Especiais


42ª EDIÇÃO DO FESTIVAL DE BRASÍLIA

08.12.2009
Por Daniel Schenker
SAUDÁVEL MESCLA DE DOCUMENTÁRIO E FICÇÃO

Como em 2008, a seleção de longas-metragens da última edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro destacou a produção de documentários. Mas, seguindo uma tendência que parece ter se fortalecido nos últimos anos, a fronteira entre documentário e ficção surgiu tensionada, com os diretores recorrendo, de diferentes maneiras, à encenação.



Seja como for, quem saiu vencedor da 42ª edição do festival foi uma ficção – É Proibido Fumar , novo filme de Anna Muylaert, atualmente em cartaz nos cinemas. A vitória foi merecida. No ótimo Durval Discos , a diretora mostrou como o presente se sobrepõe ao passado sem, contudo, anulá-lo completamente através da história do Durval do título, que resiste à soberania dos CDs vendendo discos de vinil. Já em É Proibido Fumar , Muylaert centra sua história em Baby (Gloria Pires), personagem presa a uma fase de felicidade do passado.



A cineasta não esconde o desencanto com o presente. Baby parece trazer algo das personagens reprimidas de Leilah Assumpção, como a solitária funcionária pública de Fala Baixo senão eu Grito . O cotidiano de Max como cantor de samba em churrascaria não é mais estimulante. Há uma inegável distância entre o que ambos aspiravam e a realidade, descompasso suavizado pelo modo carinhoso como a cineasta aborda a decadência.



“Eu queria do jeito que era antes”, diz Baby ao se deparar com o novo estofado do antigo sofá. A necessidade de recuperar o passado, obviamente impossível, desponta como a tragédia da protagonista, que, porém, volta a seguir em frente a partir do momento em que se interessa pelo novo vizinho, Max (Paulo Miklos). Com o início do envolvimento com Max, ela decide parar de fumar – até então, sua válvula de escape. É o gancho que Anna Muylaert precisava para tratar da questão do controle, temática abordada de modo menos radical que em Durval Discos .



Com humor esperto, a cineasta acerta nos diálogos. Vale apenas fazer discretos reparos em determinadas soluções do roteiro, que acabam sendo aceitas em nome da ambigüidade. É difícil acreditar, por exemplo, que Max nunca perceba a existência de um buraco na parede da sala. Falta também algo que dê credibilidade à sequência final. Estas restrições (somadas a eventuais exageros nos figurinos de Baby), porém, não nublam a qualidade de É Proibido Fumar .



Na outra ficção em competição, O Homem Mau Dorme Bem , de Geraldo Moraes, o espectador é confrontado com imagens de um país sem lei. Apesar da história se passar nas estradas do interior, o panorama, num sentido geral, não difere muito do encontrado nos grandes centros urbanos: imperam a ousadia dos bandidos e a ineficiência da polícia. O diretor aposta numa fusão de gêneros. Mistura doses de romance e suspense, sem perder de vista o registro de um Brasil esquecido, ao entrecruzar as trajetórias de três personagens: um mendigo, Caburé (Luiz Carlos Vasconcelos, derrotado por um personagem incongruente), que não consegue mais dormir devido à sucessão de tragédias que continuam assombrando sua vida, uma dona de posto de gasolina, Rita (Simone Iliescu, atriz de boa presença que acumulou experiência com Antunes Filho), cujo passado vai sendo descortinado à medida que a projeção avança, e um vendedor de CDs e DVDs, Wésley (Bruno Torres, também bem, vencedor do Candango de ator coadjuvante), obrigado a buscar o próprio sustento em subempregos.



O público relevou os problemas do filme de Geraldo Moraes, com as reviravoltas inverossímeis da trama, a perda de importância de personagens valorizados no início da projeção (como Wésley) e uma certa indefinição entre o registro de brasileiros desfavorecidos e uma capacidade de se metamorfosear em muitos, caso do personagem interpretado por Luiz Carlos Vasconcelos, que transita entre as ocupações de palhaço, garimpeiro e borracheiro. Há aqui uma possível ligação com o trabalho do ator e, particularmente, de Vasconcelos, que se notabilizou como o palhaço Xuxu.



