Críticas


O.J.: MADE IN AMERICA

15.02.2017
Por Alberto Flaksman
O documentário é eletrizante, como nos melhores filmes policiais e de suspense, mas vai muito além disso.

Para muitos, inclusive para mim, “Shoah”, um filme de 9 horas e meia sobre o Holocausto, o genocídio dos judeus da Europa, é o maior documentário jamais produzido. Claude Lanzmann, o cineasta francês que produziu e dirigiu “Shoah” em 1985, construiu o seu filme em torno de poucas imagens históricas – os assassinos nazistas jamais tiveram a intenção de documentar os seus crimes – e de um grande número de extensas entrevistas com sobreviventes dos campos de concentração, além de algumas com uns poucos responsáveis pelas chacinas.

Agora, três décadas depois, surge um novo documentário à altura do grande clássico. Trata-se de “O. J.: Made in America”, um filme de 7 horas e 50 minutos de duração que narra a ascensão e queda de Orenthal James Simpson, um ídolo do futebol americano que se tornou mundialmente conhecido por ter sido acusado do assassinato de sua mulher. Dirigido pelo norte-americano Ezra Edelman, esse documentário excepcional traça, em paralelo à biografia de Simpson, um panorama inigualável da história política, sócio-econômica e cultural dos Estados Unidos na segunda metade do século passado.

Fazendo uso amplo e judicioso do grande acervo de imagens disponível na terra do cinema e da televisão, assim como de entrevistas com dezenas de amigos e parentes de Simpson e da sua ex-mulher assassinada, além de jornalistas, policiais, jurados, advogados e promotores que atuaram no caso, e narrando o caso na ordem cronológica real em que se deram os acontecimentos, o documentário adquire uma característica eletrizante, como nos melhores filmes policiais e de suspense, daqueles que não se consegue parar de assistir. Mas ele vai muito além disso.

O. J. Simpson nasceu num conjunto habitacional para famílias pobres e exclusivamente negras em Los Angeles, na Califórnia. Revelou-se um atleta talentoso, muito forte e rápido. Graças às suas qualidades esportivas, conseguiu uma bolsa para a Universidade do Sul da Califórnia (U.S.C.) , então uma instituição frequentada apenas por estudantes brancos, e levou o seu time a ser um dos mais competitivos do futebol americano universitário no país. Em seguida, tornou-se profissional e fez grande fama e fortuna nos estádios defendendo a equipe dos Buffalo Bills, do estado de Nova York.

Como se não bastasse, O. J. – como ficou conhecido por seus compatriotas –iniciou uma carreira de sucesso como ator, primeiro em comerciais, logo em filmes e programas de televisão que o tornaram ainda mais conhecido. Milionário, largou o esporte e voltou a morar em Los Angeles, no exclusivo bairro de Brentwood, onde era, nas palavras de um dos entrevistados, “o único negro da vizinhança”. Na verdade, O. J. jamais se considerou negro. Alto, bonito e comunicativo, ele fez questão de se afastar de todas as questões polêmicas que agitaram o panorama político e social dos Estados Unidos nos anos 1960. Manteve-se alheio às lutas pelo fim da discriminação racial e não externou qualquer opinião quando Martin Luther King foi assassinado. Quando perguntado sobre este e outros assuntos que interessavam a comunidade negra, dizia não ser a favor de negros nem de brancos, e sim “a favor de O. J. Simpson”. Isto, evidentemente, aumentou a sua popularidade entre a maioria branca, então conhecida como a “maioria silenciosa”.

Já morando na sua mansão de Los Angeles, O. J. divorciou-se de sua primeira mulher, uma jovem negra que ele havia conhecido na comunidade em que seus pais viviam, para casar-se com Nicole, uma bela garota loura que ele conheceu num restaurante. Nicole era muito mais moça que ele, enquanto O. J., muito famoso e requisitado, era considerado um grande conquistador. O casamento entre ambos conheceu inúmeras turbulências e gerou muitos chamados de Nicole à polícia local para protegê-la das surras que O. J. lhe aplicava. Mas ela sempre se recusava a dar seguimento legal aos seus pedidos de socorro. O casamento acabou em divórcio, mas as surras continuaram. Até que, uma noite, a polícia foi chamada por vizinhos alarmados pelos gritos de Nicole, que já então morava separada do ex-marido. Ao chegar lá, os policiais encontraram o seu corpo brutalmente esfaqueado, junto com o cadáver de seu jovem namorado.

Ao contar a história de O. J. e do seu julgamento, que mobilizou a opinião pública local e até mundial nos anos 1990, o documentarista Ezra Edelman faz o painel mais devastador de que tenho notícia sobre a sociedade dos Estados Unidos, revelando o racismo ainda prevalecente, o oportunismo da mídia, o culto desabrido ao dinheiro e à celebridade, assim como as distorções e mentiras que mancham o seu sistema judicial. “O. J.: Made in America” desnuda, com calma e documentos implacáveis, uma sociedade doente.

Além de ter sido exibido em 5 episódios pelo canal de televisão ESPN, que o produziu, o filme foi também lançado em alguns cinemas nos Estados Unidos, de modo a poder concorrer ao prêmio de Melhor Documentário de Longa Metragem, na próxima edição do Oscar. Acho que este filme extraordinário não tem concorrentes à vista, mas veremos o que decidem mais uma vez os jurados de Los Angeles.

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