Existem dois filmes sobrepostos em A Marcha dos Pingüins. Um deles é impressionante: um documentário de rara penetração e exuberante técnica sobre as migrações dos pingüins-imperadores da Antártida durante o ciclo de um ano, seus hábitos de convivência e a luta para sobreviver à fome, ao frio e à fadiga. O outro filme é relativamente decepcionante: o material documental recebeu um tratamento “dramático”, que atribui aos animais emoções antropomorfizadas e espalha adjetivos onde melhor caberiam substantivos.
Não há como desmerecer a proeza do biólogo, esquiador e documentarista francês Luc Jacquet e sua pequena equipe. Eles se exilaram por 13 meses no deserto de gelo da Antártida para acompanhar o dia-a-dia dos pingüins. Filmaram os deslocamentos em massa das aves através das geleiras, rumo ao oceano em busca de alimentação e de volta ao encontro de suas “famílias”. Flagraram, em incrível proximidade, as coreografias amorosas de casais e os cuidados de pais e mães com um ovo aninhado durante meses sobre as patas e sob a manta dos pêlos para proteger a cria do frio letal. Registraram os ataques de lobos marinhos debaixo d’água e de aves de rapina na superfície. Captaram, é claro, o humor dos movimentos dos pingüins, com seus típicos escorregões e deslizamentos.
As imagens, filmadas em película Super 16mm, têm a granulação e a beleza adequadas a não se confundir com mera computação gráfica. Até aí, estamos no território seguro do documentário. Mas Luc Jacquet não pretendia que seu filme fosse visto como apenas mais uma façanha na documentação do reino animal. Ele queria levar o espectador “como um pai ou uma mãe levam seu filho numa viagem à beira da cama na hora de dormir”. Daí o texto subpoético, carregado de metáforas óbvias e lugares-comuns como “filhos do inverno” e “vitória do amor”. Mais embaraçosa ainda é a trilha sonora da jovem compositora e cantora Emilie Simon, nome ascendente no pop eletrônico francês. Ela abusa dos sintetizadores e da voz björkiana em canções medíocres, com letras em inglês, trazendo ao filme um acento globalizado e xaroposo que briga freqüentemente com as imagens. Na seqüência da grande tormenta mortal, essa inadequação chega a ser vexaminosa.
Melhor fizeram os americanos, que reeditaram completamente o filme e o transformaram num imenso sucesso local. Foram cortados cinco minutos para ganho de ritmo. A trilha foi substituída por outra de Alex Wurman, ao que consta bem menos invasiva. A açucarada narração francesa, com “falas” constrangedoras de mamãe, papai e filhote-pingüins, deu lugar a uma narração supostamente mais objetiva , ainda que também informada pela emoção, a cargo do ator Morgan Freeman. No Brasil, porém, recebemos a versão original francesa, com cópias dubladas por Patricia Pillar e Antonio Fagundes.
O método de fabulizar documentários sobre natureza não é nenhuma novidade. O projeto de Luc Jacquet tem até um predecessor no Brasil: em 1987, Jorge Bodanzky rodou para a TV o especial As Aventuras de Igor na Antártica, onde pingüins, lobos-marinhos, pessoas e paisagens ganhavam status de “personagens”, com a ajuda do texto da escritora Sylvia Orthoff e as canções do maestro Aécio Flávio. Nesse caso, porém, o material documental apenas servia de base para uma assumida fantasia infantil. Em A Marcha dos Pingüins, há a intenção de fazer uma rotina de sobrevivência e preservação da espécie passar-se por história de amor e afirmação de caráter. Os estúdios Disney, em seus áureos tempos, não fariam melhor.
Dos dois filmes sobrepostos nesse grande êxito mundial de bilheteria (o filme mais rentável da história do cinema francês e a maior bilheteria de documentário nos EUA), vale a pena atravessar a embalagem cor-de-rosa para chegar à essência do que interessa: uma visão privilegiada e fascinante de pequenas vidas que resistem no cenário mais intratável do planeta.
# A MARCHA DOS PINGÜINS (La Marche de l’Empereur)
França, 2005
Direção: LUC JACQUET
Roteiro: LUC JACQUET, MICHEL FESSLER, JORDAN ROBERTS (narração)
Fotografia: LAURENT CHALET, JÉRÔME MAISON
Montagem: SABINE EMILIANI
Música: EMILIE SIMON
Narração: CHARLES BERLING, ROMANE BOHRINGER, JULES SITRUK (versão francesa); PATRICIA PILLAR, ANTONIO FAGUNDES (versão brasileira)
Duração: 85 minutos