Uma dupla de atores franceses com trajetória de grandes serviços prestados ao cinema mundial, Isabelle Huppert e Gérard Depardieu, interpretam um ex-casal de atores - há mais de duas décadas separados - e que também se chamam Isabelle e Gérard. Seu reencontro deriva de uma tragédia: seis meses antes, o único filho que tiveram cometeu suicídio, deixando uma carta para cada um dos pais pedindo que se dirigissem juntos ao Vale da Morte (nos EUA) cumprindo caminhos predeterminados em dias seguidos; em algum momento o filho morto diz que reaparecerá brevemente para eles.
O roteiro do filme praticamente se resume a este reencontro dos personagens - que também marca o reencontro dos intérpretes que não trabalhavam juntos desde 1980 - embora nunca tenham sido casados fora das telas. Outra “coincidência” entre o enredo e a realidade reside no fato de que Depardieu também perdeu um filho em idade adulta - sem que tenha sido por suicídio.
A rotina de cada dia nos quais seguem as instruções, idênticas em ambas as cartas, tanto para o pai como para mãe, no sentido de irem juntos a tais e tais lugares da região (inóspita, quentíssima e de geografia tão fascinante quanto insólita e até mesmo potencialmente assustadora) é entremeada com breves digressões que enfocam como cada um deles se relaciona com outros hóspedes da pousada em que estão hospedados.
A maior atração do filme, além do estranho argumento inicial, está no carisma e virtuosismo dos intérpretes, virtuosismo que se expressa paradoxalmente na simplicidade aparente como ele e ela dão vida aos respectivos personagens: o pai, mais cético e pragmático; a mãe, mais inclinada a acreditar em eventos sobrenaturais e carregada de culpas em relação ao filho morto. Suas interpretações, no entanto, não recorrem ao óbvio: é na leitura em voz alta da carta do filho recebida pelo ex-marido que Isabelle Huppert pode chegar a nos comover sem nenhum traço de pieguice ou de melodrama banal; sua interpretação, para recorrer a um clichê, é visceral – ou mais ainda, é anímica. E é na aparente displicência da composição de Depardieu que sua interioridade se deixa entrever sem nenhuma explicitação “fácil”, sem enviar “recados” ao espectador sobre como devemos compreender o personagem.
Na direção, Guillaume Nicloux mostra-se competente nos enquadramentos elegantes e nos planos-sequências sem exibicionismo. A fotografia de Christophe Offenstein, premiada com o 'César' 2016, colabora com o filme na mesma clave de simplicidade apenas aparente para criar um clima de falsa banalidade encobridora de um misto de emoções contraditórias, incluindo a expectativa de que algo inquietante possa vir - ou não - a acontecer.
ATENÇÃO: SPOILER
Pode-se questionar o encaminhamento escolhido pelo diretor no papel de roteirista para os eventos escolhidos na “resolução” da hipótese de que o filho morto tenha mesmo reaparecido: em algum momento a mãe entra em pânico ao sentir suas pernas agarradas durante a noite. Um pesadelo? Mas como explicar as manchas surgidas na pele da região em que ela teria sentido duas mãos envolvendo seus tornozelos? Fenômeno sobrenatural ou reação somática de uma fantasia psíquica?
Mais adiante, o pai dirá ter tido - também sozinho - a visão do filho que até lhe teria segurado as mãos. Nos punhos, mais tarde, manchas similares às dos tornozelos da mulher. O que pretende Nicloux com estes episódios? Deixar algo em aberto ou propor a possibilidade de haver mais coisas entre o céu e a terra do que pensa nosso ceticismo?
Na história do Cinema há grandes filmes - sem ideologia religiosa – que apontaram para resoluções sobrenaturais em seu desfecho, sendo o exemplo mais contundente encontrado na obra-prima de Dreyer, Ordet (no Brasil, A Palavra). Mas também A Fonte da Donzela, de Bergman, Ondas do Destino, de Van Trier e Sob o Sol de Satã, de Pialat, extraído de livro do católico Bernanos, também trazem eventos milagrosos em suas conclusões. Este O Vale do Amor não se equipara aos tão desconcertantes quanto bem-sucedidos filmes citados quando enfrentaram o que pode pertencer ao âmbito do maravilhoso.
Talvez o filme de Nicloux se aproxime mais da dúvida deixada pelas duas versões do romance Fim de Caso do também católico Grahan Greene, sendo a mais recente dirigida por Neil Jordan: milagre de fato ou algo visto como tal pelos personagens?
De qualquer forma, é curioso observar a coincidência dos lançamentos deste filme com o de Giusppe Tornatore, Lembranças de um amor eterno : em ambos, um morto guia os passos de quem ficou vivo. Mas toda a tecnologia pela qual isso se dá no medíocre filme do italiano parece tola e muito mais inverossímil em confronto com o possível milagre (ou não) do filme francês - que pode não ser nada excepcional, mas se mantém digno ao abordar tema tão melindroso.