Ingmar Bergman foi “revelado” para o mundo já em seu 16º filme, Sorrisos de uma Noite de Amor no Festival de Cannes de 1956 - que no ano seguinte concedeu o Prêmio Especial do Júri para O Sétimo Selo. Em ’58 Morangos Silvestres conquistou o Urso de Ouro em Berlim. Jacques Siclier, em um ainda fundamental livro de 1960 sobre o diretor, pergunta como a crítica européia não havia valorizado tanto seus filmes anteriores: Paris pôde ver em ‘54 Mônica e o Desejo, sendo que Juventude já havia sido exibido em Veneza, dois anos antes. Em ambos, a ânsia pelo breve verão sueco metaforizava a fugacidade das relações afetivas, passíveis de se dissolverem pela morte (em Juventude - ‘Jogos de Verão’ conforme o título original Sommarlek) - ou pelo não menos fatal desamor (em ‘Verão com Mônica’ - tradução correta para o título original de Sommaren med Monika). Em ambos, a transitoriedade dos amores juvenis: conservados na memória, mas irremediavelmente mortos. Tal como o verão que sempre se esvai.
Se Jacques Siclier ainda se mostrava surpreso com a cegueira da crítica francesa para com um diretor que já estava chegando à marca de vinte filmes em treze anos quando foi “descoberto”, consta que a América Latina, em Punta del Leste, já havia vibrado com Bergman em 1952 com o mesmo Juventude - apenas “notado” (sic Siclier) em Veneza - e em um Festival do 4º. Centenário de São Paulo, um de seus filmes mais desalentados, Noites de Circo, foi admirado com entusiasmo por nossa crítica da época.
Quando o cineasta morreu em 30 de julho de 2007 foi difícil não lembrar uma das imagens mais famosas do Cinema que ele mesmo havia encenado em O Sétimo Selo: o jogo de xadrez entre um cavaleiro medieval e um homem de rosto branco como o de um clown, só que sempre muito sério e envolvido em um capuz negro que se prolongava em uma ampla capa igualmente negra. Esta passou a ser a representação emblemática da Morte no imaginário da contemporaneidade ocidental, substituindo a caveira com foice da Idade Média. A existência como um jogo de xadrez onde a Morte sempre vence.
Além da finitude de cada existência (a morte presenciada desde a infância - retratada em seu roteiro para Crianças de Domingo - quando acompanhava os rituais fúnebres dirigidos por seu pai, um severo pastor protestante), outro tema central na extensa filmografia do diretor é a fugacidade das relações amorosas. Talvez um corolário da outra obsessão, a transitoriedade e absurdo da vida quando entendida como criação de um Deus silencioso e inacessível que nos relega, antes da inevitável partida, à solidão, doenças, desespero, dor física e até ao que Bergman chamava de “uma espécie de dor de dente na alma”. Alma que ele imaginava tendo um interior úmido e vermelho como os cenários de Gritos e Sussurros, não por acaso, filme que aborda uma agonia antes do desenlace. A alma como capaz de uma hemorragia.
Assim como a morte sempre foi um tema recorrente em seus filmes, o abandono do ser humano à sua própria sorte pela Criação divina percorreria sua obra, inclusive na chamada ‘Trilogia do Silêncio de Deus’ composta de Através de um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio, todos do início dos anos 1960.
Mas neste ponto de sua carreira Bergman ainda não era considerado um inovador formal até que Persona - equivocadamente intitulado aqui Quando Duas Mulheres Pecam - explodiu como um desafio ainda maior do que todos os filmes anteriores, usando recursos de “distanciamento”, criando a ilusão de que o filme se rompia na máquina de projeção. Foi a época de questionar o papel da arte e do artista em um mundo confuso: a atriz de Persona optava pela mudez, o pintor de A Hora do Lobo perdia os limites entre a realidade e seus fantasmas, os músicos de Vergonha questionavam a “sagrada neutralidade da arte” como disfarce para a “covardia dos artistas”. Nestes filmes, Bergman quebrava a ilusão do cinema, exibindo o título no meio da projeção, mostrando as câmeras de filmagem e, em Paixão de Ana, interrompendo a narrativa para que os atores principais comentassem sobre os personagens.
A “morte” da arte ou do papel do artista na sociedade cederia lugar a um retorno a temas antigos e recorrentes: as relações homem-mulher em Cenas de um Casamento; e a morte, em Gritos e Sussurros. O ensaísta J. Siclier já caracterizara a obra de Bergman como uma espiral que retorna aos mesmos pontos de um círculo, mas cada vez em planos mais elevados como em Gritos e Sussurros, uma das melhores realizações artísticas do século XX, sendo Bergman não apenas um grande cineasta, mas também um dos maiores criadores de todos os tempos, seja qual for a forma de expressão que se considere.
Preferindo dirigir montagens teatrais e de óperas (como já fazia) e filmar para a TV, realizou Fanny e Alexander, e bem mais recentemente, uma série de duetos dos atores nas cenas que compõem sua obra final, Sarabanda, título que faz alusão a uma antiga dança para dois - e também a um movimento das sonatas para violoncelo de Bach que Bergman utilizou em mais de um filme. Especialmente a “Sarabanda” da Sonata número 5, um gemido da alma que substituía as palavras que jamais escutamos quando as irmãs sobreviventes de Gritos e Sussurros ensaiavam uma breve e fugaz reconciliação depois da morte de outra irmã. Breve e fugaz como a felicidade descrita em um dia de verão no diário da morta lido pela criada. Um breve verão que se preserva na memória. Ou nas imagens de um grande filme.
Se o dueto/duelo do Cavaleiro com a Morte se transformou numa das imagens mais célebres do Cinema (plagiada em filmes de Woody Allen ou até mesmo em um com Arnold Schwarzenegger) a morte sempre estaria anunciada, como no sonho de abertura de Morangos Silvestres, quando o antigo diretor sueco (e ator bissexto) Victor Sjöström, já bem idoso, via a si próprio em um caixão. Bergman retomou Sjöstrom, agora como personagem de seu penúltimo filme, Fazedores de Imagem (visto apenas em mostras fora do circuito comercial). Chegará a vez de Bergman como personagem de algum filme além de Crianças de Domingo, dirigido por um filho do cineasta, Daniel Bergman? Um filme que trate de sua vida adulta, de sua persona artísitca e/ou de sua obra? São mais de 60 títulos entre filmes dirigidos e roteiros (que, por vezes, outros filmaram) merecendo serem revistos sempre, uma das mais sólidas realizações de “autores” de uma época em que, ao lado de Fellini e Antonioni – entre muitos outros – a curiosidade das platéias era atraída pelo que seria “felliniano”, “antonioniano” ou “bergmaniano”.