Críticas


O QUE ESTÁ POR VIR

De: MIA HANSEN-LOVE
Com: ISABELLE HUPPERT, ANDRÉ MARCON, ROMAN KOLINKA, ÉDITH SCOB.
08.01.2017
Por Luiz Fernando Gallego
Evitando situações “resolvidas”, afirmações peremptórias ou recados prontos para o espectador, o filme se desenrola distante de verdades definitivas.

Mia Hansen –Love, roteirista e diretora de O que está por vir, abre seu filme com um prólogo que, a rigor, não acrescentaria nenhum elemento factual ao enredo da história que vai ser apresentada. Então por que teria feito questão deste prólogo? A personagem central, Nathalie (Isabelle Huppert) é professora de filosofia para o ensino médio e está corrigindo provas de seus alunos referentes à questão “Podemos nos colocar no lugar do outro?”. Em seguida, ela, seu marido e filhos (ainda crianças) visitam um local à beira-mar onde está o túmulo de Chateaubriand - com uma inscrição próxima na qual é solicitado o silêncio almejado pelo poeta para que se possa escutar o som das ondas. Surge a cruz sobre a campa e o título original do filme “L’Avenir”: o que está por vir, mais cedo ou mais tarde, é a morte. Mas o filme não vai se deter sobre temas mórbidos: até a morte chegar, o que pode reservar a vida para uma mulher ocidental de meia idade com bom nível sócio-cultural nos dias de hoje?

O letreiro indica “alguns anos depois” e Nathalie já tem os filhos crescidos, morando fora da casa dos pais; uma mãe carente que a solicita frequentemente num misto de depressão e chantagens sentimentais; um casamento de 25 anos com um marido que pode estar envolvido com outra mulher, mais nova; e problemas comerciais em uma parte de suas atividades (além das aulas que dá) numa editora em que dirige um coleção de livros de filosofia, além de ser a autora de um prestigiado compêndio didático (“Filosofia de A a Z”) que está vendendo pouco.

Nathalie já foi entusiasta do comunismo quando jovem, mas voltou decepcionada da então União Soviética, e também vai se ver confrontada com a postura de seu ex-aluno, por ela admiradíssimo, Fabien – que se engaja de forma radical em manifestações anarquistas e com quem vai discutir se há proximidade ou não entre radicalismos e terrorismo. Ela também enfrenta piquetes de greve por parte seus alunos. Para resumir, Nathalie teria, hoje, uma posição política mais “conservadora”, e assim também na vida pessoal: se seu casamento acabar, ela não vai querer relações sexuais casuais e nem mesmo envolver-se com um companheiro mais jovem. Na verdade, seu relacionamento com Fabien é permeado de intensa afetividade, mas, ao que tudo indica, apenas platônica. Cozinhar para os filhos no Natal e acalentar um neto enquanto os mais jovens jantam pode ser uma forma de liberdade para ela (ao som de uma versão coral um tanto inusitada da surrada “Unchained [Desacorrentada] Melody” ). Aliás, o uso da música é um trunfo à parte: quase até a metade do filme não há música alguma, mas, subitamente, em um momento de tensão, a trilha sonora é invadida pelo piano introdutório de um dos mais belos lieder de Schubert, Auf dem Wasser zu Singe. A letra desta canção descreve uma cena na água da perspectiva de um narrador que está num bote, mas evolui para uma reflexão sobre a passagem do tempo, o tema do filme.

Outro aspecto notável desta realização está na interpretação de Isabelle Huppert em uma personagem distante de um tipo no qual ela andou incorrendo, quase um estereótipo de mulher excessivamente fria e até mesmo ameaçadora: tanto em mais de um filme de Claude Chabrol, como em A Professora de Piano e no recente Elle. Muito bem coadjuvada por todo o elenco no qual cabe destacar Édith Scob como sua mãe e Roman Kolink, perfeitamente adequado ao tipo de adulto jovem intelectual radical em confronto com a sociedade burguesa e que vive em comunidade na qual se discute se a produção intelectual de seus membros deve manter a assinatura do escritor ou renunciar à autoria para preservar a condição de um coletivo.

Longe de situações “resolvidas”, de afirmações peremptórias ou de recados prontos para o espectador, O que está por vir coloca-se distante de verdades definitivas, não deixando de sugerir que é possível até “debater a verdade” e quais critérios existiriam para definir o que é verdade. Podemos nos colocar no lugar do outro?

Prêmio de Direção no Festival de Berlim 2016, o filme seria inspirado na mãe da diretora, uma professora de Filosofia, autora de um livro chamado "Filosofia de A a Z". Esta "verdade" emocional talvez seja o que alimenta a verossimilhança no filme - e também explica o momento em que Nathalie fala sobre sua mãe de modo mais do que condescendente, até mesmo com gratidão, o que o espectador não esperaria depois de ver tantas cenas em que a mãe, idosa, invade o dia-a-dia da filha.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário



Outros comentários
    4494
  • Ceci Constant Lohmann
    11.01.2017 às 17:50

    Parabens Galego...Mais uma análise muito rica..Voce parece ter transmitido o que em muitos momentos vivenciei frente ao filme e quiça refletindo sobre nossa existencia Ceci
    • 4495
    • Luiz Fernando Gallego
      11.01.2017 às 18:01

      Obrigado, Ceci.
    4509
  • concy pinto
    18.02.2017 às 20:44

    adorei esse filme exatamente por não ter respostas prontas. o que está por vir é tão grandioso e, por tão pouco ainda sabemos do outro, que assusta não reconhecermos o que nos aguarda... abs
    • 4511
    • Luiz Fernando Gallego
      19.02.2017 às 05:25

      Exatamente. Obrigado por participar.