Acontece de algumas vezes o crítico “torcer” por um filme ao longo da projeção, da seguinte forma: enquanto os acontecimentos vão se desenrolando, a cada escolha acertada do realizador, seja na economia de diálogos ou na decupagem que eliminam o que poderia soar redundante ou desnecessário para o desenvolvimento da narrativa, seja no que o posicionamento da câmera ou a duração dos planos transmitem, seja na construção dos personagens, torcemos para que não haja algum elemento dissonante que comprometa o que está indo tão bem.
Essa torcida não tem obrigatoriamente relação com uma simpatia do crítico pelo diretor ou sua filmografia. De uma maneira geral, gosto da obra de Anna Muylaert. “É Proibido Fumar”, “Durval Discos” e “Que Horas Ela Volta?” são bons filmes, longe de serem obras-primas, que nos apresentam um olhar bastante interessante sobre determinado microcosmo social. Vale lembrar que ela também fez “Chamada a Cobrar”, longa produzido para a TV, que é um equívoco completo do início ao fim. Por isso, fui ver “Mãe Só Há Uma” sem grandes expectativas, mas o filme me pegou de tal jeito que durante a sessão me vi torcendo para que o que estava indo tão bem continuasse assim até o final. E não me decepcionei, muito pelo contrário.
“Mãe Só Há Uma” é não só o melhor filme de Anna Muylaert, como um dos melhores filmes brasileiros que vi nos últimos anos. E se escrevo esta crítica na primeira pessoa, algo que normalmente o crítico deve evitar, é porque saí do cinema tão impactado que não consigo ter sobre ele um olhar totalmente distanciado e menos pessoal, outro aspecto recomendável em nosso ofício.
Deixando o aspecto emocional de lado, há uma série de fatores que explicam porque ele é tão bom. O roteiro jamais cai nas armadilhas que uma história melodramática como essa poderia proporcionar. A primeira grande sacada foi a de aproveitar apenas o mote da história real do jovem de Goiânia que aos 16 anos descobriu que a mãe que o criou o roubou da maternidade onde nasceu (o “caso Pedrinho”). Em “Mãe Só Há Uma”, Pierre descobre que na verdade se chama Felipe e que de agora em diante terá que viver com seus pais biológicos. Um impacto brutal na vida de um adolescente que não sabe se gosta de meninos ou de meninas, se deve se vestir como homem ou como mulher, e nem sabe se isso importa. Tudo soa muito verdadeiro na maneira como o filme observa essa fusão de gêneros e desejos dos jovens do século 21.
“Mãe Só Há Uma”, é, antes de tudo, um exercício de se colocar no lugar do outro, de tentar entender suas atitudes e motivações, mesmo sem necessariamente concordar com elas. Não há como julgar o comportamento dos pais biológicos de Pierre, em sua tentativa atabalhoada de reconquistar o filho e o tempo perdido, se pensarmos que eles passaram 365 dias por ano, durante 16 anos, sofrendo e perseguindo o sonho daquele reencontro. E obviamente não se pode julgar o dilema vivido por Pierre no momento em que se vê separado abruptamente da mãe que o criou e por quem se afeiçoou (embora esse afeto nunca seja explicitado), e passa a ser forçado a conviver com estranhos que nunca o viram mas sempre o amaram.
Não há sequer um singelo traço de pieguice na forma de contar essa história. Não é necessário mostrar mais a mãe-sequestradora depois que ela é presa, logo no início do filme, pois o que importa a partir dali é o comportamento de Pierre frente a esse intenso mundo que já estava em transformação, rumo a um futuro que o deixa quase catatônico (em complexa interpretação do ator estreante Naomi Nero). Somos apresentados ao mundo de Pierre primeiro em closes bem fechados no pequeno apartamento de classe média baixa em que vivia. É um mundo claustrofóbico, que contrasta com um certo sentido de liberdade e desorientação na câmera em movimento nos momentos em que está fora de casa. Quando passa a viver com os pais biológicos, os enquadramentos reforçam a sensação de não-pertencimento àquele espaço, como na ótima cena em que se torna quase uma atração de circo para a nova família, todos querendo fazer uma selfie com ele.
Interessante também é a opção por dar ênfase a um personagem que poderia ser decorativo na trama, como o “novo” irmão adolescente de Pierre, Joca (Daniel Botelho, outra grata revelação). O drama familiar não o afeta mais do que seus precoces dilemas amorosos. Seu ar enfadonho e a rotina que leva transmitem verdade no retrato da geração adolescente atual. Como o roteiro evita situações-clichês como os ciúmes do recém-chegado Pierre, aparentemente Joca seria um personagem dispensável na trama, mas ele funciona ao mesmo tempo como elo de ligação e contraponto ao irmão. Ele está presente na lindíssima e magistral cena final, que oferece uma nova camada de leitura que nos acompanha depois da sessão: a reflexão sobre a influência que os laços sanguíneos teriam na construção espontânea do afeto, mesmo em circunstâncias totalmente adversas.