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MARADONA BY KUSTURICA

23.05.2008
Por Ricardo Cota
PSEUDODOCUMENTÁRIO REEDITA CULTO À PERSONALIDADE

Já no tapete vermelho da Sala Grand Lumière do Palácio dos Festivais a noite prometia ser de altos e baixos. Em clima de muita camaradagem, o nanico Maradona e o gigante Emir Kusturica posavam para fotos entre troca de passes e até de embaixadinhas que levavam ao delírio os paparazzi. Dentro da sala, o clima era de arquibancada.



Desbancando o protocolo de Cannes, convidados argentinos trajavam camisas da seleção portenha e entoavam o grito de guerra “Olê, Olê, Olá, Diego, Diego”. Na platéia, muitos portenhos e poucas celebridades, com destaque para um sisudo e solitário Spike Lee.

O clima de euforia, no entanto, foi arrefecendo à medida que a estrela da festa, o filme em si, ia se desenrolando na tela.



Logo no início Kusturica é apresentado durante um show de sua banda como o “Diego Armando Maradona do cinema”. Em seguida, faz a maior de todas as revelações: todos os seus filmes, inclusive o premiado com a Palma de ouro em Cannes, Underground, podem ser interpretados à luz da história pessoal e dos toques mágicos de Diego Maradona. Cenas de filmes são intercaladas a imagens do jogador, num texto em que Kusturica não poupa elogios rasgados ao comparar Maradona, entre outros, a Andy Warhol, Sid Vicious e personagens de Sam Peckinpah. No decorrer do filme, Freud, Jung e Che Guevara somam-se ao caldeirão intelectual do cineasta para interpretar, exageradamente, aquele que parece ser o único jogador de futebol do limitado futebol portenho.



As maiores referências recaem sobre a antológica partida entre Argentina e Inglaterra, em que Maradona fez um gol de mão e um golaço considerado como “o gol do século”, repetido à exaustão ao longo do filme. Tivesse Kusturica assistido a Pelé Eterno, certamente veria que o século foi feito de outros grandes gols, além do de Maradona. Mas se como conhecedor de futebol Kusturica se sai um ótimo cineasta, Maradona por sua vez confirma a impressão de que como político foi um dos maiores jogadores de futebol do mundo.



No filme, que se propõe um documentário, praticamente só ele e Kusturica falam. A família de Maradona, por exemplo, não dá um pio, e é apresentada a partir de uma exaltação à mulher do craque, Claudia, que deve ser mesmo uma santa. Maradona tem explicação política para tudo. Seu gol de mão contra a Inglaterra (“la mano de Dios”), por exemplo, é visto como uma resposta à guerra das Malvinas. Sua passagem pelo clube de futebol Boca Juniors ganha ares de “decisão aristocrática”, já que ele podia ter aceitado uma proposta melhor para jogar no rival River Plate. No Nápoles, Maradona revela que um time do sul jamais poderia ganhar da máfia do norte, que controla o futebol italiano. Dinamite também é disparada contra a FIFA, entidade em que João Havelange seria o detentor das armas e Joseph Blatter, dos tiros.



A metralhadora giratória no entanto concentra fogo mesmo naquele que é o alvo preferido do craque: George Bush. Kusturica embarca na onda e abre janelas no longa para explicar a ALCA, o NAFTA, a crise econômica na Argentina e discursos políticos dos líderes que adotaram Maradona como “órfão do sistema”: Fidel Castro e Hugo Chávez. Para Chávez, Kusturica abre uma janela imensa, com imagens de um discurso patético contra a ALCA, em que o venezuelano diz até ser capaz de interromper a chuva. Tamanha confusão só esvazia a crítica contra Bush.



Mas nem só de baixos é feito o filme de Kusturica. Quando o diretor se impõe sobre o culto à personalidade há cenas dignas do seu melhor cinema. Os trechos em que um torcedor alucinado explica a criação da Igreja Maradoniana são carregados do frescor, da ironia e da descrição do real em forma de caricatura que compõem os traços principais da filmografia do autor de Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios. Kusturica arranca risadas ao mostrar as cerimônias de batismo e o casamento dos maradonianos. A idolatria desmesurada explica muito de um país que se agarra a um craque como se fosse sua salvação e também nos serve de consolo. Afinal, de Pelé a Romário, de Garrincha a Ronaldos, passando por Zico e cia., o que não falta ao Brasil é craque.



Também digna de registro é a seqüência em que um Maradona emocionado canta abraçado com as filhas uma música que resume a sua vida. Sem proselitismo, só com imagens, Kusturica traça nesse momento um retrato da angústia e da realização desse controverso personagem.



O que fica do filme porém é a impressão de uma obra de torcedor apaixonado, aquele que vê todas as virtudes no seu time e nenhuma no dos adversários. Maradona não relata as entranhas da máfia do futebol portenho, que tanto beneficiam o Boca; não lembra que sua Seleção, a Argentina, foi campeã do Mundo em 78 num dos mais escandalosos casos de intervenção política do campeonato (aliás, Maradona não fala de Argentina a não ser quando se trata de Malvinas); omite malandragens como a água adulterada que serviu ao jogador Branco, do Brasil, na Copa de 90. No fim, o que resta é a indulgência que tem servido de mantra para o jogador nas entrevistas em Cannes: “Se eu não tivesse consumido cocaína, teria sido um jogador muito melhor”. Mas sem cocaína Maradona seria Maradona?



P.S.: Após aplausos protocolares, Spike Lee saiu mudo, silencioso e muito, mas muito mesmo, misterioso.

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