Marcelo Janot está integrando o Júri da Crítica Internacional (FIPRESCI) no 82o Festival de Veneza, e ao longo do evento compartilhará breves impressões sobre os principais filmes assistidos.
O LEÃO DE OURO QUE NINGUÉM ESPERAVA
Da mesma forma que Cannes em 2024, o Festival de Veneza deste ano terminou com um resultado surpreendente - e decepcionante para muita gente. Perderam aqueles que ganharam mais elogios e geraram mais burburinho pela urgência de sua mensagem política: em Cannes, “A Semente do Fruto Sagrado", de Mohammad Rasoulof, perdeu a Palma de Ouro para “Anora”, de Sean Baker”, ficando apenas com um Prêmio Especial do Júri, enquanto na disputa pelo Leão de Ouro o favorito “The Voice of Hind Rajab”, da diretora tunisiana Kaouther Ben Hania ficou em segundo lugar, levando o Grande Prêmio do Júri. O vencedor de Veneza foi “Father Mother Sister Brother”, um filme menor na carreira de Jim Jarmusch.
O que havia em comum entre os dois júris que deram a láurea máxima a filmes independentes americanos? O presidente era americano, com forte ligação com o cinema independente: Greta Gerwig em Cannes, Alexander Payne em Veneza. Coincidência ou uma prova inequívoca de que no fim das contas é quase sempre o presidente quem manda nos júris? Ironicamente, o iraniano Rasoulof, o injustiçado de Cannes, estava no júri de Veneza, ao lado de nomes como os cineastas Stephane Brizé, Maura Delpero, Cristian Mungiu e as atrizes Fernanda Torres e Zhao Tao. Rumores dão conta de que no ano passado em Veneza a presidente do júri Isabelle Huppert foi quem determinou que o prêmio de Melhor Atriz fosse para Nicole Kidman por "Baby Girl" e não para Fernanda Torres por “Ainda Estou Aqui” - em entrevista ao Globo, o diretor do Festival, Alberto Barbera, disse ter convidado Fernanda Torres esse ano como uma espécie de “pedido de desculpas”.
Mas vamos tentar entender o que teria motivado o júri presidido por Payne a dar o prêmio máximo de Veneza para o filme de Jarmusch: a razão mais aparente seria prestar uma homenagem a Jarmusch pelo conjunto da obra, e ao mesmo tempo evitar consagrar um filme que traz uma mensagem contundente e impactante sobre o genocídio em curso em Gaza. Porque na seleção de ótimos títulos em competição não apenas “The Voice of Hind Rajab” como diversos outros poderiam ter vencido, casos de “Frankenstein” de Guillermo Del Toro e “No Other Choice”, de Park Chan-Wook. Mas Payne e cia escolheram “Father Mother Sister Brother”, que reúne três histórias de irmãos e suas relações com os pais, com alguns elementos em comum entre elas. Com bons atores e uma história simples e bem humorada, o filme de Jarmusch não é ruim, mas tampouco pareceu ser marcante a ponto de merecer o principal prêmio de Veneza. Ao contrário de “Anora”, que em Cannes ano passado causou reações extremas, gerou debate e acabou ganhando também o Oscar de Melhor Filme, dificilmente o filme de Jarmusch seguirá o mesmo caminho - seu principal problema é a sensação de indiferença que eles nos deixa após a sessão. Provavelmente será lembrado no futuro apenas como o filme que tirou o Leão de Ouro do mais impactante e grande favorito.
DIAS 30, 31 e 1
O DESTAQUE
“FRANKENSTEIN”, de Guillermo del Toro
Esqueçam essa bobagem de contar minutos de aplausos. Se é possível apontar um favoritismo entre os filmes exibidos nos primeiros seis dias do Festival de Veneza, pelo menos no que diz respeito à qualidade dos filmes e aos comentários gerais entre o público e a crítica, Guillermo del Toro e Park Chan-Wook saem na frente. O novo “Frankenstein" impressiona sob inúmeros aspectos. Logo de cara chama a atenção a irretocável produção de época recriada em estúdio, com pouquíssimo uso de computação gráfica, algo raríssimo em filmes do tipo. Mas o aspecto que mais sobressai e encanta é a opção por fazer da criatura um monstro mais humano do que os que nos acostumamos a ver nas inúmeras versões cinematográficas.
