado de um estupro (de alguma forma, algo sempre vergonhoso dentro das mesmas visões preconceituosas).
Por outro lado, o que o novo roteiro parece querer nos dizer é que se a mulher é dona de seu corpo para abortar um feto advindo de um estupro, ela também será livre para não fazê-lo e deixar a gravidez seguir adiante por decisão pessoal. Perfeitamente. E é o que a atual Paulina faz, sem, entretanto conseguir dar uma explicação coerente ou desapaixonada para sua decisão. Ela não é religiosa como a do filme antigo (pelo menos no mesmo sentido místico do termo) e também não quer denunciar os estupradores [que não são seus alunos: na verdade há um estuprador que consumou o ato e na patota há um mais jovem que é aluno dela, mas não tem um papel bem definido no enredo], sendo que há uma cena em que ela fala algo no sentido de que haveria “desníveis sociais que levam à violência”. Neste caso mais específico do estupro (que não é exclusividade de nenhum extrato social) talvez isso possa levar uma mulher que foi estuprada, indignada com o que sofreu, a ter engulhos.
E não só mulheres que passaram por esse horror: eu, pessoalmente, considero que o filme atual seria tão (ou mais?) “abjeto” quanto o anterior, embora não possa falar do outro que não conheço. Por que “abjeto”? Por exemplo, o pai da moça pergunta se, no caso em que ela engravidasse do namorado, se ele a tivesse possuído à força, o que ela faria: e ela diz que, neste caso, abortaria (!?) O que ela não faz agora pelo fato de que os que perpetraram o estupro contra ela eram homens sem acesso maior à cultura, educação, à civilização, enfim.
Ou seja, a nova Paulina tem uma “religião” também - e que pode como que reconhecer uma nova categoria: “estupro desculpável” porque vindo de uma classe social prejudicada, infelizes descamisados - para usar um termo demagógico usado pelo populismo nefasto da compatriota de Paulina, Evita Perón!
Politicamente correto? Ou covardemente acumpliciado?