1. Os primeiros dias
Não sei se é o ponto de vista de quem, nos últimos 15 anos, viu uma infinidade de filmes ruins equivocadamente selecionados para o Festival de Gramado. Mas a impressão que fica é a de que a seleção de 2007, a julgar pelos longas exibidos nos três primeiros dias do evento, está bem acima da média. Mesmo os filmes com defeitos são obras instigantes e que se adequam ao perfil que um festival sério, que promove a reflexão cinematográfica, deve ter.
Entre os filmes de ficção, uma ótima surpresa: “Olho de Boi”, de Hermano Penna, filme ao mesmo tempo enxuto e ambicioso, centrado no embate entre dois peões de uma fazenda, no interior do país, que buscam algum sentido para suas vidas: o mais velho suspeita que sua mulher o esteja traindo e deseja vingança; o mais novo sofre com a ausência paterna e tem uma personalidade esquizofrênica que o transforma num ser humano frágil e que ainda aparenta sinais de incontrolada mediunidade. Eis um raro exemplo de filme que se sustenta quase que exclusivamente pelo confronto verbal ente dois personagens, mas que equilibra uma suposta estrutura teatral com um trabalho de câmera sóbrio e inteligente, valorizando através da fotografia a tensão que se instala progressivamente. Há muitas questões pertinentes levantadas por “Olho de Boi”, de foro psicanalítico, antropológico e religioso, mas há sobretudo uma estrutura narrativa na qual o desfecho do filme se revela completamente imprevisível, pelo menos para quem for assisti-lo sem ter lido a sinopse, que informa tratar-se de uma recriação livre da tragédia grega “Édipo Rei” para o sertão brasileiro.
Em oposição a “Olho de Boi”, outro filme também passado em cenário rural, “Valsa para Bruno Stein”, de Paulo Nascimento, mostra o quanto diálogos redundantes e supérfluos podem estragar um roteiro previsível, que não consegue valorizar o que o filme teria de melhor: a opressão de um ambiente que confina os personagens, acentuando seus dilemas existenciais. Falta talento aos realizadores, falta carisma ao elenco (com exceção do sempre bom Walmor Chagas), que sub-aproveita a talentosa Aracy Esteves.
Já em “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas, os diálogos são escassos. O que lhe interessa é valorizar a beleza de cada plano, milimetricamente estudado para impressionar. E realmente impressiona. Parece incrível, mas não há um só plano no filme - fotografado por Paulo Jacinto dos Reis - que não chame a atenção, seja pela escolha das lentes, pelo uso de sombras, pelos movimentos de câmera, enfim..sente-se uma necessidade latente de reafirmar, a todo instante, que se está diante de uma obra que quer se impor por sua capacidade de oferecer, em sua totalidade, um espetáculo visual. O problema é que a força das imagens acaba banalizada por tanta beleza, e um filme que trata de tema tão pungente – uma menina de 15 anos do interior de Pernambuco que vê na prostituição o possível caminho para uma vida de sonhos – acaba virando uma obra por vezes fria e sem alma. Impossível não lembrar de “O Céu de Suely”, com direito até a cenas muito parecidas – da garupa da moto, da dança/karaokê, mas o filme de Karim Aïnouz é indiscutivelmente mais bem resolvido. A jovem atriz Nash Laila (!) é uma grata revelação, que está bem como todo elenco, e a trilha sonora é espetacular. Paulo Caldas (que co-dividiu com Lírio Ferreira a direção de “Baile Perfumado”) tem enorme potencial como diretor, que poderá ser melhor aproveitado numa obra menos irregular.
Entre os documentários, o único brasileiro exibido até agora em competição foi “Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais”, um trabalho ousado e bastante experimental do diretor mineiro Carlos Alberto Prates Correia, que venceu Gramado em 1980 com “Cabaret Mineiro”e não filmava desde “Minas Texas” (1989). O filme é um tributo ao cinema mineiro das últimas décadas e ao cinema marginal brasileiro de uma maneira geral, e tem sua força na montagem poética que une fragmentos de diversas obras seminais como “O Padre e a Moça”, de Joaquim Pedro de Andrade, e “Bang Bang”, de Andrea Tonacci.
Entre os filmes latinos, a produção argentina “Cocalero”, de Alejandro Landes, chamou a atenção pela semelhança que possui com “Entreatos”, o documentário de João Moreira Salles sobre o presidente Lula. “Cocalero” decifra um pouco mais da figura do presidente boliviano Evo Morales, acompanhando de forma bem íntima os momentos que antecedem sua vitória nas eleições presidenciais. Ao contrário de Salles, Landes não consegue disfarçar o enfoque completamente favorável a Morales.
