O compromisso de realizar uma trilogia fez mal a Lars Von Trier. Tudo o que Dogville tinha de original e ousado soa requentado e previsível em Manderlay. É difícil causar impacto repetindo uma fórmula, o que é agravado no caso por um certo desleixo na montagem, surpreendente em se tratando de um diretor tão rigoroso. Perdido o elemento-surpresa da linguagem e do (não)cenário, perdida Nicole Kidman, Manderlay carece ainda de um roteiro mais interessante, que não se limitasse a ilustrar uma tese. A lição que fica é a de que, mesmo para um cineasta genial, não basta seguir um manual de instruções para um filme idem.
Se em Dogville o diretor dinamarquês levantava uma discussão abrangente sobre os valores da sociedade americana, agora ele se concentra na questão racial – um tema naturalmente polêmico. Para não chover no molhado, Lars Von Trier associa sua denúncia do racismo americano a uma discussão simbólica sobre a imposição da liberdade e da democracia e indivíduos ou povos não necessariamente interessados na mercadoria. Mas a escravidão é uma péssima metáfora, e em alguns momentos, a título de expor a ferida, o filme cai num esquematismo perigoso, que não está livre de uma leitura racista. É claro que, ao retratar a exploração dos negros no sul dos Estados Unidos nos anos 30, o diretor é suficientemente ambíguo para rechaçar qualquer acusação de preconceito. Mas o próprio Trier declarou numa entrevista ao jornal diário “Politiken”: “Não acredito que farei muitos amigos com o filme, mas, em troca, haverá uma irmandade entre a Ku Klux Klan e os negros, porque ambos terão muita vontade de me matar”.
Talvez para uma platéia americana ou européia Manderlay seja mais bem-sucedido em sua tentativa de épater. Por exemplo, na ênfase descabida às fantasias eróticas de Grace com um dos escravos “libertos”, que trai uma expectativa de desconforto nos espectadores. Pelo menos o filme serve para mostrar que os grilhões da escravidão continuam na cabeça de muitas pessoas, e não há lei nem política de cotas que resolva isso. Nos Estados Unidos, onde historicamente nunca se estabeleceu a idéia de democracia racial, os negros e os pobres continuam sendo, em mais de um sentido, escravos, mas o único momento de Manderlay em que isso é mostrado de forma minimamente criativa é no clipe de fotos no final do filme, ao som de “Young Americans”, de David Bowie.
# MANDERLAY (MANDERLAY)
Dinamarca/Suécia/Holanda/França/Alemanha/EUA, 2004
Direção e roteiro: LARS VON TRIER
Roteiro: LARS VON TRIER
Elenco: BRYCE DALLAS HOWARD, ISAACH DE BANKOLÉ, WILLEM DAFOE, DANNY GLOVER, LAUREN BACALL
Duração: 139 minutos