Não exatamente uma minissérie, pois funciona muito bem como um documentário de longa metragem que poderia ter estreado em salas de cinema – mas que foi lançado pela Netflix em três capítulos que, já disponíveis pela rede, podem (ou devem) ser vistos de enfiada, gastando-se para tal não mais do que três horas e poucos minutos. Na verdade é difícil parar de ver Five came back, co-produção caprichada de Steve Spielberg com Laurent Bouzereau - que também assina a direção - e mais vinte co-produtores a partir do roteiro de Mark Harris (baseado em livro de sua autoria) sobre o que fizeram durante a II Guerra Mundial cinco dos mais famosos e significativos diretores da “era de ouro” de Hollywood: Frank Capra, John Ford, John Huston, George Stevens e William Wyler.
Qualquer cinéfilo que se preze sabe que John Ford nasceu para fazer cinema: vendo suas tomadas fica a impressão de que ele filmava como quem respira, tendo deixado um conjunto de obras-primas que vão, pelo menos, desde No Tempo das Diligências (1939) até O Homem que matou o facínora (1962), passando por uma dos maiores filmes de todos os tempos, Rastros de Ódio (1956). O fã também deve se interessar por alguns aspectos pessoais do “Homero do western”, especialmente sobre o que é que ele fez na guerra. E vai poder saber, vendo este documentário: não foi pouco e foi relativo a um dos momentos mais marcantes do conflito. Também vai ficar sabendo que Ford bebia pesado e - mais do que nunca – bebeu durante três dias seguidos depois de ter filmado um determinado fato. Pois ele, Stevens, Wyler e Huston alistaram-se para fazer filmes de propaganda a favor dos aliados e contra o nazi-fascismo, sendo que na esfera mais específica de propaganda, Capra nem precisou estar muito nas zonas de maior perigo: tendo visto o filme de Leni Riefenstahl, O Triunfo da Vontade, achou que Hitler venceria a guerra, tendo-se dedicado a retrabalhar filmes dos nazistas fazendo remontagens a serviço de contra-propaganda em Washington mesmo. Já Stevens foi o primeiro a filmar o que as forças de libertação encontraram no campo de concentração de Dachau - e o que ele filmou chegou a ser exibido no primeiro grande Julgamento de Nurenberg, servindo para exemplificar as atrocidades cometidas, até então inimagináveis.
William Wyler já havia feito um filme de ficção, Rosa de Esperança (1942), que pretendia mesmo ser uma peça de propaganda - e como tal foi compreendido e elogiado por Churchill - a favor de que os EUA entrassem na Guerra. Em Mrs. Miniver (título original), via-se o dia-a-dia de uma família inglesa que participava, cada qual a seu modo, na defesa de sua pátria. Longe de ser o melhor filme do cineasta, traz, entretanto, na cena final, um mobilizante discurso proferido pelo personagem de um pároco, mas que foi escrito – hoje se sabe – pelo próprio Wyler. Embora nunca tenha aceitado assinar um roteiro, nem mesmo em parceira, ele interferia muitíssimo na elaboração dos roteiros que filmava. O filme recebeu vários prêmios no Oscar daquele período, inclusive o de direção, entregue a sua esposa, pois ele havia se alistado na Força Aérea e estava filmando batalhas no ar para o documentário Menphis Belle – a história de uma fortaleza voadora com enorme risco de vida: se o avião de onde filmava fosse atingido, caísse e ele sobrevivesse em terras ocupadas pelos nazistas nem seria preso como soldado, mas enviado para a morte por ser judeu.
Talvez por essa origem comum, mas também pela admiração que Spielberg parece sinceramente nutrir pelos filmes de Wyler, é o realizador de O Resgate do Soldado Ryan quem mais faz comentários sobre “Billy-40 takes” (como era conhecido o diretor de Ben-Hur (1959) por exigir de seus atores tomadas e mais tomadas da mesma cena).
Além de Spielberg, também participam com comentários explicativos sobre os diretores abordados Francis Ford Coppola, Guillermo Del Toro, Paul Greengrass e Lawrence Kasdan - cada um mais dedicado a um dos outros cinco que foram à guerra. E que voltaram, como diz o título do doc.
