Especiais


PEDRA DO REINO, A

08.06.2007
Por Carlos Alberto Mattos
IMAGENS EXUBERANTES PARA UM REINO DE PALAVRAS

Texto publicado originalmente no DocBlog do autor)



Nas embandeiradas comemorações de seus 80 anos, Ariano Suassuna alcançou o que Quaderna, o herói do Romance da Pedra do Reino, aspirou ao longo de 754 páginas. Tornou-se um Gênio da Raça, uma Glória Nacional. Assim mesmo com maiúsculas, porque Ariano não combina com menos. A exemplo do que sonhou Quaderna, seu criador instaurou em torno de si uma soberania feita somente de palavras (ditas e escritas). Afinal, que escritor brasileiro vivo rivaliza com ele em estatura literária?



Ariano é nome e tema de peça em cartaz no CCBB-Rio, já foi motivo de um ciclo de palestras e espetáculos na Escola de Magistratura, e a partir desta semana se espalha em tudo quanto é formato pelos quatro cantos do país. Festivais nordestinos já viram o documentário O Homem do Castelo, do paraibano Marcus Vilar, boa introdução audiovisual ao personagem Ariano. No filme, rodado ao longo de uns tantos anos, Suassuna rememora sua formação, explica aspectos de sua obra, conta histórias hilariantes (como sempre por onde passa) e ainda tem a voz embargada ao falar da morte do pai pelas costas, no fragor da Revolução de 30.



Num dado momento, Ariano afirma que nunca se entendeu tanto com um diretor de cinema quanto com Luiz Fernando Carvalho. Referia-se às adaptações de peças suas para a TV por LFC. Quando disse aquilo, portanto, ele ainda não fazia idéia do que viria pela frente. A microssérie A Pedra do Reino, que estréia terça-feira como um dos pontos altos da festança toda, é uma das mais exuberantes encenações já vistas na televisão brasileira. Glauber Rocha, Eisenstein, as gestas medievais e a commedia dell’arte são apenas algumas das referências que vêm à mente diante do “cosmorama de pantasmagorias” que Luiz Fernando extraiu de Ariano.



Depois de assistir aos cinco capítulos da série, a convite do diretor, não vejo elogio mais cabível do que dizer que LFC soube transpor o “estilo régio” da fabulação de Quaderna/Suassuna. Não há chance para a banalidade. Já no primeiro capítulo (ou “livro”), o espectador é atirado de chofre num redemoinho de tempos narrativos, falas velozes e efeitos cênicos de grande beleza. Os primeiros minutos pretendem sintonizar o público com a sofisticada enunciação de Suassuna, onde presente, passado, memória e fantasia dançam livremente ao sabor de um narrador prodigioso, que é Quaderna.



Em lugar da fidelidade reverente, o roteiro de Bráulio Tavares, Luís Alberto de Abreu e LFC toma várias liberdades fundamentadas. Uma delas é criar uma quarta “idade” do herói – um Quaderna velho bufão que apresenta toda a sua história em performance funambulesca na grande praça de Taperoá (PB). Não é ilícito ver ali o próprio escritor. Dele partem as outras faces de Quaderna, empenhadas em reconstruir um reino brasileiro a meio caminho entre a fidalguia ibérica e as demandas afro-indígenas, entre os dogmas da esquerda e da direita. Um dos mais pitorescos personagens do romance é justamente um “extremista de centro”.



A última cena com Quaderna, no final do quinto “livro”, também é invenção original de LFC, inspirada em poema do próprio Ariano. Alguns desfechos de situações e personagens, ausentes do livro cuja pretendida continuação nunca foi publicada, foram escritos por Suassuna especialmente para a microssérie. E, conforme seu desejo, jamais virão à luz por escrito.



A Pedra do Reino é um livro-espetáculo para onde confluem a novela de cavalaria, o romance picaresco, a versalhada de cordel, a trama policial e outros tantos modelos que você imaginar aí na sua cachola. Tudo isso encontra correspondente na versão de TV, sempre na acepção farsesca que emana de um personagem heróico e covarde, perseverante e louco ao mesmo tempo.



A fotografia de Adrian Teijido é primorosa tanto na exploração da luz do sertão como na busca de angulações inusitadas para exprimir os retorcimentos da imaginação de Quaderna. A direção de arte de Raimundo Rodriguez dá um show de texturas, materiais e espírito lúdico na recriação de uma Paraíba mítica e barroca, sem deixar de ser brasileira. A trilha sonora de Marco Antonio Guimarães (do Uakti e Lavoura Arcaica) corteja nossos ouvidos com todas as belezas de que é capaz. A edição de Marcio Hashimoto Soares por vezes atinge velocidades temerárias, mas o efeito disso pode ser também espetacular quando torna quase sobre-humanas a oratória e a movimentação dos personagens. E o elenco, encabeçado por um ensandecido e mimoso Irandhir Santos, responde com precisão a cada exigência – e olha que não são poucas. Impossível não destacar as atuações de Frank Menezes (como Samuel), Cacá Carvalho (o Corregedor) e Luiz Carlos Vasconcelos (Arésio).



Tenho minhas dúvidas se a ousadia de Luiz Fernando Carvalho vai ser assimilada por um público mais afeito à dieta básica do veículo. É claro que esta é uma obra de exceção na TV brasileira, e como tal deve ser encarada. Por isso é importante deixar-se arrastar pelo primeiro “livro”. Aquela loucura é a senha para uma viagem diferente e inesquecível.

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