Na biografia O poeta da paixão , o crítico José Castello desvelou a face precípua sob a qual se desdobram as muitas imagens possíveis do poeta, cantor, compositor e diplomata Vinicius de Moraes. Seja através da literatura essencialmente metafísica ou das letras embebidas de lirismo, seja na repetida ode à figura da mulher ou - e sobretudo - nos nove casamentos firmados até o fim de seus dias, Vinicius esteve sempre em busca de uma espécie de chama criadora, que o jornalista Paulo Roberto Pires bem denominou de “anabolizante emocional”, e sem a qual a vida lhe parecia morna, monocromática. Em resumo: sem graça.
Um dos méritos do documentário Vinicius , dirigido por Miguel Faria Jr, é evocar essa singularidade por intermédio do testemunho de 16 pessoas com quem o protagonista conviveu. São depoimentos que descortinam os desenhos oblíquos que o signo da paixão cunhou em vertentes tão distintas quanto a do conquistador (Tônia Carrero lembra que ele “era capaz da maior baixeza para conquistar uma mulher”), a do amigo (Antonio Cândido recorda-se, emocionado, de uma dedicatória em que o poeta lhe estende a mão, propondo amizade), a do criador à flor da pele (citando Elliot, Ferreira Gullar pondera que Vinicius escrevia para fugir da emoção) e a do pai (duas de suas filhas acenam, em contraponto ao tom festivo do filme, para a dureza que era tê-lo - para além do gênio - como simples membro da família).
Além da força testemunhal, o documentário traz também raras e deliciosas cenas caseiras. Na mais hilária delas, Vinicius e Tom Jobim, os dois completamente embriagados, conversam sobre a arte de beber uísque, os males e benefícios do casamento, e cantam (ou ao menos tentam cantar) a bela Pela luz dos olhos teus . Em outra passagem, tão ou mais divertida, o poeta tem a companhia do violão de Baden Powell ao entoar o Canto de Ossanha amparado pelo coro de pouco mais de uma dezena de jovens. São momentos iluminados, nos quais o compositor e sua obra desfilam com a naturalidade que sempre lhe foi patente. Traço que, aliás, ressurge na leitura emocionada, por parte de vários amigos, de versos de Pátria minha, uma de seus poemas mais poderosos.
Miguel Faria optou por costurar as seqüências utilizando como fio um show fictício em que os atores Camila Morgado e Ricardo Blat declamam célebres poemas do repertório de Vinicius, como o Soneto da Fidelidade . No mesmo espetáculo, estão algumas de suas canções - que recebem registros desiguais, da técnica gelada de Monica Salmaso em Insensatez à bem-vinda descontração de Zeca Pagodinho em Pra que chorar - e uma desnecessária versão para rap de Blues para Emmett , escrito em tributo ao jovem negro assassinato por motivos raciais nos EUA dos anos 50. Tentando “atualizar” o que em si já é moderno, a adaptação acaba soando redundante e sintomaticamente revelando um dos problemas do documentário: a ânsia de jogar sobre Vinicius uma luz fervorosa e parcial por vezes embota a livre fruição do espectador.
Tal sensação acentua-se no didatismo exagerado da narração em off, que cimenta a construção imaginária de um Rio de Janeiro ideal, focado na teleobjetiva do idílio. “Hoje, não haveria lugar para Vinicius”, lamenta-se Chico Buarque, em frase que sintetiza o ângulo menos feliz do filme de Miguel Faria, ao confundir artista (fruto ou farol de seu tempo) e obra (o que enfim perdura). São incômodos que não chegam a destituir de valor um documentário cujos pontos altos já foram ressaltados, mas levam a especular quantos dos confetes lançados sem reparos pela crítica sobre o filme cheiram a puro saudosismo.
#VINICIUS
Brasil, 2005
Direção: MIGUEL FARIA JR
Roteiro: MIGUEL FARIA JR, DIANA VASCONCELLOS, EUCANAÃ FERRAZ
Texto Final: ERIC NEPOMUCENO
Fotografia: LAURO ESCOREL
Direção Musical: LUIZ CLAUDIO RAMOS
Produção: MIGUEL FARIA JR, SUSANA MORAES
Elenco: CAMILA MORGADO, RICARDO BLAT
Duração: 122 min