A ficção voltou a bater ponto em Perdão Mister Fiel , documentário de Jorge Oliveira, calcado no resgate da tragédia do operário Manoel Fiel Filho, morto nos porões do Doi-Codi em 1976, pouco tempo depois de um assassinato famoso, o do jornalista Vladimir Herzog. O diretor reuniu depoimentos de autoridades políticas, escritores, jornalistas e familiares de Manoel Fiel Filho com o intuito não só de resgatar a trajetória do operário como de abordar o início da transição do regime ditatorial para a fase de abertura política. Apesar dos depoimentos do presidente (Luiz Inácio Lula da Silva) e dos antigos ocupantes do cargo (Fernando Henrique Cardoso, José Sarney), quem chamou atenção foi Marival Chaves, ex-agente do Doi-Codi, que fez revelações surpreendentes e detalhadas sobre as torturas cometidas durante os anos de chumbo.



Também suscitou bastante curiosidade a gravação (pertencente à Fundação Getulio Vargas) contendo uma fala em off do ex-presidente Ernesto Geisel ordenando a exoneração do general Ednardo d’Avila Mello após os assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho. Mesmo com as interessantes questões que vêm à tona nas declarações dos entrevistados, entrelaçadas na montagem, como se cada um desse continuidade à história que o outro iniciou, Perdão Mister Fiel é uma realização problemática. Os entrevistados são enquadrados de frente para a câmera em cenas com fundo preto que acabam gerando uma monotonia visual. O cineasta entrelaça a parte documental com trechos de encenação, nos quais procura reconstituir através de dramatizações a captura de Manoel Fiel Filho e as torturas que sofreu no Doi-Codi. Mas os atores foram levados a incorrer num obsoleto registro melodramático. E as sequências são marcadas por soluções estéticas de gosto um tanto duvidoso, a exemplo da inclusão da cor em determinados elementos das imagens em preto-e-branco.



Já no belo Quebradeiras , Evaldo Mocarzel caminha na contramão de determinadas tradições do documentário. Investiu num filme sem falas (“apenas” palavra cantada), que propõe à plateia uma apreciação contemplativa. Sobressai, como ressaltou o próprio diretor, a construção minuciosa de cada plano. A presença da câmera é realçada num filme que registra flagrantes do cotidiano e da tradição das quebradeiras de coco de babaçu do Bico do Papagaio, ponto de encontro entre os estados do Maranhão, Tocantins e Pará, e valoriza a conexão entre trabalho e manifestação artística. Quebradeiras acumula méritos nos quesitos som (Miriam Biderman, Ricardo Reis e Ana Chiarini) e fotografia (Gustavo Hadba), não por acaso premiados pelo júri oficial do Festival de Brasília.



Se Evaldo Mocarzel assume completamente as suas opções, Marília Rocha revela uma estrutura discrepante em A Falta que me Faz : na primeira parte parece deixar a rédea solta e filma fragmentos de conversas (quase sempre ininteligíveis) entre as personagens (captadas em close, num corpo a corpo com a câmera), adolescentes em rito de passagem rumo à vida adulta; na segunda, busca notadamente a organização ao conduzir as meninas de acordo com uma determinada pauta, voltada para a tomada de consciência em relação à própria condição. Num certo sentido, a diretora deixa a impressão de ter recuado diante da experimentação arriscada que propõe no início, marcado por belas passagens, como a das personagens riscando suas próprias peles.



Documentário que se aproxima menos dos procedimentos da ficção, Filhos de João, Admirável Mundo Novo Baiano , de Henrique Dantas, mostra como os Novos Baianos criaram e passaram a habitar um mundo à parte, bem mais amistoso do que o Brasil da ditadura militar, na passagem da década de 60 para a de 70. Nos anos de chumbo, os integrantes do grupo celebraram a felicidade através de uma proposta de vida comunitária que sustentaram durante um bom tempo, algo que pode espantar a geração mais jovem, marcada pelo individualismo e pela reclusão do universo virtual. Despreocupados com dinheiro, representaram a plenitude do sonho hippie. Trabalharam em parceria com o cinema brasileiro experimental, praticado na época por André Luiz Oliveira ( Meteorango Kid, o Herói Intergalático ) e Álvaro Guimarães ( Caveira, my Friend ), além de alguns diretores emblemáticos, como Glauber Roche e Leon Hirszman. Mesmo com as ausências de João Gilberto e Baby do Brasil, Admirável Mundo Novo Baiano sobrevive bastante bem graças aos depoimentos de outros ex-integrantes como Galvão, Pepeu Gomes, Moraes Moreira e Gato Felix, além da participação dominante de Tom Zé, e às imagens de arquivo, muitas referentes à convivência de todos numa casa de Jacarepaguá. Não faltam boas histórias sobre uma espécie de família substituta unida pela cumplicidade na criação e pela paixão pelo futebol.





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