A crítica francesa mais intelectualizada, aquela voltada para os filmes mais formalmente inovadores, tem denunciado o naturalismo que tem caracterizado um certo cinema francês contemporâneo. Divines, a ótima estreia da cineasta Houda Benyamina, Caméra d'Or do Festival de Cannes de 2016, seria o protótipo perfeito desse modelo de filme, que narra a busca desenfreada pelo êxito material e o preço a pagar por esse materialismo excessivo, fomentado pela indústria capitalista.
A narrativa acompanha a rápida evolução de Dounia e Maimouna, duas adolescentes francesas, na carreira do tráfico de haxixe. Filhas de imigrantes africanos, elas moram nas periferias das grandes cidades e encarnam um desejo de pertencimento pelo consumismo de muitos jovens desfavorecidos espalhados pelo mundo. Conscientes da marginalização que a sociedade lhes inflige e de que os cursinhos técnicos que eles realizam não os conduzirão a lugar algum, servindo muito mais para perpetuá-los na miséria, eles querem tudo, o mais rapidamente possível e sem fazer esforços.
Se Maimouna, a jovem negra, mora num conjunto habitacional (as favelas francesas) e possui um quadro social mais estável, com uma mãe e um pai presentes e preocupados, Dounia, de origem árabe, não conhece o pai e vive num acampamento de ciganos com um tio travesti e uma mãe alcoólatra e volúvel. Muito menos imatura que sua progenitora, Dounia assume o duplo papel de mãe e de arrimo de família. Sua vontade de ganhar muito dinheiro (“money, money, money”) passa, além do materialismo primário, pela determinação quase obsessiva de deixar, junto com seus parentes, o lugar miserável onde vivem. Sua ascensão na delinquência lembra o personagem de Filé-com-Fritas (Darlan Cunha), de Cidade de Deus. Como este, ela também recusa ser chamada de criança.
Como muitos jovens de nossas favelas, Dounia é movida pelo ódio social e por um incomensurável sentimento de revolta em relação a uma sociedade que não forneceria os mesmos direitos e as mesmas oportunidades aos mais pobres, privando-os dos meios para alcançar o universo material que suas propagandas alardeiam. Para esses jovens, o sentimento de pertencimento passa pelo acesso ao mercado de consumo. Algumas sequências do filme representam isso de forma muito clara. Antes mesmo de começarem a ganhar dinheiro com o tráfico, elas aparecem salivando diante da vitrine de uma sapataria sonhando com os tênis de marca que comprarão. Uma outra cena, cheia de poesia e onirismo, mostra as duas imaginando um passeio de Ferrari na ilha de Phuket, na Tailândia, enquanto vemos a miséria ao fundo. Há ainda a cena que as mostra saindo de uma loja carregando várias sacolas, com um porte altivo e orgulhoso; uma outra que as mostram descendo a avenida dos Campos Elísios, utilizado aqui em sua acepção mitológica como o paraíso do consumo de luxo, num carro conversível.
Todavia, a sequência mais emblemática desse sentimento de felicidade consumista mostra Dounia e o jovem que a paquera dançando felizes e apaixonados no interior de um supermercado fechado. É durante essa sequência que ela revela finalmente seu nome ao jovem. É no interior desse espaço, templo mor do consumismo que lhe é cotidianamente vedado pela falta de dinheiro e pelos seguranças, e que de repente aparece integral e exclusivamente à sua disposição, que ela ganha uma identidade, passando, como diria Roberto DaMatta, de indivíduo à pessoa. Uma identidade que é fundamental para alguém que, como ela, detesta ser chamada de bastarda.
Uma das características do naturalismo é a opção pela simples exposição objetiva e acrítica da realidade. Assim, mesmo que a narrativa não condene abertamente o abandono do Estado nem a opção dos jovens, ela revela os laços de causalidade entre a inação do primeiro, que aparece de forma muito clara na sequência final, e o suicídio social dos segundos, cujo sentimento de indignação é, infelizmente, canalizado para a satisfação de um desejo material imediatista e individualizado, em vez de ser utilizado como móvel para uma revolta social coletiva e perene. Na falta de amparo, os jovens desfavorecidos escolheriam o campo de batalha e as armas erradas, aparecendo como os únicos responsáveis por seus destinos.
O roteiro do filme inverte alguns valores tradicionais inerentes às camadas inferiores da sociedade francesa. O primeiro é a problemática relação entre homens e mulheres. Nas periferias, as jovens, notadamente (mas não exclusivamente) as de origens norte-africanas, parecem ter mais direitos do que deveres. No filme, ao contrário, são elas que comandam os homens, representados majoritariamente como submissos e reificados (até mesmo algumas tradicionais expressões machistas são feminizadas), ainda que para se afirmarem, elas precisem, muitas vezes, abdicar da feminilidade. Os homens são observados da mesma forma furtiva, invasiva e concupiscente que elas são olhadas.
Em seguida, o roteiro procura ainda dessacralizar a religião e o espaço religioso, tão importantes e onipresentes na vida da população de baixa renda. As vestes religiosas são usadas não para dissimular seus corpos, mas para esconder os produtos que elas furtam nos supermercados; o esconderijo da droga é ao lado da mesquita improvisada (o que denuncia a falta de espaços para a prática religiosa dos muçulmanos), enquanto uma igreja aparece como o lugar ideal para uma negociação envolvendo drogas. Poderíamos sublinhar ainda a oposição entre a relação quase simbiótica existente entre as duas jovens e o conflito histórico entre árabes e negros que atinge a população das periferias francesas.
Louvável a ideia de apresentar a arte, tão cara a muitos jovens periféricos, como uma solução possível ao subemprego e ao tráfico de drogas, e de renúncia a um happy end que mostraria, de forma quase bíblica e irreal, o amor como redenção num universo marcado por diversas formas de violência.
O ponto alto é o elenco encabeçado pelas três jovens atrizes que sustentam e conduzem o filme do início ao fim. As duas principais estão realmente divinas. Particularmente a jovem Oulaya Amamra (irmã da diretora), intérprete de Dounia, que esbanja talento. Ela consegue transmitir toda a complexidade de um personagem que é ao mesmo tempo destemido, irresponsável, inconsequente, dramático, rebelde, genioso e apaixonante.
A direção de Houda Benyamina é bastante segura para um primeiro filme. Lamentável apenas as citações desnecessárias de alguns filmes que têm a violência como tema. Se entendemos a rápida citação a Taxi Driver feita pelas atrizes logo no início (para anunciar a inversão de papéis de gênero), aquelas feitas a O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter, de Charles Laughton) e, no final do filme, ao Poderoso Chefão 3, quando a diretora corta o som do grito de desespero de sua heroína tal qual fizera Coppola com o personagem de Michael Corleone, parecem meros clichés.
Lamentável e incompreensível que esse pequeno mas muito interessante filme não tenha sido distribuído para os cinemas. No Brasil, ele está disponível no Netflix, que o co-produziu.