Desde pequeno, Horacio Pietragalla desconfiava que fosse filho adotivo. Sentia-se “um cão em família de gatos”. Macarena Gelman um dia ficou sabendo que o homem que chamava de tio era na verdade o assassino de sua mãe, presa política. Juan Cabandié visitou já rapaz a cela em que sua mãe lhe deu à luz, num antigo presídio da ditadura. Histórias dramáticas como essas vêm à tona em ¿Quién Soy Yo? Los Niños Encontrados en Argentina, de Estela Bravo, uma das principais atrações do Cinesul.
O filme é uma bomba de emoção que explode pausadamente no peito do espectador. Em foco, alguns resultados do trabalho de 30 anos das Avós da Plaza de Mayo (não confundir com as Mães), ONG dedicada a localizar filhos de desaparecidos políticos. Os bebês, em sua maioria nascidos no cativeiro, eram entregues a famílias ligadas aos militares ou deixadas em institutos de crianças abandonadas. Mortos os pais, eles cresceram em famílias adotivas, tendo nomes e datas de nascimento trocadas. De cerca de 500 pessoas nessas condições, as Abuelas já encontraram 88. Quatro delas contam para a câmera de Estela Bravo o duro trabalho de refazer suas identidades (daí o título “Quem Sou Eu?”) e recompor laços familiares tardiamente.
As histórias são comoventes e dão uma idéia dos efeitos profundos da ditadura argentina, uma das mais ferozes da América do Sul no século passado. Sob o pretexto explícito de “botar os filhos de guerrilheiros em boas mãos”, mas com o objetivo não confesso de cortar pela raiz uma futura geração de subversivos, os militares cometeram também esse tipo de genocídio sem mortes, porque mirado na identidade.
A ação das Abuelas tem seus aliados de peso, como os organismos de defesa dos direitos humanos e um fantástico banco de dados genéticos que permite identificar o DNA de todas as famílias atingidas pela repressão. Mas tem também seus contratempos, como bem demonstra a seqüência em que Estela Carlotto, presidente da organização, debate com universitários que acreditam na justeza da ditadura e até duvidam que haja filhos de desaparecidos por aí.
O tema das crianças seqüestradas já foi objeto do bem-sucedido Botín de Guerra, doc do argentino David Blaustein, mais centrado no trabalho das Avós. No brasileiro Condor, foram abordados casos semelhantes no Uruguai e no Chile.
Estela Bravo tocou no assunto pela primeira vez em 1985, com o curta Niños Desaparecidos, cujo essencial foi integrado a ¿Quién Soy Yo?>. Vinte anos depois, ela voltou a encontrar alguns personagens. Absorveu também as impactantes cenas de julgamentos de torturadores eminentes, ocasião de catarses históricas para as famílias das vítimas. O filme articula os diferentes materiais com senso de oportunidade e dramaticidade, mas sem cair no proselitismo nem camuflar a complexidade das coisas. É um trabalho de enorme maturidade.
Nova-iorquina de 75 anos, Estela Bravo é uma das mais proeminentes documentaristas em atividade, com muitos trabalhos ligados a Cuba, onde seu marido (e produtor de seus filmes) é professor da Escola de Medicina de Havana. Atualmente, ela finaliza o doc Operação Peter Pan, sobre o envio, pela CIA, de cerca de 14.000 crianças cubanas a seus pais exilados nos EUA.
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