Aliás, o que se passa na volta é ainda mais interessante do que o “antes” da guerra (primeiro episódio, “A Missão começa”) e mesmo do que o espetacular “durante” (segundo episódio, “Zonas de Combate”): “O Preço da Vitória” (terceiro e último episódio) mostra como esses cinco homens que, anteriormente, estariam acostumados a carreiras e conforto hollywoodianos (ainda que trabalhando bastante), retornaram marcados pelo que vivenciaram. O exemplo mais impactante talvez seja o de George Stevens: antes da guerra ele dirigia quase que apenas comédias, tendo até mesmo assinado um dos famosos musicais “escapistas” com Fred Astaire e Ginger Rogers; de volta ao lar e ao trabalho, Stevens nunca mais dirigiu filmes com enredos “leves”, cabendo lembrar que se destacam em sua obra dos anos 1950 em diante Um Lugar ao Sol (baseado em “Uma Tragédia Americana” de Theodor Dreiser), Os Brutos também amam e, principalmente O Diário de Anne Frank.
Wyler, por outro lado, sempre havia sido mais afeito a enredos dramáticos e, quando possível, de fundo social (Beco sem saída, de 1937 ou Pérfida, de '41), mas também sua experiência pessoal teria sido, de algum modo, utilizada em Os Melhores Anos de Nossas Vidas (1946) - para muitos, sua obra-prima, retratando a inadaptação de três ex-combatentes em tempos de paz. Spielberg diz que revê este filme pelo menos uma vez por ano e o exibe para os que o desconhecem.
A mais recente biografia escrita por Gabriel Miller, “William Wyler – The Life and Films of Hollywood’s Most Celebrated Director”, enfocando bem mais sua obra do que sua vida pessoal - já destaca alguns aspectos de suas realizações no pós-guerra que ainda não haviam sido percebidos pela crítica: não só alusões ao McCartismo (em Chaga de Fogo, de '51, por exemplo), a famosa caça às bruxas que também ficou de olho em Wyler exatamente por “Os Melhores anos...” (como dizer que a pátria americana não tratava bem seus heróis de guerra?) e que quase deixou nas prateleiras Perdição por Amor (de '52, também baseado em livro de Theodor Dreiser) por mostrar, numa breve cena, um albergue miserável onde mendigos iam dormir. Miller também faz uma análise sociopolítica dizendo que o Wyler que voltou da 2a.Guerra foi um diretor que refletia sobre o capitalismo (embora já fizesse isso desde Pérfida) e a estrutura social (também já fazia isso em Beco sem saída), a guerra e o pacifismo. O biógrafo propõe que há uma consistência temática também no que chamou de “Dilema Pacifista” em Sublime Tentação, Da Terra Nascem os Homens e Ben-Hur, todos da segunda metade dos anos 1950. Embora estes aspectos não cheguem a ser aventados no doc da Netflix, há concordância quanto à transformação pela qual Wyler e os demais teriam passado depois de vivenciar o inferno da guerra.
Ainda que elogioso em boa parte do tempo, Five came back não é condescendente: há algumas farpas sobre Ford (muito competitivo, dizem, não quis emprestar equipamentos das forças armadas a Wyler para este começar logo a filmar) e Huston nem sempre fica bem na fita por ter re-criado uma batalha que já havia acabado quando chegou lá com sua equipe em A Batalha de San Pietro : fez jogarem mais bombas numa aldeia italiana apenas para re-criar o conflito e construir um falso documentário! Mas ter filmado as “neuroses de guerra” (hoje “Distúrbios de Stress Pós-Traumático”) no intenso Let there be light pode redimi-lo em grande parte.
Muitos outros aspectos e detalhes factuais interessantes são informados também pela narração discreta em off de Meryl Streep. A edição é bastante funcional, sendo exibidos trechos de filmes hollywoodianos dos cineastas enfocados e – claro - do que foi filmado na guerra por Ford (A Batlha de Midway) e por Wyler (Memphis Belle e Thunderbolt, em cuja filmagem Wyler perdeu a audição), além dos já citados de Huston e mais Report From the Aleutians ; de Capra, The Battle of Russia, e de Stevens, Nazi Concentration Camps, além de The Negro Soldier, cujo argumento Wyler rejeitou filmar ao perceber que seria muito “guiado” pelos departamentos militares (para os quais eles trabalhavam e aos quais tinham que prestar contas) no sentido de não exibir como era a verdadeira discriminação racial na época - e que acabou tendo sido realizado por Stuart Heisler.