O romance original de Mary Shelley, publicado em 1818, já trazia uma parte da história contada sob o ponto de vista da criatura, algo que foi suprimido de muitos filmes e agora se torna o ponto alto do filme de Del Toro. Ele é visto inicialmente como uma espécie de ciborgue indestrutível, que resiste a uma saraivada de tiros da tripulação de um navio encalhado no gelo, onde seu criador Victor Frankenstein (Oscar Isaac) se refugiou. A história passa a ser contada então em flashback, quando o cientista oferece ao explorador que o resgatou o seu relato de como foi sua vida desde a infância infeliz até o que o levou até ali.
Victor só se refere à sua criação como uma coisa, usando o pronome “it”. Mas a coisa tem sentimentos, inteligência própria e livre arbítrio, como percebemos a partir da terceira parte, contada por ela. Aos poucos vamos percebendo seus traços humanos, seja físicos (ele é interpretado pelo galã Jacob Elordi) ou emocionais. A bondade como um traço natural, o gosto pelo conhecimento trazido pelos livros, a necessidade de afeto e a triste descoberta da inevitável violência que nos cerca, tudo isso nos faz ter empatia pela criatura e perceber que o verdadeiro monstro era quem o criou. Uma mensagem importante, que pode ser lida como um alerta no mundo movido a ódio em que vivemos, mas sobretudo uma bela lição cinematográfica de Del Toro.
A SURPRESA
“A PIED D’OEUVRE”, de Valerie Donzelli
Um filme intimista é um estranho no ninho em uma competição com tantas obras ambiciosas. “A Pied D’Oeuvre" é da mesma diretora do ótimo “A Guerra Está Declarada”, a francesa Valerie Donzelli. Conta a história de um fotógrafo e escritor de relativo sucesso profissional que passa por uma crise existencial que o faz repensar suas escolhas. Recém-separado da mulher, que foi morar no Canadá com os filhos, ao ter o manuscrito de seu novo livro rejeitado pela editora, ele toma uma atitude radical: vai morar num apartamento pequeno e passa a sobreviver com o pouco que ganha fazendo pequenos bicos de serviços gerais. Os trabalhos ele arranja através de um aplicativo que promove uma espécie de leilão em que ganha o trabalho quem aceita receber menos.
É uma brutal crítica à nova ordem capitalista, que nas mãos de um Ken Loach ganharia ares de libelo contra a exploração da mão de obra. Mas aqui Valerie Donzelli e o co-roteirista Gilles Marchand, adaptando o livro autobiográfico de Franck Courtés, optaram por um caminho arriscado, que poderia ser confundido com uma “romantização” da miséria. Afinal, o protagonista Paul (Bastien Bouillon) é branco, de uma classe favorecida, o que deixa margem para interpretação de que esteja embarcando nessa vida como laboratório para um novo livro e, ao mesmo tempo, estaria roubando oportunidades de trabalho de pessoas necessitadas, que se sujeitam a pagamentos tão baixos por ser a sua única forma de sobrevivência.
Mas percebemos um interesse genuíno de Paul em se submeter a trabalhos que vão lhe trazer mais dor de cabeça (e física) do que alegrias, mas que ao mesmo tempo nos mostram que a beleza da vida pode estar num conjunto de pequenos instantes que nos reconectam com a arte, a vida e o que percebemos ser o mais precioso - e Donzelli consegue fazer isso de forma tocante, sem jamais soar sentimental ou panfletária.
