Críticas


MARCAS DA VIOLÊNCIA

De: DAVID CRONENBERG
Com: VIGGO MORTENSEN, ED HARRIS, MARIA BELLO, WILLIAM HURT
15.11.2005
Por Marcelo Janot
A RAIZ DO MAL NO PRÓPRIO UMBIGO

O fato de Marcas da Violência ser adaptado de uma história em quadrinhos ajuda a entender o porque de personagens com características tão arquetípicas de uma certa sociedade americana, junto com aqueles que parecem saídos do universo de fantasia das HQ. Temos o vilão misterioso e assustador, de rosto marcado por cicatrizes e um olho de vidro, em confronto com o pacato pai de família de cidade do interior, que nas horas de perigo se transforma num autêntico super-herói sem uniforme, habilíssimo no manejo com armas e quase à prova de balas. Ao redor deles, gravitam a mãe dedicada e fiel, o filho exemplar que é perseguido pelo típico bad boy da escola, o xerife bonachão e aqueles amigos que passam o dia jogando conversa fora na lanchonete. É um mundo idealizado onde a violência não tem vez e só há lugar para gente de Bem, como afirma o orgulhoso xerife ao tentar expulsar dali o gângster que surge como elemento de desordem em tão inabalável rotina.



Só que Marcas da Violência, antes de ser uma versão filmada de uma HQ, é um filme de David Cronenberg. No cinema deste diretor canadense, isso implica em um mergulho pelos caminhos mais inexplorados da mente do ser humano. Assim, se a história em quadrinhos de John Wagner e Vince Locke se ocupava mais com a trama de aventura e suspense envolvendo um grupo de mafiosos, a Cronenberg o que interessa é o indivíduo, como este se apresenta e se relaciona com o mundo ao seu redor. Como em Spider, seu filme anterior, temos a história de um homem em conflito interior por causa de seu passado. Claro que em situações e ambientes completamente diferentes, mas como estudo de personagens, são legítimos Cronenbergs.



A forma como ele trabalha o tempo já é o primeiro sinal de que o espectador não está diante de um filme de suspense comum, como as situações-clichê poderiam sugerir. Um longuíssimo plano praticamente fixo, em que dois homens conversam após terem cometido uma chacina, é o cartão de visitas. Corta para a menininha tendo pesadelos com um monstro imaginário e sendo reconfortada pela família. A mãe quer realizar uma fantasia fazendo sexo com o marido vestida de colegial. A cena também é longa, causando estranhamento, que será explicado mais tarde ao se associá-la ao momento em que eles voltam a fazer sexo, com a mesma intensidade, mas em atmosfera quase oposta. Num curto espaço de tempo, situações se repetem, mas Cronenberg já virou o mundo daquelas pessoas de cabeça pra baixo.



Vejamos agora o exemplo da transformação sofrida pelo filho pós-adolescente do casal: na primeira vez em que é confrontado pelo bad boy, bota o galho dentro usando um discurso medroso, de recuar para evitar o conflito. Depois que o pai, por uma causa nobre, estoura os miolos de bandidos, ele se sente à vontade para descarregar contra o colega de escola o instinto de violência que carregava, inerte, dentro de si. Ou seja: será que carregamos dentro de nós esse instinto violento que, a despeito da educação que recebemos, pode ser despertado graças ao exemplo daquele que propositadamente ou não, nos autoriza a isso?



A violência sempre está presente em seus filmes, de forma explícita, excruciante, mas aqui ela é mais do que o meio pelo qual os personagens se manifestam: ela é o fim, como o título original (History of Violence) já anuncia. Ao invés de os personagens apenas se servirem da violência, são reféns dela. Cronenberg faz um estudo da violência através do indivíduo, com toda a peculiaridade que o seu cinema possui. E ao mesmo tempo oferece uma leitura crítica da política governamental de George W. Bush. Tom Stall (Viggo Mortensen), o cidadão acima de qualquer suspeita, se vê frente a frente com o inimigo (Ed Harris) de ficha suja, que chega irredutível com um discurso misterioso e fazendo terror psicológico. Resta alguma dúvida de quem seja o Bem e o Mal? Na América interessada muito mais em aniquilar de uma vez o inimigo, não há espaço para procurar a raiz do Mal dentro do próprio umbigo. Cronenberg sabe como cutucar uma ferida até sair pus, mas não oferece o remédio para a cicatrização.



# MARCAS DA VIOLÊNCIA (A HISTORY OF VIOLENCE)

EUA, 2005

Direção: DAVID CRONENBERG

Roteiro: JOSH OLSON, baseado na história em quadrinhos de JOHN WAGNER e VINCE LOCKE

Produção: CHRIS BENDER, DAVID CRONENBERG E J.C. SPINK

Fotografia: PETER SURSCHITZKY

Montagem: RONALD SANDERS

Música: HOWARD SHORE

Elenco: VIGGO MORTENSEN, ED HARRIS, MARIA BELLO, WILLIAM HURT

Duração: 96 min.

site: www.historyofviolence.com

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