Especiais


FESTIVAL DE BRASÍLIA

01.12.2007
Por Daniel Schenker
RASGOS PASSIONAIS NUMA SELEÇÃO EQUILIBRADA

A recém-encerrada quadragésima edição do Festival de Brasília foi marcada por uma espécie de disputa informal entre dois concorrentes da mostra oficial: Cleópatra e Chega de Saudade . De um lado estaria o cinema cerebral, hermético para muitos, de Julio Bressane; do outro, o cinema afetivo e “sincero”, capaz de estabelecer vínculo direto com o público, de Laís Bodanzky. O júri preferiu o primeiro e premiou Cleópatra com seis Candangos – melhor filme, atriz (Alessandra Negrini), fotografia (Walter Carvalho), direção de arte (Moa Batsow), trilha sonora (Guilherme Vaz) e som (Leandro Lima). Laís ganhou nas categorias direção e roteiro (Luiz Bolognesi). A platéia presente ao Teatro Nacional Claudio Santoro reagiu com vaias. Muitos espectadores levantaram-se revoltados diante do anúncio da vitória de Bressane, que, hoje, é o diretor mais premiado do festival, tendo conquistado o Candango principal com Tabu , Miramar (dividido com Anahy de las Misiones ) e Filme de Amor .



O resultado pode não ter sido exatamente justo, mas não é difícil entender onde Bressane ganha dos demais cineastas: na prática de um cinema rigoroso, preciso. Em Cleópatra , tudo parece ter sido formulado previamente, sem muito espaço para o aleatório. Não é por acaso, por exemplo, que a câmera descortina, aos poucos, a integridade das imagens, reveladas num espaço de tempo calculado. O cinema de Julio Bressane tem uma respiração própria (o movimento da respiração, aliás, é destacado em algumas passagens) e, pelo menos aqui, não há concessão. Ou o espectador busca entrar em sintonia com essa pulsação, percebendo a aridez como possível campo de interesse artístico, ou permanece distanciado do que Bressane propõe.



Em Cleópatra , especificamente, Bressane procura conectar a experiência cinematográfica às ferramentas teatrais. Valoriza a marcação dos atores, a concepção cenográfica e a iluminação. Uma passagem é bastante marcante, nesse sentido: aquela em que Marco Antônio informa que Fulvia está morta. Ele caminha até o proscênio, permanecendo Cleópatra ao fundo da cena, e um foco ilumina seu rosto. Esta intersecção entre cinema e teatro é instigante e Cleópatra só não alcança resultado melhor porque o diretor não consegue extrair um rendimento geral satisfatório do elenco, em meio ao qual se destaca Josie Antello, que já tinha trabalhado com o cineasta em Filme de Amor . Inicialmente, Bressane demonstra valorizar o trabalho de composição (em especial, no caso de Alessandra Negrini), tensionando uma tendência bastante expressiva em muitas produções nacionais ( O Céu de Suely , A Casa de Alice , etc.): o esforço em fazer com que o espectador “esqueça” que está diante de um ator interpretando um personagem e “veja” uma pessoa. Ao escalar nomes famosos (também Miguel Falabella e Bruno Garcia, além de diversos atores em participações circunstanciais), Bressane evidencia o ator. Mas o esforço não condiz com o resultado apresentado. Se Alessandra Negrini faz um esforço de composição que se torna algo monótono a partir de determinado ponto da projeção, Bruno Garcia mostra-se particularmente deslocado ao buscar extrair de cada fala um efeito de impacto.



Chega de Saudade , por sua vez, se inscreve numa vertente cinematográfica bem distante da de Cleópatra . Laís Bodanzky parece construir seu filme a partir de movimentos contrastantes, opostos. Um deles é calcado na aproximação entre público e obra através de uma câmera em constante corpo a corpo com os atores, uma movimentação que busca tragar o espectador para dentro do filme, contaminá-lo com a energia do salão de baile e de seus freqüentadores. O outro está fundado num certo distanciamento entre público e obra, mantido com o intuito de permitir que o espectador se identifique com os conflitos cotidianos (o sofrimento da mulher ao ver o marido interessado por uma moça mais jovem, por exemplo) canalizados pelos personagens. Em ambos os casos há uma perseguição da autenticidade que se manifesta ainda numa terceira via: a mistura entre atores e figurantes, entre aqueles que encenam com competência (e o resultado é equilibrado e satisfatório, valendo destacar a presença luminosa de Miriam Mehler, interpretando personagem discreta, circunstancial) e os que demonstram maior intimidade com o universo “documentado”.



Filme que tematiza a passagem do tempo em algumas de suas variações, como a presentificação do passado (“Olha essa música. O meu primeiro carnaval foi no Cambuci. Eu me lembro bem”), Chega de Saudade é, como cinema, uma engenharia bem-sucedida, a julgar pela habilidade de Laís Bodanzky em coordenar alguns pequenos núcleos inseridos, durante quase todo o tempo, num ambiente único. Os poucos momentos em que esta “regra” é quebrada, como naqueles em que Alberto (Leonardo Vilar) evoca seu passado, prejudicam o filme, na medida em que, além de não proporem algo de realmente significativo com a interrupção de uma determinada fluência, surgem escorados por contrastes estéticos desgastados (as cores esmaecidas do passado em oposição à vibração do presente).



