Quando Domingos de Oliveira abandona as cores, logo no início de BR 716, e passa ao preto-e-branco para contar a história de seu personagem – notavelmente autobiográfico – nos idos de 1963, 1964, os mais velhos - ou os que conhecem o início da carreira do diretor - forçosamente vão lembrar-se de Todas as Mulheres do Mundo (1966) e de Edu, Coração de Ouro (1968), marcos inaugurais da obra de Domingos.
Mas a lembrança não vai ser nada favorável para BR 716, endereço da Rua Barata Ribeiro, Copacabana, numa época em que éramos mais ingênuos: fôssemos “alienados” ou “conscientizados”, acreditando no amor, no sorriso e na flor - ou na certeza de que haveria militares que defenderiam o governo de João Goulart, portanto contrários aos golpistas que, posteriormente, se autointitularam “revolucionários”, só que nada do tipo de revolução que parte da juventude politizada esperava para o Brasil. Mas política nunca foi o maior interesse de Domingos, pelo menos em seus filmes. Não é à toa que o personagem que retrata esse lado ativista é um... paulista.
O Rio de Domingos sempre foi mais um Rio idealizado dos anos 1950 que ainda sobreviveu em parte nos ’60 iniciais. Na onda de filmes envolvidos em temas graves do Cinema Novo Todas as Mulheres do Mundo surgiu como um delicioso corpo estranho em pleno bode do nosso cinema pós-64, conquistando público e boa parte da crítica, revelando Paulo José e Leila Diniz. Não foi pouco.
O risco é que começando tão bem, Domingos nunca mais pôde repetir a excelência inaugural. Pouco tempo depois de seu opus 2 (Edu, Coração de Ouro – quase tão bom quanto o anterior) tentou filmes dramáticos como o pretensamente freudiano A Culpa (1971) alternando com frustrados projetos mais populares (É Simonal): repercussão pequena ou mesmo negativa. Depois de uma passagem pela TV e retorno ao teatro onde de fato havia começado, foi só a partir de 1998, portanto quase 30 anos depois, que Domingos voltaria ao cinema com uma fórmula razoavelmente bem-sucedida, a de filmes de baixo orçamento, sendo que alguns (Amores, Separações, Carreiras, Juventude etc) conquistaram a simpatia de parte do público e da crítica, além de alguns prêmios.
Mais recentemente, mesmo sem recorrer a “altos orçamentos”, com um pouco mais de folga, concretizou o antigo sonho de levar às telas sua peça “Do fundo do lado escuro” que resultou no filme Infância. Este BR 716 também parece ser resultado de um orçamento menos “baixo”, mas o resultado ficou aquém.
A “eterna festa” mantida em seu apê por “Felipe” (personagem alter-ego de Domingos que serve de modelo para composição do ator, repetindo o que fazem vários atores dos muitos últimos filmes de Woody Allen e que tentam mimetizar o diretor) acaba por entediar, mais do que divertir o espectador. O que em Todas as mulheres... era uma criativa apropriação da liberdade formal da nouvelle vague de Godard com mais afetos truffautianos do que cerebralismos godardianos não se repete desta vez nem como farsa, ficando mais a meio caminho de momentos menos inspirados de velhas chanchadas. A dramaturgia é rala, o roteiro disperso com personagens secundários que mal chegam a estereótipos (exceção: o pai de 'Felipe' em ótima composição de Daniel Dantas numa única cena) e a decepção fica maior se soubermos que o filme ganhou prêmios em Gramado.
A cena final, de volta às cores, ensaia um decalque do final de 8 ½ com ‘Felipe’ se despedindo de suas personagens, mais do que pessoas amigas e companheiras de suas viagens em torno do próprio umbigo - coisa à qual o filme praticamente se resume.