Crime Delicado é um filme que evidencia fronteiras. Entre ficção e documentário, cor e p&b, teatro e cinema, precisão e improvisação, desejo e ética, espectador e participante, obra de arte e intimidade, crime e delicadeza. Beto Brant não as ultrapassa na estrutura deste seu trabalho, mas filma personagens que quebram barreiras – o crítico de teatro Antonio Martins (Marco Ricca, excelente), que, apaixonado pela jovem Inês (Lilian Taublib, em impactante estréia na tela grande), cede aos próprios impulsos e acaba sendo acusado de estuprá-la; e a própria Inês, que, simbolicamente, transgride a demarcação de distância imposta pelos museus e deposita, próximo a uma determinada obra, sua perna falsa.
O enredo não tem importância em si. Como em Woyzeck , texto inacabado de Georg Büchner, o material original (no caso do filme, o romance de Sergio Sant’Anna) serve de pré-texto para uma criação independente. E é justamente de uma fala da montagem de Cibele Forjaz para Woyzeck que vem uma importante senha de entrada para Crime Delicado . “Todo homem é um abismo. A gente fica tonto quando olha para dentro dele”, diz Matheus Nachtergaele, ator do espetáculo.
Beto Brant investiga o interior, não no caminho de problematizar o conceito mas de apontar para a conexão entre a expressão da interioridade e a gestação de uma obra. “Nós somos artistas porque achamos que através da arte conseguimos compartilhar as transformações por que passamos”, assinala o pintor José Torres Campana, interpretado por Felipe Ehrenberg – que não surge escondido atrás de uma determinada ficção, mas falando, através de sua personagem, como artista plástico que realmente é.
Por meio de Campana/Ehrenberg, Brant expõe três momentos da ligação arte/vida. No primeiro, o pintor Campana desenha sua nudez e a de Inês, na função de modelo, também nua ao seu lado; no segundo, o pintor se relaciona quase fisicamente com a obra, sobrepondo camadas de tinta e aperfeiçoando a criação; e no terceiro, a modelo chora ao se ver representada na obra. Talvez esta reação se deva ao fato de Inês ser confrontada com a exposição de sua privacidade.
Trata-se de algo muito importante numa época em que o corpo nu não é mais encarado com freqüência como algo pertencente à esfera do privado. E o fato de Campana e Inês não obrigatoriamente transarem não significa que desconsiderem a parcial carga reveladora da exposição da nudez. Ao ficarem nus um frente ao outro, eles suspendem a hierarquia que poderia haver entre os papéis de artista e modelo – como que ressaltando uma impossibilidade de conjugar hierarquia com exposição do corpo. Já Antonio, mesmo perdendo o controle e a cor da vida ao longo da projeção, jamais se desnuda literalmente.
Há ainda uma louvável ousadia temporal. No segundo “movimento” de Campana, Beto Brant abre mão do bom senso e coloca, durante alguns minutos, o espectador diante do artista envolvido com a confecção de sua obra. Quando mostra trechos de peças de teatro – além de Woyzeck , Confraria Libertina e Leonor de Mendonça –, o cineasta também causa incômodo ao incorporar um tempo teatral algo árido.
O destaque ao teatro alternativo, distante (ou, pelo menos, não muito próximo) dos holofotes da mídia, imprime um certo ar paulistano a Crime Delicado , impressão reforçada pelas cenas em bares e espaços não-convencionais para vernissages – todos, de uma forma ou de outra, ambientes underground que, mais uma vez, remetem à interioridade e sublinham um determinado modo de encarar a arte.
# CRIME DELICADO
Brasil, 2005
Direção: BETO BRANT
Roteiro: BETO BRANT, MARÇAL AQUINO, MAURÍCIO PARONI DE CASTRO, MARCO RICCA, LUIS F. CARVALHO FILHO
Produção: RENATO CIASCA, BIANCA VILLAR
Fotografia: WALTER CARVALHO
Montagem: WILLEM DIAS
Música: VU STUDIO
Elenco: MARCO RICCA, LILIAN TAUBLIB, FELIPE EHRENBERG, MARIA MANOELLA
Duração: 87 minutos