A Boca do Lixo foi um pólo efervescente durante a década de 70 com suas produtoras e seus bares repletos de profissionais do meio cinematográfico que emendavam um trabalho no outro utilizando sempre o improviso como matéria-prima principal. Localizada na região do centro antigo de São Paulo (não por acaso, dada a proximidade com a Estação da Luz, de onde os filmes seguiam para o interior do estado), a Boca continua exercendo particular fascínio nos dias de hoje, talvez por representar o avesso de um cinema oficial, instituído e bem-comportado praticado a partir da fase da retomada. A Cineop – 4ª Mostra de Cinema de Ouro Preto proporcionou aos espectadores um programa duplo, composto por um média-metragem ( O Galante Rei da Boca , de Luís Rocha Melo e Alessandro Gamo) e um curta ( Minami em Close-Up – a Boca em Revista , de Thiago Mendonça).
Como o próprio título anuncia, O Galante Rei da Boca é centrado em A.P. Galante, um dos mais importantes produtores da Boca do Lixo, que começou a acumular experiência como eletricista no estúdio Maristela. Galante personificava um determinado modo de fazer cinema – a partir da exploração do corpo das atrizes e de determinadas condições que não poderiam ser negadas, como a protagonista ficar viva no final da história, mesmo que isso implicasse em trair romances históricos com desfechos mais que conhecidos. A principal qualidade de O Galante Rei da Boca parece estar no fato de evidenciar que as regras mudaram ao longo do tempo. Se nos anos 70, Galante, como bem lembra Carlos Reichenbach, percebeu que “a saída estava no filme de gênero”, na década de 90 não deu certo apostar as fichas numa comédia protagonizada por uma Carla Perez ainda em ascensão – o fiasco Cinderela Bahiana (1998), filme de Conrado Sanchez.
Melo e Gamo também acertam na seleção de entrevistados, nada óbvia, reunindo vários técnicos que trabalharam intensamente no período. Deixam espaço para certa nostalgia, ao registrar antigos profissionais andando hoje pelas famosas ruas da Boca do Lixo (Triunfo e Aurora à frente) e relembrando aqueles anos, prestam homenagem a diretores da época, como Oswaldo de Oliveira, que “maltratava os atores mas entendia tudo de cinema”, e mostram o correspondente à Boca no Rio de Janeiro – a região da Rua Álvaro Alvim, na Cinelândia, que abriga bares, casas de show (Rival) e cinemas pornográficos (Orly e Rex). Em determinado momento, Galante parece caminhar na contramão de uma tendência a romantizar a Boca do Lixo ao admitir que lá “todo mundo estava desempregado, desesperado, fazendo o que podia”.
Ainda assim, o clima de saudade predomina, principalmente em Minami em Close-Up , um dos curtas mais elogiados na última edição do Festival de Brasília, que resgata a revista Cinema em Close-Up , editada por Minami Keizi, entre 1974 e 1977. Thiago Mendonça começa destacando um clima de euforia e idealização que sobrepõe a vestígios de um mundo cão. “A Boca era Cinecittà, Hollywood”, diz David Cardoso, porta-voz do cinema erótico, que também conta que “prostitutas viraram atrizes e algumas atrizes, prostitutas”. Através da Cinema em Close-Up , Thiago Mendonça registra transições dentro da Boca do Lixo, na medida em que a revista, feita por profissionais inseridos naquele contexto, decaiu juntamente à derrocada da Boca, em sua passagem, entre o final dos anos 70 e o início dos 80, do erótico para o pornográfico. E congrega atores e diretores emblemáticos da época – alguns creditados apenas ao final, como Eliane Gabarron, atriz de cinema pornô que durante um bom tempo só aceitava contracenar com o marido Walter, exigência posta de lado à medida que as antigas leis do mercado foram deixando de existir.