Em “Polissia”, que ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2011, a diretora francesa Maïwenn recria ficcionalmente o cotidiano da polícia de Paris especializada em crimes de pedofilia. Se aquele universo impressiona o espectador, também é capaz de abalar psicologicamente quem lida com isso no dia a dia, daí a opção pelo foco na intimidade dos policiais. Seu novo filme, “Meu rei”, de certa forma dá continuidade a esse formato, centrado no drama humano dos personagens, mas com uma forte pegada documental.
O tema é que muda completamente. Dessa vez, o ambiente de denúncia social dá lugar ao retrato de altos e baixos de uma relação amorosa, algo de que o cinema já se ocupou tantas vezes, um assunto inesgotável que oferece um risco enorme de cair no lugar-comum. Tony (Emmanuelle Bercot) e Georgio (Vincent Cassel) vivem o dilema universal da vida a dois, passando da euforia do período de enamoramento à depressão trazida pela quebra do encanto. É algo com que podemos nos identificar, em maior ou menor grau, provocando tanto a reflexão quanto a indiferença ao que é mostrado na tela.
E como a diretora e corroteirista escapa dessa armadilha? Evitando o maniqueísmo. Por mais que Georgio seja um canalha de marca maior, e Tony, a vítima (já a partir da maneira como ela é apresentada, sofrendo numa clínica de fisioterapia), há nuances sutis sentidas na maneira como a relação se desenvolve. A estrutura em flashback, um tanto engessada, parece se justificar apenas para que se entenda que a história é contada do ponto de vista de Tony. Portanto, o Georgio que vemos em cena é aquele que se molda às expectativas dela. O sujeito machista, egoísta e insensível é também aquele que sabe ser engraçado, bom de cama e pai dedicado. Essa dualidade talvez não soasse verdadeira se os atores não estivessem tão bem, sobretudo Bercot, premiada como melhor atriz em Cannes pelo papel.
(publicado originalmente no jornal O Globo em 16.09.2016)