O outro filme latino exibido nesses primeiros dias foi “Nacido y Criado”, que confirma o talento do diretor argentino Pablo Trapero (“Família Rodante”, “El Bonaerense”). Aqui ele mostra como a vida de uma daquelas famílias felizes de comecial de margarina é afetada após um acidente de carro. A paisagem cinzenta e gelada do extremo sul argentino é quase uma tradução do purgatório onde o designer Santiago se auto-exila para deixar o passado pra trás. Trapeo consegue estabelecer uma comunicação imediata com o drama do personagem, mas não consegue concluir seu filme de forma satisfatória.
2. Os últimos dias
A segunda metade do Festival de Gramado exibiu, entre quarta e sexta-feira, mais cinco filmes em competição: um documentário e quatro filmes de ficção. O documentário era o brasileiro “Operação Condor”, de Roberto Mader, que joga luz a mais um entre tantos episódios do passado negro da recente história brasileira ainda não devidamente explicados: a operação, batizada de Condor, coordenada em conjunto pelos governos militares sul-americanos durante o período de ditadura, para reprimir as atividades de resistência e os protestos dos manifestantes de esquerda, que culminou no seqüestro e morte de inúmeros deles. O tom do documentário é francamente contra a operação, mas Roberto Mader acerta ao ouvir também a visão daqueles que participaram a favor das ditaduras, dando-lhes direito de defesa. Um trabalho de pesquisa de dados e imagens bastante bom, que só perde o rumo quando deixa a Condor de lado para mergulhar no emocionante drama pessoal de algumas das vítimas. A destacar, a precisa trilha sonora de Victor Biglione, que supera o desafio de musicar com inteligência um assunto tão naturalmente sombrio e dramático sem sublinhar por demais tal atmosfera.
A competição latino-americana esquentou com três longas: o mais irregular deles é também o mais instigante: “O Cobrador”, de Paul Leduc, estrelado por um Lazaro Ramos que não pronuncia uma só palavra e passa o filme “cobrando” algo através de atos de violência explícita – a mesma violência sem sentido que acomete um industrial americano (vivido por Peter Fonda) que cumpre o ritual sádico de atropelar mulheres imigrantes latinas e carrega uma Bíblia dentro da valise. Há muitos códigos e símbolos neste filme do respeitado diretor mexicano de “Frida Naturaleza Viva”. Baseado em quatro contos de Rubem Fonseca, faz com que o espectador tenha vontade de correr para as obras literárias atrás de respostas que não encontrará. Sinal de que Leduc talvez tenha atingido seu objetivo.
O melhor filme latino do festival foi, indiscutivelmente, “El Baño del Papa”, dirigido pelos uruguaios Enrique Fernandez e Cesar Charlone (diretor de fotografia de “Cidade de Deus”). Ao relembrarem como a passagem do Papa João Paulo II afetou a vida de moradores de uma pequena cidade uruguaia na fronteira com o Brasil, Fernandez e Charlone partem de um pressuposto verídico para contar uma história de ficção fortemente vinculada ao neo-realismo. A saga de Beto, um biscateiro que vive de pequenos contrabandos e sonha enriquecer construindo um banheiro para ser utilizado pela multidão de fiéis que virá ver o Papa, é esencialmente latino-americana, e permite aos realizadores precisas observações sociais, políticas e religiosas. O ponto alto é a cena, carregada de simbolismo, em que Beto atravessa a multidão de fiéis, em sua via crucis, carregando um vaso sanitário nos ombros.
Quando assisti ao filme peruano “Madeinusa” no Festival do Ceará do ano passado, o que mais me impressionou foi a descoberta da tradição cultural de um pequeno povoado, que prepara uma festa para celebrar o período entre a Sexta-Feira Santa e o Domingo de Páscoa – nestas 48 horas, o pecado não existe, pois Deus está morto, e portanto todos os habitantes podem fazer o que quiserem sem remorso ou culpa. Qual não foi minha surpresa ao descobrir, posteriormente, que é tudo fruto da imaginação da diretora estreante Claudia Llosa. Se filmada por um Arturo Ripstein, por exemplo, tal história provavelmente seria levada a um extremo de violência e, talvez sexo, num espetáculo perturbador. Llosa prefere um olhar mais etnográfico, quase documental, privilegiando a bela fotografia e os rituais folclóricos. Ainda assim, o filme tem seus encantos. Imaginação fértil é o que se pode atribuir também ao diretor Marcelo Masagão, que fez de “Otávio e as Letras” a grande decepção do Festival de Gramado. Depois de estrear, em 1999, com a obra-prima “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, Masagão continua devendo outro bom filme. Suas idéias em “Otávio e as Letras” caem num vácuo e em nenhum momento conseguem se traduzir cinematograficamente como algo sólido e consistente, perdidos entre a poesia e a (indesejada) caricatura.