APENAS BOA DIVERSÃO
“LE MAGE DU KREMLIN”, de Olivier Assayas
“THE SMASHING MACHINE”, de Benny Sadie
As assinaturas do francês Olivier Assayas (de “Depois de Maio” e “Acima das Nuvens”) e do americano Benny Safdie (dos cults “Joias Brutas” e “Bom Comportamento”, co-dirigidos com o irmão Josh) criavam expectativas quanto a algo menos convencional do que acabou sendo visto nos seus respectivos filmes na competição de Veneza. “O Mágico do Kremlin”, de Assayas, é uma produção estrelada por atores hollywoodianos como Jude Law e Paul Dano, sobre os bastidores do poder russo no período que vai dos últimos anos do governo Boris Yeltsin à ascensão de Vladimir Puttin. Baseado num livro ficcional que tem como personagem principal Vadim Baranov (Dano), assessor, conselheiro e mentor de Puttin, o filme tem estrutura esquemática. A única função do pesquisador acadêmico interpretado por Jeffrey Wright no filme é escutar Baranov narrando sua história em flashback. Dano e Law interpretam russos que só falam inglês, mesmo entre eles, o que deixa uma estranha sensação no espectador. De qualquer forma, é curioso e divertido observar detalhes da política russa, em uma trama recheada de intrigas envolvendo o poder.
Safdie também fez um filme em flashback, acompanhando o auge da carreira do lutador de MMA Marc Kerr no final dos anos 90, uma época em que o esporte ainda não havia atingido cifras milionárias. Dwayne Johnson está muito bem no papel principal, assim como o lutador Ryan Bader, que interpreta seu melhor amigo, Marc Colerman, e Emily Blunt acerta o tom no papel de sua esposa. Kerr nunca havia perdido uma luta quando a história começa, e a principal mensagem do filme é a de que é preciso lidar com o fato de que ninguém é invencível. Tirando esse aspecto - e o vicio em opióides, que é resolvido de forma pouco cinematográfica, há muito pouco na sua biografia para justificar fascínio em quem não seja fã de MMA. Mas mesmo para quem não aprecia a violência que envolve esse tipo de luta, “The Smashing Mashine” ainda assim é uma boa diversão por conseguir equilibrar os bastidores do esporte com o drama humano.
DIAS 27,28 e 29
O DESTAQUE
“EOJJEOL SUGA EOPDA”, de Park Chan-wook
O novo filme do diretor sul-coreano de “Old Boy”, “A Criada” e “Decisão de Partir” é baseado no romance policial americano “The Ax”, de Donald E. Westlake, publicado em 1997 e adaptado para o cinema em 2005 por Costa-Gavras com o título de “O Corte”. Portanto, apesar de vir sendo saudado por muita gente como o “Parasita" de 2025, ao contrário do filme de seu conterrâneo Bong Joon-ho, não se trata de uma história original.
O que há de semelhante com o filme de 2019 é a ambientação da trama na casa de uma família de classe social privilegiada que vê sua rotina abalada a partir de um elemento transformador - no primeiro caso, os novos empregados que se infiltram como parasitas, e aqui a notícia da demissão do patriarca, Man-su (Lee Byung-hun), após 25 anos trabalhando como gerente para uma fábrica de papel.
Sem conseguir se recolocar no mercado de trabalho por conta da crescente automatização que gera cada vez mais cortes de funcionários, e ameaçado de ter que se desfazer da casa, dos dois cachorros e dos hábitos que o dinheiro podia comprar, ele toma uma decisão radical: assassinar seus principais concorrentes a uma vaga em uma das empresas de papel que ainda utilizam força de trabalho qualificada como a dele.
Pode-se imaginar o que resulta de tal decisão partindo de um pai de família honesto que nunca pegou em uma arma antes. Com a estética característica do cinema sul-corteano, misturando doses de humor quase pastelão com momentos sanguinolentos bem ao estilo do diretor, o que o filme nos confirma, a partir de uma história publicada nos Estados Unidos no fim do século passado e adaptada na França há 20 anos, é que a nova ordem econômica parece um pesadelo cada vez mais global - e devastador.
