Críticas


OUR SON

De: Bill Oliver
Com: Luke Evans, Billy Porter, Robin Weigert
31.10.2023
Por Maria Caú
O Kramer vs. Kramer gay

Há pelo menos dois filmes que ficaram famosos no cinema estadunidense por tratarem de processos judiciais de custódia, os magníficos Kramer vs. Kramer (1979, dirigido por Robert Benton) e Uma babá quase perfeita (1993, dirigido por Chris Columbus). Esses dois títulos têm por protagonistas homens de bom coração, apesar de patologicamente imaturos e maus maridos para suas esposas, que, após serem surpreendidos com um pedido de divórcio, lutam para conseguir a guarda de seus filhos em um período histórico em que os juízes estavam muito inclinados a concederem a custódia preferencialmente para as mães. Ambos os personagens percorrem uma trajetória de amadurecimento a partir de seu convívio a sós com os filhos, da qual emergem como homens melhores e pais mais conscientes. Esses dois emocionantes filmes tiveram muita ressonância no momento em que foram lançados – Kramer vs. Kramer foi o grande vencedor do Oscar de 1980, dando a Meryl Streep sua primeira estatueta, e Uma babá quase perfeita foi um enorme sucesso internacional de bilheteria, consagrando Robin Williams como a grande estrela dos filmes infantis dos anos 1990. Nesse contexto, há diversas histórias de advogados que supostamente usaram trechos dessas obras em tribunal. Nos últimos anos, surgiram alguns filmes que tratam de processos de guarda compartilhada, mas nenhum pareceu ter a mesma relevância cultural. Até Bill Oliver dirigir Our Son, um Kramer vs. Kramer gay, que trata do mesmo tema de uma perspectiva original.

Nas últimas décadas, o cinema LGBTQIA+ se centrou majoritariamente em dois tipos de histórias: narrativas de luta contra a opressão (o que engloba também os filmes em que a jornada do personagem central é a da autoaceitação) e celebração do amor (obras centradas no amor não heterossexual em todos os seus vieses). Finalmente, o cinema parece estar adentrando o momento histórico das narrativas com outros recortes da experiência heterodissidente. Finalmente, a vivência não heterossexual começa a ser retratada em amplitude, com personagens que vivem toda a sorte de conflitos, aventuras e dissabores. Neste contexto, é preciso ressaltar o frescor de filmes como Our Son, que trata sobre um divórcio entre dois homens depois de uma relação de 13 anos.

Nicky (Luke Evans), um editor de livros bem-sucedido de Nova York, se surpreende quando o marido, Gabriel (Billy Porter), pede o divórcio, alegando a prolongada ausência emocional do esposo, que está sempre trabalhando e pouco se ocupa do filho dos dois, delegando todos os cuidados com o garoto para ele, que inclusive abandonou sua carreira de ator para cuidar da criança em tempo integral. Chama a atenção, desde a primeira cena, em que Nicky chega atrasado para uma apresentação escolar de Owen, o fato de que o casal claramente reproduz uma dinâmica muito tradicional das relações heterossexuais, com um dos dois (Gabriel) no papel historicamente legado à mulher, se ocupando unicamente dos cuidados com a criança e o lar (sendo inclusive muito atuante na associação de pais do colégio) e o outro assumindo o papel dito “masculino” (provendo financeiramente, sendo consumido pelo trabalho, participando menos do dia a dia familiar). Quando Gabriel revela a Nicky que se sente solitário e quer a separação, o editor precisa repensar suas escolhas e reconstruir a relação com o filho, com quem ele inclusive passava pouco tempo a sós.

Our Son explora com muita habilidade a dor do divórcio para casais gays. Em um momento do filme, um familiar diz a Nicky: “Deve ser difícil lutar tanto pelo direito de se casar e depois se divorciar como todo mundo”, fala que ecoa o sentimento íntimo do protagonista, que sempre acreditou ter um casamento inabalável e percebe aos poucos que foi negligente com a família. O filme conta com cenas bastante emocionantes, permeadas por um humor orgânico, centrado, por exemplo, nas questões raciais, colocadas de forma bastante sutil (Gabriel é negro e Nicky, branco; Owen, uma criança percebida como negra, é filho biológico de Nicky e de uma amiga do editor, uma mulher negra que vive em Londres). É outro elemento de frescor que o processo judicial se recuse a tematizar o preconceito; de fato, nem os advogados de ambas as partes ou mesmo o juiz tratam Nicky e Gabriel com qualquer sinal de discriminação, o que não quer dizer que a disputa não traz os típicos momentos de tensão, em que o ex-casal troca toda a sorte de insultos e acusações desmedidas.

Cabe pontuar que o cinema independente americano de temática gay muitas vezes jamais encontra seu lugar em circuito comercial ou mesmo em plataformas de streaming e que um evento como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo pode ser a única oportunidade de o público brasileiro ter contato com essas obras, que cada vez mais exploram tramas em que os personagens LGBT+ vivem conflitos cotidianos comuns, que também fazem parte da vivência heterossexual, algo extremamente necessário para retirar esses personagens do looping eterno das tramas de opressão e afirmação, dando a eles todos os matizes que lhe são próprios. Em Our Son, há algumas cenas que soam um pouco forçadas, aderindo a alguns clichês das narrativas de separação dos quais o filme poderia se desvencilhar, mas que servem para traçar o paralelo com tramas semelhantes centradas em casais heterossexuais e suas vivências. Esses pequenos deslizes, no entanto, não apagam o brilho do filme, que cativa a cada passo com seus personagens tridimensionais, imersos em conflitos profundos e bem delineados. Gabriel e Nicky são dois homens gays que amam, sofrem e lidam com os problemas familiares, ambos descobrindo como seguir, de coração partido, o caminho de uma paternidade conjunta.


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