3. A premiação
Embora para muitos surpreendente, a vitória de “Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais” como melhor filme nacional foi coerente com a proposta do Festival de se valorizar o cinema de autor. Embora, a meu ver, “Olho de Boi” (que ficou com os prêmios de melhor roteiro e ator) fosse o melhor filme, o equilíbrio entre os concorrentes previa uma disputa acirrada. E já que a tendência era valorizar o cinema de autor, que bom que o escolhido foi o filme de Carlos Alberto Prates Correia, e não o equivocado “Otavio e as Letras”. Entre os estrangeiros, “El Baño del Papa” parecia favorito, e embora tivesse levado o prêmio da crítica e do júri popular, o vencedor foi “Nacido y Criado”, de Pablo Trapero.
Algumas perguntas que ficaram sem resposta:
Como os filmes nacionais eram exibidos sem legendas em espanhol, isto não teria prejudicado a avaliação do jurado uruguaio Manuel Martinez Carril? Nesse caso, não seria mais coerente que o júri fosse composto só de brasileiros?
Quando será que os festivais brasileiros vão entender que o Prêmio Especial do Júri deve ser entregue antes do prêmio de Melhor Filme, equivalendo ao segundo lugar? Aqui é sempre o primeiro prêmio a ser entregue, e quando não vem acompanhado de nenhuma justificativa do júri, parece um prêmio de consolação. Que no caso de “Operação Condor” e “O Cobrador”, pode ter sido conferido por razões bem distintas. (Marcelo Janot)
O RESULTADO:
Filmes brasileiros
Melhor Filme: “Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais”, de Carlos Prates
Melhor Diretor: Paulo Caldas, de “Deserto Feliz”
Melhor Ator: Gustavo Machado, de “Olho de Boi"
Melhor Atriz: Ingra Liberato, de “Valsa para Bruno Stein"
Melhor Roteiro: Marcos Cesana, de "Olho de Boi"
Melhor Fotografia: Paulo Jacinto dos Reis, de "Deserto Feliz"
Prêmio Especial do Júri: “Condor”, de Roberto Mader
Prêmio Qualidade Artística: “Victor Biglione”, de “Condor”
Melhor Diretor de Arte: Moacyr Gramacho, de “Deserto Feliz”
Melhor Música: Erasto Vasconcelos e Fábio Trummer, de “Deserto Feliz”
Melhor Montagem: Carlos Prates, de “Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais”
Prêmio da Crítica: “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas
Melhor Filme do Júri Popular: “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas
Júri: Manuel Martinez Carril (crítico uruguaio), Otto Guerra (cineasta), Rudi Lagemann (cineasta), Sandra Werneck (cineasta), Sara Silveira (produtora)
Filmes estrangeiros
Melhor Filme: "Nacido y criado", de Pablo Trapero
Melhor Diretor: Pablo Trapero, de "Nacido y Criado"
Melhor Ator: César Troncoso, de "El Baño del Papa"
Melhor Atriz: Virginia Méndez, de "El Baño del Papa"
Melhor Roteiro: Enrique Fernandez e César Charlone, de "El Baño del Papa"
Melhor Fotografia: Bill Neto, de "Nacido y Criado"
Prêmio Especial do Júri: Paul Leduc, de "Cobrador"
Prêmio Excelência de Linguagem Técnica: "El Baño del Papa" de Enrique Fernández e César Charlone
Prêmio da Crítica: "El Baño del Papa" de Enrique Fernández e César Charlone
Melhor Filme do Júri Popular: "El Baño del Papa" de Enrique Fernández e César Charlone
Júri: Alvaro Buela (diretor uruguaio), Eduardo Russo (crítico argentino), Gustavo Dahl (cineasta brasileiro), Patricia Torres San Martin (pesquisadora mexicana), Paulo Sergio Almeida (cineasta brasileiro)
Curtas 35 mm
Melhor filme de curta metragem em 35mm: "Alphaville 2007 d.c", de Paulinho Caruso
Melhor Diretor: Esmir Filho, por "Saliva"
Melhor Ator: Francisco Gaspar, por "O. D. Overdose Digital"
Melhor Atriz: Caroline Abras, por "Perto de Qualquer Lugar"
Melhor Roteiro: Paulinho Caruso, por "Alphaville 2007 d.C"
Melhor Fotografia: Carlos Ebert, por "Satori Uso"
Melhor Diretor de Arte: Eduardo Correa, "Balada do Vampiro"
Melhor Música: Celso Loch, "Balada do Vampiro"
Melhor Montagem: Paulinho Caruso, Rê Castanhari , Vitali e Pedro Caetano, em "Alphaville 2007 d.C"
Prêmio da Crítica: "Satori Uso", de Rodrigo Grota