Funciona satisfatoriamente a transposição geográfica quanto à ambientação: de uma mansão inglesa retirada no auge da era vitoriana onde se passa “A Outra Volta do Parafuso” (de Henry James, lançado em 1898) para uma fazenda de café no Brasil de 1932. Mas não se pode dizer o mesmo quanto ao desenvolvimento do roteiro que não conseguiu manter a ambiguidade, um dos motivos do sucesso do conto (ou novela) original, escrito com a intenção exata de deixar o leitor em dúvida: seria uma história que assume a existência de fantasmas? Ou tudo se passa na mente doentia de uma jovem governanta (reprimida como sua época) encarregada de duas crianças órfãs que já passaram por perdas traumáticas (da preceptora anterior e do pervertido capataz da propriedade)?
O mais recente filme de Walter Lima Jr. pode acabar deixando a impressão de que a nova preceptora enlouquece mesmo e porque os fantasmas existem de fato, deixando de despertar o interesse maior do que, em sua base, era um enredo fascinante e que já resultou numa obra-prima do cinema de terror psicológico, Os Inocentes, de Jack Clayton (1961) que teve roteiro de, entre outros, Truman Capote. O filme de Clayton, visualmente admirável e cinematograficamente brilhante, foi, entretanto, questionado por talvez enfatizar a interpretação psicológica do que acontece, provavelmente uma tentativa de driblar a dificuldade de transpor a obra literária, com toda sua carga de subjetividade, para o que objetivamente se vê num filme. Afinal, tudo que acontece no conto é narrado pela própria preceptora, uma narradora tão inconfiável como costuma ser a intenção dos escritores quando querem deixar dúvidas sobre os fatos que desenvolvem em sua construção ficcional: um narrador-personagem pode servir à intenção de transmitir sua verossimilhança aos fatos apresentados - mas também pode lançar dúvidas irônicas sobre as ocorrências apresentadas.
Na versão brasileira parece ter havido a tentativa de lançar a dúvida apenas enfatizando excessivamente a repressão sexual da preceptora em cenas mal resolvidas: desde o exagerado clima de sedução interesseira por parte do tio das crianças, preocupado apenas em arrumar alguém que cuide delas e o desembarace de qualquer preocupação, até cenas gratuitas como a masturbação entrevista por uma das crianças, além da concretização das fantasias sobre a vida sexual da antiga preceptora morta com o também extinto capataz. Sutileza em Henry James ou na narrativa deste enredo faz muita falta. E o que é pior, as explicitações não servem para alimentar a ambiguidade que, como já dissemos, é um dos maiores atrativos da trama original e do filme de Clayton (mesmo que sugerindo mais as fantasias da moça). O que vemos agora é uma moça reprimida que pode pirar a qualquer momento em que for confrontada mais intensamente por suas necessidades instintivas.
Também não há maior aproveitamento do cenário brasileiro e de nossa cultura negra com crenças em espíritos: há vários personagens secundários negros como empregados da fazenda e a trilha sonora sugere alguns batuques aqui e ali, mas nada vai além da “brincadeira com o copo” que se movimenta entre letras passando supostas mensagens do além. A queima do café ligada à crise econômica dos anos 1930 fica apenas como cenário de fundo, não havendo nenhum clima de decadência ou decrepitude na fazenda toda arrumadinha em plena crise econômica com seus interiores muito bem cuidados, limitada, portanto, a servir de cenário “bonito” para um filme – quando poderia transmitir um clima mórbido que a direção raramente alcança.
A doçura das crianças no original (dissimulando o mal que estaria se apossando delas?) também é trocada por comportamentos menos dóceis, o que não acrescenta, e pelo contrário, dificulta mais uma vez o clima ansiogênico de dúvidas em que o leitor/espectador deveria estar sendo jogado.
Mais lamentável é que a cena final seja copiada do filme de 1961, já que não existe no livro de James, atitude da preceptora que enfatiza sua mente doentia e que seria exatamente o único ponto mais questionável do filme já clássico.
Uma pena que tantos cuidados de produção e qualidades isoladas (a fotografia de Pedro Farkas, a interpretação de Ana Lúcia Torres no ponto certo para sua personagem) não tenham servido a um roteiro melhor e que esta realização acabe mais incluída nos momentos insatisfatórios da carreira de Lima Jr. do que no rol de suas belas contribuições ao nosso cinema (Menino de Engenho, A Lira do Delírio, Inocência, A Ostra e o Vento).