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ENTREVISTA COM JOSÉ CARLOS AVELLAR

15.07.2009
Por Leonardo Luiz Ferreira
ENTREVISTA COM JOSÉ CARLOS AVELLAR

O decano da crítica cinematográfica José Carlos Avellar assumiu no primeiro semestre de 2009 a curadoria do cinema do centro cultural Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro. O principal projeto é a formação de público através do contato com retrospectivas de cineastas ou temáticas e filmes que não tiveram chance no circuito comercial. Além disso, Avellar coordena uma série de debates a respeito dos longas exibidos na sala, pois mais importante do que ver um filme é refletir a partir dele. E o espaço cultural atravessa um momento de intensa atividade: atualmente ocorre um colóquio internacional a respeito da obra do documentarista Jean Rouch, que depois cede lugar para uma extensa retrospectiva, com exibição de mais de 70 filmes do realizador, durante o período de 18 de julho a 16 de agosto.



Na entrevista exclusiva, o crítico José Carlos Avellar revela as diretrizes de sua curadoria e reflete sobre a posição entre espectador e obra.



Como surgiu o convite para assumir a direção de programação do cinema do Instituto Moreira Salles?

José Carlos Avellar: A partir de um grupo de trabalho montado pelo Instituto para estudar a renovação dos equipamentos de projeção e, principalmente, de sua linha de programação. O grupo foi criado para discutir a transformação do cinema do Instituto num espaço dedicado, não exclusivamente, mas principalmente, aos clássicos do cinema. O Instituto quer fazer de seu cinema uma sala de repertório, quer, além de se associar ao lançamento de filmes autorais, organizar ciclos e retrospectivas capazes de estimular os espectadores a manter uma relação criativa com o cinema.



O cinema passou a investir em retrospectivas, como a de Louis Malle, em moldes semelhantes a alguns cinemas europeus. Qual o conceito de curadoria para o espaço?

J.C.A.: Veja o ciclo Louis Malle: o adeus à infância ao lado deste outro colado nele, Ken Loach: a vida em família. São duas hipóteses, dois possíveis pontos de interpretação apresentados ao espectador. Uma sugestão de que nos filmes de Louis Malle a figura dramática central é um indivíduo forçado (pela desordem social, pela guerra) a saltar da infância para uma quase maturidade sem passar pela adolescência. Uma sugestão de que Kean Loach traduz num conflito familiar as questões sociais que procura discutir em seus filmes. É evidente, o cinema de Malle e o de Loach não se reduzem a estas características, mas torná-las mais aparentes, como propõem estes dois ciclos interligados, estimula o espectador a buscar outros sinais das estratégias de composição destes realizadores. Estimula a comparar um Malle com outro Malle, um Malle com um Loach, outro Loach com um Malle. Comparar o rigor da iluminação e do enquadramento de Malle com a leveza e a agilidade da câmera de Loach, por exemplo. Comparar os diferentes modos de dirigir atores. Usar um realizador para melhor compreender o outro. Usar a comparação para melhor compreender o cinema de um modo geral. Usar os ciclos e retrospectivas para melhor apreciar o cinema de agora. Como disse acima, vamos nos dedicar principalmente, mas não exclusivamente a mostras e ciclos retrospectivos. Há poucas semanas, participamos do lançamento de Um Homem de Moral, de Ricardo Dias, e no começo de agosto participaremos do lançamento de Moscou, de Eduardo Coutinho. E adiante iremos buscar filmes que não conseguiram espaço de exibição no circuito comercial brasileiro.



Atualmente o jovem tem acesso direto e fácil ao DVD e a baixar filmes na Internet, o que provocou um distanciamento das salas de cinema. O principal objetivo da sala do IMS é investir na formação de público?

