Martin Scorsese sempre usou de forma deliberada o efeito do silêncio em seus filmes. Muito do que intriga até hoje em Taxi Driver são as cenas silenciosas de Robert De Niro dirigindo e observando Nova York. Famosos também são os silêncios de Touro Indomável. Lembro-me especialmente de uma cena em que um lutador adversário momentaneamente estuda Jake LaMotta antes de partir para cima dele e demoli-lo. Outra inesquecível acontece em Os Infiltrados, no trecho em que Matt Damon descobre o número do celular de Leonardo DiCaprio e liga para checar se o outro se entrega pela voz. A cena dura uns 15 segundos, e ninguém fala ao telefone. Os dois ficam apenas sentindo a presença do outro, e esse pequeno branco na trilha, ecoa por todo o filme.
Scorsese é chegado nestas brincadeiras sensoriais, mas nunca trabalhou esse efeito de forma tão depurada como ele faz agora em Silêncio (Silence, 2016). Sequer há uma trilha musical no filme. O protagonista, padre Rodrigues (vivido por Andrew Garfield), é testemunha de tantas atrocidades em sua viagem clandestina para o Japão, que passa o filme inteiro pedindo a Deus um sinal de intervenção contra as barbaridades do mundo.
O padre se tortura frente à falta de resposta.
As três horas em que o personagem imerge neste conflito de dúvida e crise estão sendo visto por muitos críticos como um calvário. Não partilho desta opinião.
Pode-se reclamar da autenticidade da cena, afinal os jesuítas portugueses falam o tempo todo em inglês, ou ainda da intolerância com que o Xogum no filme persegue os missionários, afinal a reação nipônica vai justamente contra o interesse europeu de usar os jesuítas para tentar colonizar o Japão.
Mas não se trata de um filme com fronteiras bem definidas, a destacar as acusações de maniqueísmo (os japoneses sendo mostrados como algozes e os jesuítas como vítimas). Scorsese nunca trabalha personagens ou questões de forma redutora. É preciso quebrar a superfície das aparências para entender o que o diretor experimenta nesta adaptação do livro de Shusaku Endo.
Silêncio é um filme de oposição. Evolui na direção exatamente inversa à da Hollywood contemporânea (não à toa, o filme foi ignorado na festa do Oscar). Por vezes, ele nos diz o quanto existe de crença em cada adulto. Outras, enfatiza o quanto pode haver de infantil na fé de cada um. E à medida que o filme evolui, e que Andrew Garfield se entrega de corpo e alma a esse estranho padre em que corpo e alma nunca coincidem, o filme passa a se particularizar.
Vistos do alto, o bispo e dois jesuítas aparecem como três figuras diminutas, logo numa das primeiras cenas. Depois, o mesmo ocorre quando nos deparamos com os missionários dentro de um barco sendo açoitados pelas águas do mar com um ponto de vista do céu. A pequenez humana instaura-se plenamente em dois cortes. O curioso é como Scorsese rompe essa estrutura nas cenas seguintes. Começa como uma ideia pequena, mas o diretor sugere que as mínimas dúvidas deste diminuto padre estão crescendo. E elas, de fato, aumentam até tomar um tamanho assombroso.
Não são só dúvidas: o medo frente ao vazio e à morte abate o personagem de tal modo que ele se acovarda e, à certa altura, deixa bem claro que está prestes a desistir da sua missão. É por isso que ele procura tão obsessivamente seu mestre desaparecido (vivido por Liam Neeson) em Nagasaki. Em sua busca por uma resposta que não se materializa, nem pelo homem e nem por Deus, ele se afunda numa espécie de embriaguez, que cala cada vez mais fundo.
Em estrutura, o filme lembra muito a viagem de Willard (Martin Sheen) à selva asiática em Apocalypse Now, o que nos leva a deduzir que este talvez seja "o Coração das Trevas de Scorsese".
A ambição é grande, mas as semelhanças com a ópera de guerra de Francis Ford Coppola param por aí. Scorsese foge o tempo todo do espalhafatoso, da grandiloquência. Cada detalhe é depurado: o roteiro, a composição dos atores, a encenação. A forma como o diretor trabalha com os espaços intriga. Amplos, em princípio, gradativamente vão encolhendo no decorrer, até o personagem ficar encerrado numa cela diminuta. Há, aliás, os espaços físicos e, também, os psicológicos. De repente, o espectador precisa lidar com diversos ambientes ulteriores: espaços que repercutem em outros espaços; situações que invadem outras e mudam nossas percepções, situações anteriores e comportamentos que acreditávamos já entender ou conhecer por completo.
De certo, olhando de longe há carrascos e vítimas em cena, mas aproximando-se um pouco mais, existe uma questão filosófica um pouco mais sutil sobre a dimensão do que é visto e do que transcende essa condição. É antes de tudo o mistério do ser e do crer que Scorsese consegue com êxito captar na sua complexidade.
Cada um porta em si uma parte indefinível de luz e de sombra, a exemplo do personagem encarnado por um Andrew Garfield magistral: sua inocência, seu sofrimento, sua estupidez o tornam demasiado humano.
Curioso também como as diferenças entre a cultura ocidental e oriental, que antes são mostradas como imensas, a certa altura se unem e quase parecem indistinguíveis. Antes de morrer, um velho japonês diz ao jesuíta que soube lhe estender a mão: “Eu estou em ti, tu estás em mim... Nós estamos juntos...”
Em essência, no filme, a terra fica cada vez mais escura, o céu mais sombrio e os ditames políticos parecem cada vez mais opressivos, mas alguma coisa misteriosa, no íntimo, continua a ser partilhada por todos. Alguns podem enxergar consolo religioso nisso. Claro que não vou contar o que acontece, mas penso que Scorsese transcende a religião.
O espectador fica à vontade para decidir e discutir.