A mostra Helena Ignez: A Mulher do Bandido estará em cartaz de 9 a 20 de janeiro na Caixa Cultural (Rio). O evento revela as mil facetas de uma das grandes musas do cinema brasileiro. O perfil abaixo foi escrito em agosto de 2006, quando Helena dirigia as filmagens do ainda inédito A Canção de Baal, e publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo de 13.08.2006.
O Baal de Bertolt Brecht é um poeta violento de apetite insaciável, disposto a corromper todos a sua volta. Mas, na fazenda de Bragança Paulista onde Helena Ignez dirige sua adaptação cinematográfica, chamada A Canção de Baal, o herói da primeira peça de Brecht é “o intelectual anárquico que se recusa a ser enquadrado”. Diferença fundamental para uma artista que afrontou a ordem e os bons costumes da esquerda e da direita, sagrando-se musa maior do cinema marginal brasileiro.
Helena não se intimida com os paralelismos: “Assim como Lars Von Trier, eu também fui influenciada por Brecht”. Ao dizer isso, pode estar recordando sua participação como Vixen na baianamente célebre montagem de A Ópera dos Três Vinténs, nas ruínas do Teatro Castro Alves incendiado, em 1960. No programa, seu nome constava como “Helena Inez Rocha”. No ano anterior, casamento de Helena e Glauber iluminara de escândalo os céus de Salvador. A eleita Glamour Girl, candidata a Miss Bahia no ano em que qualquer mulher perderia para Marta Rocha, unia-se ao enfant terrible da cena cultural. Glauber já a havia escalado para espreguiçar o corpo bonito nas cenas do seu primeiro filme, o curta experimental Pátio.
Filha de família pequeno-burguesa, preparada para ser esposa de diplomata, Helena sempre foi uma mulher dicotômica. Na juventude, assinou uma coluna social com o pseudônimo de Krysta e antecipou a moda hemp vestindo mocós de sarja. Joaquim Pedro de Andrade, que tocou o âmago da sua doçura na Mariana de O Padre e a Moça, disse que ela caminhava entre a santidade e a sensualidade. Quando, há quatro anos, Monique Gardenberg escolheu-a para viver a monja budista e a Madame Petit Pont da peça Os Sete Afluentes do Rio Ota, ouviu de José Celso Martinez Correa a seguinte aprovação: “Você acertou. A Helena é mesmo monja e perua”.
Helena viveu na pele os amores e conflitos comuns ao Cinema Novo e ao marginal. Enquanto ainda dividia com Glauber o teto e a guarda da filha Paloma, interpretou socialites em A Grande Feira, de Roberto Pires, e Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias. O tipo chique prevaleceu também em Cara a Cara, de Julio Bressane, no papel da filha de um político corrupto. Bressane foi a segunda grande afinidade intelectual de Helena – o que resultou num namoro. Naqueles tempos, a regra parecia ser mesmo essa. Durante as filmagens de O Padre e a Moça, a moça conduziu ao pecado tanto o diretor, como o fotógrafo Mário Carneiro.
“Ela era uma pessoa ensolarada, cintilante, de raciocínio rápido”, atesta Walter Lima Júnior, então marido de sua grande amiga Anecy Rocha. A essa altura, os leitores de Nelson Rodrigues já conheciam sua opinião mitificante sobre a atriz: “Não é por acaso ou capricho que uma mulher se chama ao mesmo tempo Helena e Ignez”, escreveu.
A união mais duradoura, com Rogério Sganzerla, viria depois do lançamento do petardo O Bandido da Luz Vermelha (que saiu agora em DVD), onde Helena desfilou pela primeira vez sua persona definitiva de garota do barulho. Janete Jane era tudo o que esperava para romper de vez com a interpretação naturalista. Talvez por isso nunca a vejamos no mesmo panteão das grandes atrizes, junto com Fernanda, Cacilda e Marília. Helena é da estirpe das mulheres-evento, assim como Leila, Norma e Sônia. Através dela, o cinema não cresce, mas se adensa e penetra mais fundo.
A prostituta Janete Jane, a Escandalosa, algoz e vítima do Bandido, lançou uma série de personagens para quem não bastava um nome. Era preciso um aposto. Em A Mulher de Todos, ela era Ângela Carne e Osso, a Rainha dos Boçais. Em Copacabana Mon Amour, Sonia Silk, a Fera Oxigenada. Nos filmes de Sganzerla, a atriz encarna como ninguém o modelo de performance corporal, gestual anárquico e sensualidade desenfreada que caracterizava o cinema cafajeste, realizado entre a Boca do Lixo paulista, as favelas, inferninhos e o calçadão das praias cariocas.