J.C.A.: Formar um público de cinema, sim, precisamente isto. Toda a gente vê mais filmes hoje, mas vai menos ao cinema. Vai menos ao cinema num sentido bem amplo. Não só porque frequenta menos as salas de cinema. Não só porque vê filmes em casa, na televisão ou no computador. As pessoas hoje vão menos ao cinema porque deixaram de se relacionar com os filmes assim como no tempo em que cinema se via nos cinemas. Antes da televisão era mais difícil ter contato com filmes, mas o espectador tinha contato maior com a cultura cinematográfica. A informação que circulava então estimulava uma relação – digamos: cinematográfica – com o cinema. O tipo de informação de hoje leva a ver cinema sem a sala escura, sem a dedicação exclusiva à imagem, sem a tela de maior dimensão. Na verdade, cinema em casa sempre existiu. Na verdade, as cópias de 16 mm usadas outrora para projeções em casa ou em cineclubes não eram necessariamente mais definidas do que as que circulam pela Internet e pelos Dvds comerciais de hoje. Mas antes do tempo da televisão, do dvd e da internet ver cinema fora do cinema não bastava. Ver um filme em casa aumentava a vontade de buscar a experiência particular de imersão na tela grande, cercado de silêncio e escuridão. Este hábito já não é tão presente. O que vemos agora é que o filme na tela pequena da televisão, na tela menor do computador e na tela ainda menor do computador de mão, parece suficiente. As pessoas se satisfazem com a possibilidade de um imediato e livre acesso a tudo o que se produz porque os canais de distribuição e exibição de filmes estimulam o espectador a manter um contato superficial com o cinema. O que de fato se perdeu não é uma determinada forma de comercializar filmes, mas um tipo de relação que passa pela dedicação exclusiva no instante da projeção e por uma reflexão depois dela para prolongar o filme na imaginação. Os filmes, as salas de cinema, os sistemas de distribuição, tudo se comporta para levar o espectador a ver o filme e logo se esquecer dele. Ver um novo filme parece mais importante que pensar no filme que acabou de ver ou pensar no cinema de modo geral. Basta lembrar a propaganda usada há alguns anos para divulgar o lançamento de seis diferentes canais de cinema na televisão por assinatura, ela espelha bem o que nos promete a aparente facilidade de poder ver todos os filmes do mundo. Fizeram as contas – seis canais, vinte e quatro horas no ar, doze filmes por dia – e anunciaram contentes para o espectador que ele poderia a partir daquele momento ver mais de setenta filmes por dia, ter 144 horas de cinema por dia – todos os dias. Num único dia, o equivalente a seis dias de filmes. Brincadeira, exagero, mas ao mesmo tempo delírio que vive na cabeça das pessoas e que convém desmontar para recuperar um contato verdadeiro com o cinema. Uma sala de exibição, hoje, não deve se limitar a exibir filmes. Deve atuar para aproximar o espectador do cinema. Isto que é fundamental para todo e qualquer cinema, é a própria razão de ser do cinema do Instituto. O que pretendemos é que o espectador descubra em cada filme que vê um tema para (no mínimo) seis dias de reflexão. Para prosseguir, ampliar, sonhar e reinventar o filme.



Como tem sido a frequência às sessões e aos debates?

J.C.A.: Começamos com uma frequência pequena, bem pequena. A sala tinha um público que se informava pela cobertura de imprensa aos filmes em lançamento. A nova programação, em seus dois primeiros meses teve pequena divulgação. A partir do começo de junho, nós começamos a atingir o público desejado e na presente mostra Jean Rouch, as vagas para dez mesas de debate do seminário se esgotaram e os cinco dias do encontro que precedeu a abertura da retrospectiva tiveram um público constante. De qualquer modo, estamos ainda no começo. Organizamos poucos debates, entre eles um sobre Pachamama de Eryk Rocha, um em colaboração com a Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) e outro com a revista Noz. E fizemos poucas mostras: a que foi encabeçada por Bolívia, do Adrián Caetano, a retrospectiva Joaquim Pedro de Andrade, a que complementou a exposição de Paul Strand, a dedicada a Malle e Loach e agora, em julho, os Quatro Retratos de Havana e o Colóquio Internacional e Retrospectiva Jean Rouch – este último um programa extenso, que vai até o final de agosto. Estamos ainda num instante de conquista de público, o que só se consegue com uma informação regular da programação da sala.





O cine Odeon realizou alguns anos atrás uma experiência semelhante ao se transformar em um grande cineclube, mas a ausência de público os obrigou a mudar de estratégia. Acredita em uma demanda de público significativa para o cinema de arte? Quais são os atrativos da sala do IMS?

J.C.A.: O cinema do Instituto, na verdade, não pretende trabalhar como um cineclube, nem como trabalha uma cinemateca. Existem outros modos de mostrar filmes e falar de cinema, e todos eles funcionam melhor quando podem contar com uma ação simultânea de outros parceiros. Um determinado cineclube pode ter deixado de existir porque estava só. Um cineclube e uma cinemateca atuantes colaboram decisivamente para a existência de um outro cineclube. Todos nós (os que exibimos, debatemos ou produzimos filmes, todos nós) precisamos de uma cultura cinematográfica viva, ao mesmo tempo em que colaboramos decisivamente para que ela exista. O cinema do Instituto oferece além de uma renovada qualidade de projeção, uma série de facilidades para o espectador cinéfilo – como os folders impressos com análises dos filmes que acompanham cada mostra; ou como o passaporte em que a compra antecipada garante 12 ingressos pelo preço de 5, por exemplo. Quanto à existência de um público significativo para o cinema de arte, creio que o público que aqui e ali descobre um filme de autor meio deslocado numa sala comercial e a frequência aos festivais e retrospectivas que se realizam no Rio falam por si só. O problema não está na existência ou não de um público significativo, mas na inexistência de canais regulares para informar este grupo de espectadores como chegar aos filmes que procuram.



Como surgiu o projeto do colóquio internacional sobre a obra de Jean Rouch?