Melhor filme entre os concorrentes, Meu Mundo em Perigo , de José Eduardo Belmonte, ganhou os Candangos de ator (Eucir de Souza) e ator coadjuvante (Milhem Cortaz), além do prêmio da crítica e do Prêmio Saruê, conferido ao ator principal pela equipe do jornal Correio Braziliense. A soberania da produção em relação às demais não decorre de uma quantidade maior de acertos. Ao contrário, Belmonte se permite errar. Às vezes, peca pelo excesso. Mas arrisca. É o caso da trilha sonora (assinada por Zepedro Gollo), que busca inspiração em ritmos africanos para criar uma espessura contrastante com as imagens de personagens desamparados, como Ísis (Rosane Mulholand) e Elias (Eucir de Souza), que, apesar de encastelados em seus dramas pessoais, expressam alguma curiosidade por histórias de vidas alheias enquanto ensaiam um começo de relação num momento de fuga. O cineasta parece perseguir o impalpável (em determinado instante, Ísis descreve o pai como portador de “uma dor que ninguém conseguia arrancar dele”) num filme algo desesperado, que valoriza o close nos rostos dos atores, o registro de fragmentos de corpos (mãos e bocas, principalmente), característica que vem despontando, diga-se de passagem, em diversos trabalhos, tanto longas quanto curtas, e uma câmera física concebida a partir da opção equivocada de reiterar a condição dos personagens, seja a insabilidade da primeira metade, seja um certo apaziguamento na segunda.



Injustiçado na premiação, o divertido Falsa Loura , de Carlos Reichenbach, levou apenas o merecido Candango de atriz coadjuvante para Djin Sganzerla. O cineasta retoma as personagens operárias de Garotas do ABC num filme que remete, desde a abertura, com a panorâmica da periferia, ao excelente Anjos do Arrabalde . Mas muita coisa mudou. Em Anjos... , Reichenbach registrou uma periferia sombria, sinistra, povoada por personagens carregadas, um grupo de professoras que administra com dificuldade a esfera afetiva, valendo lembrar da homossexualidade não assumida de Dália, do relacionamento infeliz vivenciado por Rosa e da submissão de Carmo ao marido autoritário. As operárias de Falsa Loura , ao contrário, transitam por uma periferia mais vibrante e falam sobre sexo sem qualquer sinal de pudor. Personagens amarguradas interpretadas com contenção deram lugar a tipos compostos de modo exuberante (vide a participação de Jiddu Pinheiro, com bom timing). Num certo sentido, o diretor se afasta da busca por veracidade para mergulhar no imaginário das operárias, que sonham com cantores populares e se comovem com um repertório musical kitsch. Um mundo de ilusão, onde vive Simara, a protagonista interpretada com garra por Rosane Mulholland. Reichenbach dá corda para a personagem viver seu conto de fadas, mas cobra o preço em seguida. Em Falsa Loura , a suspensão do real reafirma com contundência o próprio real.



De modo diverso, o diretor Daniel Bandeira olha para o real em Amigos de Risco , seu longa de estréia, ao “documentar” uma determinada paisagem: a dos bairros da periferia do Recife, por onde trafegam três amigos (um deles carregado, inconsciente, pelos outros dois). O diretor capta bem a desolação das perigosas áreas abandonadas durante a madrugada e ao amanhecer. Os atores – Rodrigo Riszla, Paulo Dias e Irandhir Santos (vencedor, ano passado, do Candango de ator coadjuvante por seu trabalho em Baixio das Bestas , de Cláudio Assis, e também presente, nessa última edição, no árido e interessante curta-metragem Décimo-segundo ) – sustentam satisfatoriamente os diálogos não impostados do filme, o único a sair sem nenhum Candango da premiação. No entanto, à medida que a projeção avança, o cineasta dispersa um pouco o foco dramático, a urgência da situação principal, e procura, em certa medida, entreter o espectador através da valorização da tensão (a trilha sonora de Tomaz Alves Souza e Chambaril surge, neste sentido, como uma ferramenta importante) e do nonsense decorrentes da sucessão de obstáculos enfrentados pelos amigos durante uma longa jornada noite adentro.



Único documentário da seleção, Anabazys conquistou, conforme esperado, o prêmio especial do júri e o Candango na categoria montagem (Ricardo Miranda, o mesmo montador de A Idade da Terra ). Joel Pizzini, em parceria com Paloma Rocha, filha de Glauber, abre mão aqui de sua vocação experimental para investir num filme explicativo sobre um cineasta que parece afirmar justamente que a criação artística não pode ser explicada. Os diretores abordam a tensão entre o modo como Glauber entendia o trabalho artístico e a viabilização financeira dos projetos, as dificuldades em filmar no Brasil durante a década de 70, sua abertura ao acaso durante as filmagens e a freqüente mistura de português e tupi guarani, destacada no próprio título. Essa perspectiva informativa em relação a Glauber e seu A Idade da Terra gera uma evidente limitação, mas, mesmo assim, é particularmente interessante observar Glauber Rocha dirigindo seus atores, sempre engajado no esforço em tirar deles uma entrega extremada.



Em meio à diversidade dos longas selecionados, o equilíbrio imperou. Apesar do júri ter consagrado Cleópatra com seis Candangos e do público evidenciar a preferência por Chega de Saudade , não havia um favorito óbvio ao título de melhor filme.

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