No vídeo Helena Zero, que seu genro Joel Pizzini e Paloma Rocha acabam de entregar ao Canal Brasil, a edição reuniu provas da fixação oral da dupla Helena-Rogério. Em diversos filmes, ela morde discos, charutos e facas; chupa sorvete; sorve e derrama sangue pela boca; vomita, lambe vidraças, entorna garrafas, cospe na cara dos homens. Walter Lima Jr. lembra que, na gravação da minissérie Os Maridos, para a TV Globo, pediu que ela criasse uma atitude inesperada para marcar sua atuação como juíza num tribunal. Ela escolheu comer uma banana.
Ver Helena Ignez nos filmes marginais é tomar contato com a plena liberdade do desejo. As saias curtíssimas, os pequenos seios freqüentemente à mostra, os olhos grandes de boneca, a boca devoradora e suavemente dentuça, tudo emoldurado pela juba loura, exalam o erotismo e a irreverência de uma pin-up envenenada. Ela agencia e subverte as poses de glamour girl como se injetasse ácido sob o glacê do bolo. E a câmera a segue, imantada. Capta seus berros, rodopios, danças loucas. Helena é uma intempérie na tela.
Trovões ribombaram na entrevista do casal a O Pasquim de fevereiro de 1970, quando ambos acusaram o Cinema Novo de “paternalizador”, “conservador de direita” e “antivanguarda”. Era o rompimento dos filhotes marginais, como bem explicou via Freud o crítico Jean-Claude Bernardet. Na mesma época, Helena associou-se a Sganzerla e Bressane para fundar a produtora Belair, que no curto espaço de sete meses produziu, quase simultaneamente, seis radicais e baratíssimos longas-metragens. Helena atuou em todos. A experiência, no auge da ditadura, foi interrompida pelo alerta de um general. Estavam na mira da repressão. Em menos de 24 horas, os três embarcaram para Paris. Rogério e Helena exilaram-se entre Londres, Nova York e o Saara.
De volta, anos mais tarde, Helena afastou-se do cinema, do teatro e da televisão. Entrou para o movimento Hare Krishna, abraçou o taoísmo e dedicou-se à criação de Sinai e Djin, suas filhas com Rogério. Mas, ao contrário de Odete Lara, que trocou definitivamente a carreira pela vida espiritual, Helena fez um lento retorno em novos trabalhos de Sganzerla (Nem Tudo é Verdade, O Signo do Caos e a peça Savannah Bay, de Marguerite Duras), Bressane (São Jerônimo) e Guilherme de Almeida Prado (Perfume de Gardênia). Distante da imagem de menina bandida, hoje ela escolhe papéis mais reflexivos e comporta-se como profissional exemplar. “Nas temporadas do Rio Ota, ela sempre chegava cedo, preparava-se com afinco e acalmava o stress do resto do elenco. Enfrentou com admirável serenidade a doença e a morte do Rogério”, conta Monique Gardenberg.
A trajetória de Helena Ignez cria um contraponto interessante com as transformações que o tempo impôs a toda a cena da cultura marginal em tempos de democracia liberal e pós-modernidade. Hélio Oiticica virou griffe de museu. Julio Bressane segue construindo suas belas charadas culturalistas. Ex-tropicalistas chegaram ao poder. O urro de Sganzerla permanecia até há pouco no ar como um derradeiro e solitário manifesto de indisciplina. Helena tem acompanhado retrospectivas do trabalho do ex-marido pelo mundo afora. Em março último, foi a vez de presenciar uma homenagem a sua própria carreira no Festival de Fribourg, na Suíça. Na ocasião, foi apresentada a videoinstalação Elétrica Sganzerlândia, inédita no Brasil.
Helena ocupa-se, ainda, de restaurar a obra de Sganzerla, assim como captar patrocínio para dirigir Luz nas Trevas, roteiro deixado por Rogério para o retorno do Bandido da Luz Vermelha. Aos deveres de viúva, somam-se os projetos da nova autora. Ela realizou em 2003 o vídeo A Reinvenção da Rua, a partir de uma instalação de arte pública de Vito Acconci em São Paulo. A produção de A Canção de Baal, seu primeiro longa-metragem, foi iniciada com meros 18.500 reais de sua conta bancária. Parte do elenco de Os Sete Afluentes do Rio Ota, mais a assistente de direção Michele Matalon estão com ela na nova aventura. O performer Carlos Careca faz o papel principal.
É um musical sem disfarces, gênero que aproximou Helena do cinema e de Glauber, lá no início. Vai ter dança, cabaré rural e atitude desafiadora, como condiz com o currículo da baiana ultrajante. Se é Brecht, então será teatro. Helena já disse por aí que o bom cinema ou é documentário, ou é teatro.