J.C.A.: O projeto nos foi apresentado pelos dois curadores do colóquio e retrospectiva, Mateus Araújo Silva e Andrea Paganini. A mostra se apresentará também em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília. É a primeira vez que se realiza uma retrospectiva tão extensa de filmes de Jean Rouch. E a proposta de colar uma semana de debates nos filmes veio ao encontro do que desejamos para o cinema do Instituto: tão importante quanto a projeção de filmes é o debate em torno do cinema.



Qual a importância de Jean Rouch para o cinema?

J.C.A.: A câmera em movimento, dentro da cena, participante direta da ação: creio que o cinema de Rouch radicalizou uma procura comum nas novas cinematografias que surgiram depois da Segunda Guerra mundial. Do Neorrealismo ao Cinema Novo, da Nouvelle Vague ao Jovem cinema alemão, do Free cinema inglês ao cinema independente norte-americano, no documentário e na ficção, buscava-se romper com a imobilidade da câmera e com a tradição de compor uma imagem colada na ação, mas meio fora dela; buscava-se romper a distância mesmo que pequena entre observador e observado. Em lugar de compor a cena para a câmera, deixar-se conduzir pela cena, compor a câmera para a cena. Com a pequena câmera amadora de 16 mm na África e depois com uma 16 mm aperfeiçoada, silenciosa e ligada a um gravador, Rouch inventou entre o final da década de 1950 e o começo da década de 1960, o cinema que as câmeras digitais permitem a todos, profissionais e amadores, fazer hoje.



A sua mesa de debate no colóquio internacional versa sobre as relações entre Rouch e o Cinema Novo. Quais seriam exatamente esses laços entre o documentarista e os diretores nacionais?

J.C.A.: De um certo modo, podemos dizer que um se descobriu no outro. No mesmo instante em que Rouch filmava na África com uma câmera de 16 mm movida por um mecanismo de relógio, no mesmo instante que realizava documentários ou improvisava cenas de ficção no Níger, na Costa do Marfim e no Mali, no mesmo instante, nosso cinema saía da ficção meio documentária de Rio 40 graus, e Rio, Zona Norte, ambos de Nelson Pereira dos Santos, para a fusão entre documentário e ficção que marcou o Cinema Novo, para os filmes feitos, como dizia Glauber, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, na rua, para registrar a verdadeira imagem das pessoas. Não creio que tenhamos documentários brasileiros feitos como os de Rouch, diretamente influenciados pelos filmes dele, mas não creio que exista documentário feito depois da década de 1960 que não tenha dialogado com a experiência de Rouch – ao mesmo tempo em que a experiência de Rouch dialogou com a do Cinema Novo. A prática de um reforçou a pratica de outro. Um encontrou no outro seu interlocutor, não um exemplo a imitar, mas um interlocutor. Por isso mesmo, Rouch veio seguidamente ao Brasil, pelo menos em 1965, em 1967, em 1971, 1973, 1975, 1979 e em 1996. Por isso mesmo, presidente do júri de documentários no Festival de Veneza em 1970, conferiu o prêmio principal a Viva Cariri! , de Geraldo Sarno, e não se cansava de elogiar a série de documentários produzidos por Thomaz Farkas sobre o Nordeste. Mais do que influências, entre Rouch e o Cinema Novo, podemos falar de um encontro de iguais.



Após os debates, o IMS abriga uma longa retrospectiva do diretor. Quais são os principais destaques?

J.C.A.: Poucos filmes de Rouch são conhecidos do espectador brasileiro. Além dos títulos lançados pela Videofilmes, Crônica de um verão, Eu, um negro (o dvd inclui Os mestres loucos) e Jaguar (o dvd inclui Tourou e Bitti) dois ou três outros foram mostrados em festivais anteriormente. Destaques: Pirâmide Humana, A caça ao leão com arco, Um leão chamado americano, Babatu, os três conselhos, Cocorico, monsieur Poulet e Pouco a pouco são certamente bons exemplos do cinema de Jean Rouch. E, do ponto de vista da relação entre cinema e antropologia, os destaques talvez sejam os seis programas que reúnem os documentários feitos no Níger e os seis com os documentários feitos no Mali.



Quais são as próximas mostras no IMS?

J.C.A.: De imediato, um breve panorama do documentário brasileiro, O Outro Eu, e uma retrospectiva de Eduardo Coutinho em torno do lançamento comercial de seu mais recente filme, Moscou. Adiante, a apresentação de um filme inédito entre nós, Cobrador, in God we trust, de Paul Leduc, baseado em contos de Rubem Fonseca. E logo um conjunto de filmes em que o cinema dialoga com a pintura.



Serviço:

IMS - Rio de Janeiro

Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea

CEP: 22451-040 – Rio de Janeiro-RJ

Tel: 21 3284-7400 – Fax: 2239-5559.

De terça à sexta, das 13h às 20h.

Aos sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h.

Programação do cinema e mais informações: www.ims.com.br















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