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BERGMAN E O FIM DO JOGO: BREVE E FUGAZ

31.07.2007
Por Luiz Fernando Gallego
FIM DE JOGO: BREVE E FUGAZ

Com a notícia do desaparecimento de Ingmar Bergman, é praticamente impossível fugir do clichê de relembrar a partida de xadrez com a Morte, disputada - e como sempre perdida para tal adversário - pelo cavaleiro interpretado por Max Von Sydow em O Sétimo Selo, filme que consagrou a “revelação” de Bergman para a cinefilia internacional. Foi uma “descoberta” algo tardia, pois quando Sorrisos de uma Noite de Amor conquistou o Festival de Cannes de 1956 os próprios críticos franceses ficaram estarrecidos ao constatar que este era o décimo-sexto longa metragem dirigido por Bergman.



No ano seguinte, O Sétimo Selo recebia o Prêmio Especial do Júri no mesmo festival e Morangos Silvestres conquistaria o Urso de Ouro em Berlin de 1958. Jacques Siclier, em um ainda antológico livro de 1960 sobre o cineasta, pergunta como a crítica européia não havia percebido o que Bergman já prometia em lançamentos isolados anteriores, tais como Mônica e o Desejo, de 1952, que Paris pôde ver em 1954, sendo que Juventude já havia sido exibido em Veneza, dois anos antes. Em ambos, a ânsia pelo breve verão sueco metaforizava a fugacidade das relações afetivas, passíveis de se dissolverem pela morte (em Juventude - ou Jogos de Verão conforme o título original, Sommarlek) - ou pelo prosaico, mas não menos fatal desamor (em Verão com Mônica - tradução correta para o título original de Sommaren med Monika).



No Rio de Janeiro, Mônica foi atrelada ao seu Desejo, transformando-se em figurinha fácil em uma das mais primitivas (e que hoje seriam naïves) salas de exibição de filmes “para adultos”, o Cineac-Trianon, no coração da Avenida Rio Branco. Isso tudo por conta de Harriet Anderson aparecer com os seios desnudos, frontalmente. O erotismo era assim... Menos era bem mais...



Por outro lado, Juventude recebeu o subtítulo piegas de Eterno Tesouro, quando tudo que o filme trazia, em vez de “eternidade”, era a fugacidade do tempo e dos amores juvenis: conservados na memória, na experiência, nas vivências, mas irremediavelmente MORTOS.



A morte sempre foi um tema recorrente nos filmes bergmanianos, e as origens religiosas de sua relação com o protestantismo sueco e com seu pai, um severo pastor, já são suficientemente conhecidas desde suas entrevistas mais antigas até sua autobiografia, A Lanterna Mágica; assim como em livros em que comenta seus filmes (Imagens e em um outro anterior de conversas com outros cineastas suecos mais jovens).



A transitoriedade de nossas vidas, tema de um belo e pequeno ensaio de Sigmund Freud retomado por Thomas Mann, ou mesmo a transitoriedade de um modo geral (das relações amorosas, especialmente) foram intensamente esmiuçadas nos roteiros em forma de esboços quase “impressionistas” (muitos publicados como livros) e desenvolvidos visualmente de modo exemplar nos filmes que Bergman realizou. A angústia religiosa e metafísica com o “depois” já existia plenamente em seu filme seminal, Prisão, o sexto, de 1948; e o tema do abandono do ser humano à sua própria sorte por um deus silencioso percorreria a obra bergmaniana, inclusive na chamada “Trilogia do Silêncio de Deus”, composta de Através de um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio.



Se Jacques Siclier ainda se mostrava surpreso com a cegueira da crítica francesa para com um diretor que já estava chegando à marca de vinte filmes em treze anos quando foi “descoberto”, consta que, mesmo com distribuição mais desorganizada e menor, a América Latina, em Punta del Leste, já havia percebido Bergman em 1952 com o mesmo Juventude - apenas “notado” (sic Siclier) em Veneza. E em um Festival do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo, um de seus filmes mais desesperançados, Noites de Circo, foi admirado com entusiasmo.



