Críticas


2046 – OS SEGREDOS DO AMOR

De: WONG KAR-WAI
Com: TONY LEUNG, GONG LI, ZHANG ZIYI, FAYE WONG, CARINA LAU
17.01.2006
Por Nelson Hoineff
A BUSCA PELAS PAIXÕES TRANSFORMADAS

Há um momento em que uma obra de arte é capaz de superar o artista. Um momento especial em que a exposição de um enredo ou uma trama tornam-se secundários; em que a técnica ou a maneira de narrar são reconhecidos como instrumentos importantes de expressão mas não como um fim; um momento absolutamente mágico em que a obra chega ao espectador não mais como a expressão de uma idéia ou pensamento, mas como uma instância avançada de interlocução.



É nesse momento que a obra não está apenas divertindo o espectador, ajudando-o a passar o tempo ou mesmo formando sua consciência; ela está servindo a ele. É aí que a obra assume um papel insubstituível na sua vida. É aí que ela se supera.



Quando a arte assume este papel, ela não pode ser rivalizada talvez por qualquer outra forma de interlocução. Pode-se dizer que a relação da obra com o espectador se dá como o paroxismo da química que às vezes ocorre milagrosamente entre dois seres humanos. É uma questão que se esconde nos indecifráveis caminhos do repertório compartilhado, da compreensão, da cumplicidade.



Não é simples perceber o instante em que isso acontece, nem como isso acontece. Mas é este certamente o caso de 2046, que ganhou o indecifrável subtítulo brasileiro “os segredos do amor” (uma vez que não há segredo algum na ação e se houvesse o filme estaria longe de revelá-lo).

Wong Kar Wai narra seu filme em camadas, que se superpõem para formar um conjunto homogêneo e ainda assim interdependente; ele desenvolve uma técnica visual sofisticada, onde os planos são concebidos para produzir atmosfera em doses maiores que significados. Mas o verdadeiramente importante é que Wong produz ensinamentos, estimula o auto-conhecimento a um nível em que poucos outros cineastas - e certamente nenhum psicanalista - são hoje capazes de fazer .



Já era assim desde seu filme anterior, Amor à Flor da Pele. A percepção de que é sempre muito cedo ou muito tarde para o amor, que naquele filme estava permanentemente presente, é agora explicitado pelo narrador e constitui a espinha dorsal de 2046, um filme muito mais sofisticado em todos os aspectos.



Wong deixa transparente sua intenção de fazer de um a continuação oblíqua do outro. Os personagens principais têm o mesmo nome (embora não sejam o mesmo personagem), a referencia a 2046 já existia em outro apartamento do filme de 2001 (embora num diferente contexto) e até mesmo as referências musicais (com ênfase nos clássicos ocidentais e em particular em Nat King Cole) também são as mesmas.



O que muda tudo é a introdução da memória. Ou melhor: da memória e seu resgate. O diálogo entre a obra e o espectador se aprimora. Vamos agora em busca do que antes sabíamos perdido. Se quisermos procurar algum mistério em 2046, temos que olhar para nós mesmos. Todas as memórias estão no futuro. Muitos foram procurá-las. Ninguém conseguiu voltar.



Mas se existia, digamos assim, uma paixão, que depois deixou de existir, então essa paixão há de estar hoje em algum lugar, como em algum lugar está hoje o vapor em que a água se transformou. Esse é um conceito físico. 2046 fala de uma desesperada busca pelas paixões transformadas. O que há de mais relevante para se buscar? Um tesouro enterrado?



Wong reverencia com nitidez a nossa tragédia. Coloca no simples olhar de Tony Leung (em contraste com seu divertido trejeito bogartiano) a nossa incontrolável necessidade de tomar o expresso para 2046. Seria melhor que pudéssemos continuar indefinidamente na ilha do tesouro enterrado. De bom grado, daríamos anos de nossas vidas para não termos conquistado esse repertório.



# 2046 – OS SEGREDOS DO AMOR (2046)

China/França/Alemanha/Hong Kong, 2004

Direção, roteiro e produção:
WONG KAR-WAI

Fotografia: CHRISTOPHER DOYLE, KWAN PUN LEUNG, YIU-FAI LAI

Montagem e desenho de produção: WILLIAM CHANG SUK PING

Música original: PEER RABEN, SHIGERU UMEBAYASHI

Direção de arte: ALFRED YAU

Elenco: TONY LEUNG CHIU WAI, GONG LI, ZHANG ZIYI, FAYE WONG, CARINA LAU, KIMURA TAKUYA

Duração: 130 minutos

Site oficial: clique aqui

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