Quem diria que um jovem cineasta brasileiro seria o responsável por resgatar para o mundo os bastidores de um dos mais curiosos episódios da diplomacia cultural entre Cuba e a antiga União Soviética? Vicente Ferraz estudava na Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba, quando se apaixonou pela história do filme de Mikhail Kalatozov, realizado em 1962-64 para celebrar a revolução de Fidel e selar uma parceria cultural subsidiária à aliança política e econômica. Soy Cuba estava para Cuba e URSS na década de 60 assim como Zé Carioca e Carmem Miranda estavam para Brasil e EUA nos anos 40.
O documentário de Ferraz é uma peça clássica, competente e na qual a afetividade do diretor não contamina sua percepção histórica. Ele não está interessado em revolucionar o gênero, nem sobrepor-se ao seu tema. Usa uma narração pessoal, mas privilegia as entrevistas, os muitos excertos do filme e um precioso material de arquivo do ICAIC – Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica. Contexto e circunstância vêm à tona exemplarmente entrelaçados. A história das filmagens e da repercussão de Soy Cuba é recontada pelos depoimentos do co-roteirista Enrique Pineda Barnet, de atores, do autor da trilha sonora, de membros da equipe técnica – inclusive o cinegrafista Alexandre Calzatti, entrevistado na Rússia – e do presidente do ICAIC, Alfredo Guevara.
Ferraz revisita as locações do clássico e consegue evocar todo um período de turbulência política. Soy Cuba foi concebido como um épico capaz de expressar a sublevação da vanguarda revolucionária contra as misérias impostas em Cuba pelo imperialismo norte-americano. Universitários, populares, camponeses e guerrilheiros caminhariam no mesmo rumo do triunfo da revolução.
Após quase dois anos de produção, o resultado foi um dos filmes mais extraordinários, do ponto de vista formal, da história do cinema. Ecos de Eisenstein, do Fellini de A Doce Vida e dos Cinemas Novos do momento se somam de maneira às vezes extravagante. O diretor de fotografia Sergei Urusevsky e seu operador de câmera criaram pontos-de-vista sobre-humanos para elevar o sentido da História. Planos-seqüência elaboradíssimos, com uso de câmera na mão, elevadores e teleféricos, entraram para as antologias da técnica cinematográfica. Negativos infra-vermelhos (feitos para filmar a Lua), efeitos óticos diversos, distorções sonoras, nada foi poupado para a retórica plástica de Soy Cuba.
Mas tudo seria em vão. Os soviéticos não deram bola para o filme. Os cubanos, por sua vez, não se reconheceram na estética eslava nem na poética declamatória de Soy Cuba. O filme caiu no ostracismo durante 30 anos até que Martin Scorsese e Francis Coppola, já depois da derrocada do comunismo, o resgatassem para um primeiro lançamento internacional. Era o nascimento tardio de um clássico. Para o crítico americano J. Hoberman, era a exumação de um fantástico “mamute siberiano”.
A expressão de Hoberman rendeu o título do documentário de Vicente Ferraz. Soy Cuba – O Mamute Siberiano, vencedor do prêmio da crítica e de melhor documentário no último Festival de Gramado, já é sucesso no exterior antes de ser lançado no Brasil.
O espectro de relações estabelecidas por Ferraz inclui o cinema latino-americano (teria sido Glauber influenciado por Kalatozov?). Já o paralelo entre o relativo esquecimento de Soy Cuba e a decadência do sonho revolucionário cubano é um dos recursos menos sutis que ele emprega, embora pareça irresistível.
# SOY CUBA – O MAMUTE SIBERIANO
Brasil, 2005
Direção e roteiro: VICENTE FERRAZ
Produção: ISABEL MARTINEZ
Fotografia: VICENTE FERRAZ, TAREQ DAOUD
Montagem: MAIR TAVARES, DULL JANIEL
Música: JENNY PADRÓN
Duração: 90 minutos