Algum tempo depois, no Rio de Janeiro, Morangos Silvestres ficaria muito mais de vinte semanas em cartaz no primeiro “cinema de arte” carioca, o Alvorada. Mas o famoso e emblemático O Sétimo Selo só chegaria às telas brasileiras quase vinte anos depois de realizado, na época do “Cinema I”, programado por Alberto Shatovsky, sala posterior mesmo à fase áurea da “Greação Paissandu” dos anos 1960. Outros filmes do cineasta só puderam ser vistos no Rio em mostras bem antigas na Cinemateca do MAM ou em uma quase completa, à época, no "Estação".



Na verdade, após a rendição às três obras-primas seguidas de 1956 a 1958 (Sorrisos..., O Sétimo Selo e Morangos...), os europeus se voltaram para o que Bergman havia feito antes (Prisão, Sede de Paixões, Noites de Circo, etc), mas logo reduziram seu entusiasmo em relação a filmes seguintes, como No Limiar da Vida e A Fonte da Donzela. E mais: Bergman não era “político”, e – o que era pior na época “Cahiers” lá & “Paissandu” aqui – havia cometido em 1950 um obscuro filme de espionagem que seria anti-soviético; ou seja, para o ideário de então, anti-esquerdista em um período de idealização equivocada, três anos antes da morte de Stalin e dos horrores que viríamos a saber depois. Independentemente da questão “ideológica”, Bergman sempre se arrependeu deste filme, que mais não fosse por ter sido uma obra encomendada em fase de crise do cinema sueco, resultando em um filme provavelmente ruim do qual ele se recusava a falar.



Nem o fato de seus filmes receberem prêmios da Academia de Hollywood colaborava para que fossem lançados no Brasil. Da “Trilogia do Silêncio”, Através do Espelho foi oscarizado, mas apenas o último, O Silêncio, ganhou distribuição comercial por aqui – e isto, apenas pelo escândalo de uma cena sexual entre Gunnel Limdblom e Birger Milmsten; e de outra, com Ingrid Thulin, de masturbação. Entretanto decepcionava os que buscavam excitação pornográfica, já que é outro dos filmes mais niilistas de tantos que Bergman entregou às telas.



Suas obras “de conteúdo” também eram apenas medianamente reconhecidas por grande parte da crítica “progressista” européia e mesmo nacional, já que – além de não ser “político” (leia-se “de esquerda”) – Bergman não era considerado um inovador formal. Até que Persona - famosa e lamentavelmente intitulado aqui Quando Duas Mulheres Pecam - explodiu como um desafio ainda maior do que todos os anteriores! E além de tudo revelava a atriz e futura cineasta Liv Ullmann, com quem Bergman se casaria e teria uma filha. Dentre outros tantos envolvimentos amorosos e mais oito filhos.



Não que suas atrizes anteriores não merecessem destaque: as já citadas Harriet Andersson e Ingrid Thulin percorrem grandes períodos de sua filmografia, mas não se poderia deixar de falar das mais freqüentes nos primeiros filmes, tais como Eva Dahlbeck, Maj-Britt Nilsson e Anita Bjork. Esta reapareceria em um filme de Bergman quase 50 anos depois de Quando as Mulheres Esperam, que é de 1952, agora no papel da escritora Selma Lagerlöf, no penúltimo que ele fez, para a TV, Os Fazedores de Imagens, exibido recentemente em mostras no CCBB-RJ graças a Julio Miranda da Polytheama e ao nosso colega João Marcelo F. de Mattos. E como não lembrar Bibi Andersson, que dividia a tela (literalmente) com Liv Ullmann, em Persona? Liv foi a que recebeu maior projeção internacional, embora quase todas tenham feito incursões algo infelizes em filmes de outros países – com exceção de Ingrid Thulin, que pôde brilhar sob Visconti em Deuses Malditos e Resnais em A Guerra Acabou.



Mas Persona aludia à Guerra do Vietnã, o que lhe dava “passaporte” para ser admirado “politicamente”. E usava de recursos de “distanciamento”, criando a ilusão de que o filme se rompia na máquina de projeção ou mostrando a câmera filmando uma tomada perto do final. Não só por sua originalidade, mas certamente também por isto, para muitos este ainda será a maior contribuição de Bergman ao cinema.



