Porque Café Society é um dos melhores filmes de Woody Allen e desde já um dos melhores lançamentos de cinema no Rio este ano numa crítica à moda antiga e sem Spoiler:
1. O filme é uma aula de roteiro: nada é supérfluo, cada cena acrescenta um passo para o enredo avançar, mesmo as mais curtas. O filme é "enxuto", sem "gordurinhas". Algumas cenas mais longas - que não servem tanto à história - podem estar a serviço de caracterizar melhor algum personagem, como no episódico encontro do protagonista com uma prostituta. Outro aspecto a ser apreciado são os diálogos rápidos, inteligentes, eventualmente bem-humorados, embora o filme esteja longe de ser uma “comédia romântica”: a amargura disfarçada sob essa aparência vai se estabelecendo sutilmente até ficar evidente nas belíssimas cenas finais que confirmam do que mesmo que Woody Allen estava tratando.
2. O filme é uma aula de cinema: a posição da câmera em cada cena parece a posição adequada, como se não houvesse outra opção melhor. Um exemplo ao acaso: a tomada ao nível do solo, de baixo para cima, na cena em que o irmão do protagonista vai procurar um segurança, vizinho da irmã deles. Outra: a tomada no restaurante na primeira vez em que Kristen Stewart vai encontrar seu namorado, até então desconhecido; a câmera está longe da porta por onde ela entra, vendo-se sua silhueta de corpo inteiro fora de foco, e na medida em que ela se aproxima da câmera esta fará um breve movimento lateral para a mesa na qual ela vai se sentar com o namorado que ali já estava - ou seja, o foco era previsto para este personagem, até então desconhecido.
As informações visuais passam de modo sutil para a apercepção (percepção de um todo, mas não plenamente consciente) do espectador e são tão importantes quanto as informações verbais, por mais que os filmes de Allen sempre sejam verborrágicos. Nem tudo será registrado racionalmente pelo espectador, mas fará parte do clima emocional transmitido pelas imagens ao público.
Enquadramentos, a opção por planos gerais ou grandes planos (o que as pessoas normalmente chamam de “close”), tudo irretocável. A linguagem cinematográfica deste filme parece simples, direta. Se foi altamente elaborada ou intuitiva? Isso não importa para a plateia, o que importa é sua objetividade e clareza.
3. Ainda cabe falar de Vittorio Storaro? O fotógrafo, frequentemente um importantíssimo colaborador de filmes de Bertolucci, Coppola e Carlos Saura em sua primeira colaboração com Woody Allen convenceu-o de filmar em digital e repetiu a extrema qualidade de seu trabalho habitual. As cenas passadas entre a família judaica que ficou em Nova York na primeira metade do filme são quase “descoloridas”, lembrando algo como um preto-e-branco feito de cores pálidas, uma espécie de “cinza-e-branco” - ou em tons de sépia, contrastando com o colorido mais vivo e a predominância dos famosos dourados de Storaro nas cenas de Hollywood. Na segunda metade do filme, Nova York ficará tão ou mais colorida do que Los Angeles e com um certo predomínio da paleta azul. Storaro pinta com a luz, como já foi dito sobre ele.
4. Como habitualmente em filmes de Allen o elenco é escalado com extrema adequação. Os atores servem perfeitamente aos personagens e o todo das interpretações é homogêneo como raramente se vê. Depois de ter tido um super-destaque em Acima das Nuvens, de Olivier Assayas - quando não deixou de surpreender, mas ainda ficava à sombra do poder avassalador de Juliette Binoche - Kristen Stewart tem aqui seu melhor desempenho, mostrando ser capaz de transmitir a interioridade da personagem além das falas. Steve Carell como tio do protagonista acrescenta mais uma ótima performance ao seu currículo, confirmando que pode ser melhor quando sai dos estereótipos cômicos. Isso já havia ficado claro em Pequena Miss Sunshine e mais ainda em Foxcatcher.
Mãe, pai, irmã, cunhado e irmão de Bobby, ou seja, Jeannie Berlin, Ken Stott, Sari Lennick, Stephen Kuken e Corey Stoll (este, da primeira temporada de House of Cards) servem muito bem à parte mais gaiata do filme, caricaturando a família judaica. Cabe lembrar que Stoll já havia trabalhado com Allen em Meia-noite em Paris interpretando Hemingway, assim como Steve Carell esteve no bem menos lembrado Melinda e Melinda, de Allen.
Blake Lively está belíssima e suave - como pede sua personagem. E Jesse Eisenberg é um dos melhores alteregos de Allen em versão mais jovem, acrescentando outro ponto a seu favor em filmes lançados no Rio este ano (o outro foi o excelente Mais forte que Bombas do norueguês Joachin Trier).
5. Reconstrução de época e vestuário se destacam e os anos 1930 servem bem à habitual seleção musical de Allen. Por fim, cabe destacar como, num breve diálogo entre os pais de Bobby sobre religião, um tema bergmaniano (“o silêncio de Deus”) pode reaparecer em tom mais cômico do que trágico, sem perder a amargura. E que o final do “Romance de Sonho”, de Arthur Schnitzler - quando o casal discute que “um sonho nunca é apenas um sonho”, mas que “nenhum sonho pode resumir uma vida” (filmado por Kubrick em De olhos bem fechados - com um erro absurdo na reprodução destas ideias finais do livro) - aqui, intencionalmente, é modificado para a ideia de que “sonhos são apenas sonhos”. Coisa em que um frequentador crônico do divã de psicanálise como Allen jamais acreditaria.
Aos temas recorrentes de Allen (família, religiões, ética e assassinatos, (in)fidelidade conjugal etc) vem se somar uma cáustica ironia para com a “alta sociedade” de NY e para com a “nobreza” da Hollywood da época dita “de ouro”. Talvez grande parte do público atual não conheça a enxurrada de nomes mencionados, ainda que tão famosos na época: astros, estrelas, produtores e alguns diretores do melhor cinema clássico do passado (John Ford, Billy Wilder e William Wyler).