(Texto escrito durante o Festival do Rio 2007 quando este filme também foi exibido.)
Nada se sabe sobre o que levou Ivan, agora com 14 anos, a ter que viver com seu tio Jaime, um homem ainda jovem que vive de traficar peças desmontadas de carros roubados. Não se sabe se Jaime seria irmão do pai ou da mãe de Ivan, não se fala de seus pais. O certo é que o adolescente experimenta uma situação de dependência em relação ao homem mais velho que o deseduca, utilizando o rapazola em esquema equivalente às ditas “robautos” cariocas. O tio incutiu em Ivan a idéia de emigrarem de um México com menos oportunidades para os Estados Unidos vizinho, visto de forma idealizada como uma terra de fartura, com oportunidades de trabalho muito mais bem remunerado – ilegalmente, é claro.
Para isto, a dupla vem acumulando dinheiro obtido com as peças roubadas. Afinal, eles têm que pagar aos “coiotes” que atravessam a fronteira pelo deserto transportando mexicanos em condições sub-humanas: viagens que - não raramente - acabam em frustração, humilhação e até mesmo em morte quando os imigrantes não são apenas repatriados sem as economias de uma vida e que permitiram a tentativa fracassada.
Efraín é o melhor amigo de Ivan: trabalham enxugando carros em um lava-a-jato e juntos, brincam como meninotes, jogam sinuca como se já fossem (e querendo mimetizar) homens feitos e ficam atraídos por mulheres como adolescentes no início da puberdade. Juntos, fazem treinamento prático em delitos e pequenos furtos - ou nem tão pequenos. Efraín mora com a mãe que é comerciante em uma “tendinha” e um irmão mais novo. Fala-se em “dever de casa” para o pequeno, mas não para os dois amigos, nunca vistos em escola. A mãe de Efraín aparenta uma certa ingenuidade em relação às seduções que a ilegalidade oferece aos jovens, podendo até mesmo lembrar um pouco a mãe da música de Chico Buarque, “Meu Guri”.
57 anos depois de Luís Buñuel ter oferecido ao mundo um retrato desalentador da marginalização da infância em Os Esquecidos, este filme, também rodado no México, mostra que nada terá mudado substancialmente. Sem a mesma amplitude do filme de Buñuel e com um clima menos violentamente explícito como o de nosso Pixote, Partes Usadas mostra que o jovem ainda em formação também não passa de “parte usada” - e abusada - em uma sociedade desigual: social, econômica e culturalmente. Assim como os mexicanos que imigram ilegalmente não passam de modos e meios de “coiotes” inescrupulosos transformarem gente em mercadoria. Se a redução do ser humano à categoria de objeto de troca foi ainda mais bem demonstrada no contundente Mundo Livre, de Ken Loach (exibido no FestRio 2007, ainda sem ter sido lançado em circuito), este “pequeno” filme de Aarón Fernández Lesur é, no mínimo, uma pertinente variação - mais intimista - dos mesmos temas, com uma colaboração preciosa dos atores, especialmente dos garotos Emery Eduardo Granados e Alan Chavez.
Triste é, mais uma vez, constatar que, apenas pela justaposição de dois filmes, o de Buñuel e este, feito 57 anos depois, pouco ou nada mudou no desamparo à criança que cresce na ilegalidade.
# PARTES USADAS (PARTES USADAS)
México/França/Espanha, 2007
Direção e Roteiro: AARÓN FERNÁNDEZ LESUR
Elenco: EMERY EDUARDO GRANADOS, ALAN CHAVEZ, CARLOS CEJA, PILAR PADILLA
Duração: 95 minutos