Ele prosseguiria na temática de questionar o papel da arte e do artista em um mundo confuso: a atriz de Persona optava pela mudez, o pintor de A Hora do Lobo perdia os limites entre sua realidade e seus “fantasmas”, os músicos de “Vergonha” questionavam a “sagrada neutralidade da arte” como disfarce para a “covardia dos artistas”. Em todos os filmes deste período (1966-1969), Bergman forçava o “distanciamento” do espectador que havia iniciado em Persona, ora exibindo o título no meio do filme, ora mostrando as câmeras de filmagem. Em Paixão de Ana, interrompia o filme quatro vezes para que os atores principais comentassem o que pensavam de seus personagens.



A “morte” da arte ou do papel do artista na sociedade cederia lugar a um retorno a temas antigos e recorrentes: um deles, as relações homem-mulher (A Hora do Amor - e de forma mais bem sucedida na série para TV também lançada em cinemas, Cenas de um Casamento); o outro, a morte propriamente dita, em Gritos e Sussurros.



A mencionada monografia de Jacques Siclier já caracterizava a obra de Bergman como uma espiral, porque retorna aos mesmos pontos de um círculo, por onde já passou antes, mas a cada vez em planos mais elevados. Claro que tais retomadas nem sempre implicam em filmes obrigatoriamente melhores do que outros, anteriores, sobre o mesmo assunto. Mas quando se fala de Gritos e Sussurros não se está mencionando apenas um grande filme, mas uma obra de arte máxima do século XX ou mesmo de todos os tempos, pois Bergman não é apenas um dos maiores cineastas, mas também um dos maiores artistas - seja qual for a forma de expressão artística que se considere. “B” de Bergman, como “B” de Bach ou de Beethoven – ou de Buñuel para ficarmos com outro autêntico gênio do cinema, numa época em que a “genialidade” está sendo facilmente atribuída e distribuída a muitos diretores bem distantes de merecerem tal reconhecimento.



Depois de Gritos e Susurros, Bergman começa gradualmente a se afastar de filmar para salas de cinema, preferindo dirigir montagens teatrais e de óperas (como quase sempre já fazia) e filmar para a TV. Mesmo Fanny e Alexander, considerado seu último grande filme para as telas grandes, tem uma versão original em 4 capítulos, para a TV, somando 300 minutos em vez dos 197 que chegaram às salas de cinema. O que não quer dizer que não haja interesse em muitas de suas obras “menores” – se é que o termo se aplica – como no pequeno e pungente Depois do Ensaio, que revelava mais uma atriz “bergmaniana”, Lena Olin; para não falar da melhor encenação em filme de uma ópera, a encantadora versão de A Flauta Mágica de Mozart. Ou do dueto entre Ingrid Bergman (em seu penúltimo filme) com Liv Ullmann em Sonata de Outono.



Ou ainda na série de duetos em dez cenas da obra final, Sarabanda, título que faz alusão à dança a dois e também a um movimento das sonatas para violoncelo de Bach que Bergman utilizou em muitos de seus filmes – especialmente a “Sarabanda” da Sonata número 5, um gemido da alma que substituía as palavras que jamais escutamos quando as irmãs sobreviventes de Gritos e Sussurros ensaiavam uma breve e fugaz reconciliação depois da morte de outra irmã. Breve e fugaz como a felicidade descrita no diário da morta lido pela criada.



O dueto/duelo do cavaleiro com a Morte se transformou numa das imagens mais famosas do Cinema. A representação da Morte com o rosto branco envolvido em um capuz negro emendado com a capa igualmente negra substituiu praticamente a caveira com a foice medieval para o imaginário do século XX. A morte sempre anunciada, como no sonho de abertura de Morangos Silvestres, quando o antigo diretor sueco (e ator bissexto) Victor Sjöström, já bem idoso, via a si próprio em um caixão.



Bergman o “ressuscitou” em seu penúltimo filme, como personagem. Agora é a vez de aguardarmos Bergman como personagem em algum filme que trate de sua vida & obra. Mesmo que tal não venha a ocorrer, a obra está aí, mais de 60 filmes e roteiros merecendo sempre serem revistos, uma das mais sólidas obras pessoais de “autores” como – infelizmente – parece que se encontram em número muito menor do que nos anos 1960 quando Bergman, Visconti, Kurosawa, Fellini e Antonioni – entre muitos outros – atraíam no mínimo a curiosidade das platéias. Mesmo os que não se ligavam em seus filmes conheciam seus nomes e faziam uma idéia do que era “viscontiano”, “felliniano”, “antonioniano” ou “bergmaniano”.

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