MELHOROU
“LA GRAZIA”, de Paolo Sorrentino
O diretor italiano de “A Grande Beleza”, que coleciona na mesma proporção fãs ardorosos e detratores implacáveis, vinha do fracasso retumbante do pretensioso “Parthenope”, que passou em brancas nuvens em Cannes, mas aqui ele está bem mais sóbrio. Segurando a mão nos maneirismos visuais, metáforas e simbolismos, ele consegue dar o seu recado de forma clara e direta ao retratar os últimos dias no poder de um fictício presidente italiano, interpretado com o brilhantismo de sempre por Toni Servillo. Conhecido pelo apelido de “concreto armado” por ser fechado e durão, o vemos lidando com dilemas familiares e políticos ao se confrontar com questões que envolvem a eutanásia e o pedido de perdão presidencial para dois assassinos que teriam razões justificadas para os crimes cometidos. A inspiração vem dos dilemas éticos e morais da série “Decálogo”, de Krzysztof Kieslowski, que Sorrentino resgata aqui com delicadeza e momentos de grande beleza. O presidente de Servillo no fundo é um sujeito bom (e que adora ouvir hip hop nas alturas), cuja melancolia contrasta com a crescente desumanização dos tiranos instalados no poder mundo afora.
SOFRÊNCIA
“ORPHAN”, de Laszlo Nemes
Se você lembra bem (e quem consegue esquecer?) do filme de estreia do diretor húngaro, “O Filho de Saul”, sabe que seria muito difícil fazer outra obra tão impactante, brilhante e ao mesmo tempo deprimente como aquele ambientado em um campo de concentração nazista. “Orphan”; não chega perto, mas ainda assim é pesado e tocante ao retratar o drama de outro menino sofrendo as consequências da guerra. Se passa em Budapeste em 1957, logo após o fracassado levante popular contra o regime comunista, e traz um cenário extremamente hostil sob a ocupação soviética. Andor é um adolescente judeu que vive com a mãe, acreditando que o pai teria morrido na guerra. Para muita gente, a revelação de que seu pai está vivo pode ser um alívio - mas para ele e sua mãe é apenas o início de um pesadelo. Pode-se dizer que Nemes até “segura a mão” e tenta encontrar espaço para um pouco de poesia em meio à desgraça, mas o que fica mesmo é o impacto dramático.
A DECEPÇÃO
“JAY KELLY”, de Noah Baumbach
O início soa promissor, com um plano-sequência que percorre os agitados bastidores dos instantes finais de uma filmagem que tem Jay Kelly (George Clooney), famoso ator hollywoodiano, como protagonista. Antes de emendar mais um trabalho, ele entra em crise existencial e decide recuperar o tempo perdido com as filhas. Ou seja, cancela o novo projeto, para desespero de seu agente (Adam Sandler), e aceita pela primeira vez ser homenageado com um tributo num pequeno festival na Toscana. Ao surpreender a filha viajando de trem de segunda classe, ele volta a experimentar a sensação do que é ser uma pessoa “normal”, ao mesmo tempo em que a partir do reencontro com um ex-amigo de juventude (Billy Crudup) relembra episódios marcantes de sua vida e as consequências de suas escolhas. “Jay Kelly”; poderia ser um “Memórias”, de Woody Allen, sem a neurose, misturado com elementos de “Noite Americana”, de Truffaut. Consegue ser apenas um ligeiro passatempo Netflix como veículo para admiradores de Clooney, que descamba no sentimentalismo e em algumas cenas um tanto inverossímeis - consegue imaginar George Clooney entrando no vagão de um trem, todo simpático com a galera, e ninguém sacar o celular pra registrar a presença ilustre ou pedir uma selfie? Enfim, esse é apenas um de muitos problemas que o filme enfrenta.