Especiais


64º FESTIVAL DE CANNES

18.05.2011
Por Ricardo Cota
RICARDO COTA ESCREVE DE CANNES PARA O CRITICOS.COM.BR

THE BEAVER: Jodie Foster tenta limpar a barra de Gibson e suja a própria

Ricardo Cota, 20/05/2011



Que Jodie Foster tem todos os méritos para exibir um filme hors concours em Cannes ninguém duvida. Atriz precoce, Foster construiu sua carreira com papéis antológicos que vão da prostituta infantil de Taxi Driver, de Martin Scorsese (Palma de Ouro em Cannes, 1976), à investigadora determinada de O Silêncio dos Inocentes, de Johnathan Demme, que lhe valeu o Oscar de melhor atriz em 1992. Portanto, tapis rouge para ela como diretora. Mas precisava ser com The Beaver?



Em português, The Beaver (cuja tradução literal é “O Castor”) terá o comercialmente apelativo título de Um Novo Despertar; em francês, será o intelectualmente não menos apelativo Le Complexe du Castor. Mais um exemplo de como as traduções podem falar por si da cultura de cada país.



O filme parece ter sido feito sob encomenda para livrar a barra do controverso Mel Gibson, recentemente envolvido em casos de agressão doméstica, alcoolismo e anti-semitismo, um currículo que faz de Von Trier um deliquente juvenil. Walter Black, seu personagem, é o herdeiro de uma bem-sucedida fábrica de brinquedos , casado com a atenciosa Meredith (Jodie Foster) e pai de dois filhos. Apesar do aparente sucesso, Walter enfrenta uma depressão profunda que o levará inclusive a tentativas suicidas.



Sua salvação, e aí vem a parte incrível da história , vem através de um boneco castor de pano, que, a pretexto terapêutico, lhe servirá de marionete para expressar seu self atormentado. Isso quer dizer que Mel Gibson passa grande parte do filme contracenando com o boneco de pano, lutando para retomar os negócios, voltar a ser bom marido e ótimo pai. É dura a vida do crítico.



Jodi Foster bem que se esforça para dar alguma dignidade ao filme, impondo alguma credibilidade humana a essa história improvável. Mel Gibson, por sua vez, agarra a chance de fugir ao ridículo com todas as forças. Tem a dura tarefa de dividir a indicação ao Oscar com um boneco de pano. Não é fácil, até porque em muitos momentos o destaque é o boneco.



O resultado é um filme insípido, com passagem garantida para a tevê, e provavelmente exibido hors concours por razões que obedecem mais aos princípios do mercado do que aos da estética. Pelo humor involuntário, é candidatíssimo ao “Framboesa de Ouro” de pior filme do ano. E Jodie Foster leva a palmada de ouro.

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MELANCOLIA: O APOCALIPSE DE LARS VON TRIER

Ricardo Cota, 19/05/2011



O fim está próximo, anuncia o arauto do apocalipse Lars Von Trier em Melancolia, filme exibido em competição no 64º Festival de Cannes. E para anunciá-lo o diretor não dispensou fanfarras. Embalado por Wagner na trilha, evocou fenômenos planetários e toda a sorte de crise para nos fazer pensar se viver vale a pena ou se é melhor que exploda tudo de uma vez.



Melancolia reza na cartilha formal de Trier, com um prólogo, duas partes e um epílogo bem desenhados. O prólogo e o epílogo são absolutamente geniais. Toda a sequência inicial, que como numa sinfonia apresenta os diversos temas a seguir, poderia ser destinada a um museu de arte moderna como exemplo de arte visual. Imaginei como essas imagens renderiam se filmadas em 3D. O epílogo, por sua vez, impacta de forma tão aterradora que foi capaz de sufocar os aplausos da sempre hospitaleira sessão de gala de Cannes.



Se o prólogo e o epílogo são tão bons, por que Melancolia não é a grande obra-prima do Festival? Justamente pelo miolo, que é mais do mesmo do velho Von Trier. As duas partes são dedicadas às irmãs Justine e Claire, representadas respectivamente por Kirstin Dust e Charlotte Gainsbourg, ambas maravilhosas (aliás como as mulheres deram um banho nesse Festival).



Justine, por assim dizer, está para a fase dogma de Lars Von Trier. Sua crise depressiva durante a cerimônia de casamento é filmada à moda que notabilizou o dinamarquês:

câmera hesitante, iluminação insuficiente, distância, cortes bruscos. Difícil não lembrar do Festa de Família, de Thomas Vintenberg.



Enquanto Justine afunda na depressão e na melancolia, Claire alimenta-se de esperança. É a mulher padrão, que não foge às convenções e não teme os compromissos de mãe e esposa. Mas nem o esteio de força da família consegue fugir à paranóia do fim do mundo. Antares se aproxima da terra. Por quê? Pouco importa. O que importa é que o fim está próximo e, deprimido ou não, ninguém escapa.



A começar pelo próprio Von Trier. Na manhã da sessão de gala, em entrevista aos jornalistas, o diretor assinou a sua sentença de morte em Cannes ao declarar ser simpático a Hitler e criticar Israel. Instalou a crise. Na manhã seguinte, Charlotte Gainsbourg, filha de pai judeu russo, pegou o avião e se mandou da Croisette. Gilles Jacob, diretor do Festival, um dos inspiradores da história de Adeus, Meninos, filmada por Louis Malle, exigiu retratação, no que foi prontamente atendido. Lars Von Trier chegou à sessão de gala constrangido, sem a azáfama de grande estrela que conquistou nessa mesma Cannes. A continuar assim, o único fim que está realmente próximo é o seu.

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LA PIEL QUE HABITO: ALMODÓVAR DESFIA NOVELO DE SURPRESAS

Ricardo Cota, 19/05/2011



Cuidado ao ler as críticas do novo filme de Pedro Almodóvar, La Piel que Habito, em competição no 64º Festival de Cannes. Elas podem estragar, não apenas as surpresas da trama rocambolesca, mas, acima de tudo, prejudicar a mais perversa narrativa do iconoclasta espanhol. Esta crítica, com certeza, não o fará. Por isso, avante leitor.



As questões propostas pelo diretor de Ata-me partem de uma pergunta básica: afinal, o que define uma identidade? A pele? O sexo? O olhar? Bem, no caso de Almodóvar o que o define é o próprio cinema. E todas essas perguntas são descortinadas sem pressa, com muita ironia e milhares de leituras transversas.



O ponto de partida é a história de Roberto (Antonio Banderas, convincente), um cirurgião traumatizado pelo acidente que carbonizou 70% do corpo da esposa. Sua ética desconhece limites e não o impede de manter refém uma jovem (Elena Anaya, divina) no quarto ao lado de sua mansão. A jovem serve de cobaia para suas experiências. Daí em diante, só vendo para crer.



Almodóvar consegue não se repetir, mesmo sendo o Almodóvar de sempre. Inicia o filme com rigor quase científico, descrevendo o cotidiano do compenetrado Roberto, para aos poucos desaguar em mais uma reciclagem do dramalhão latino, com revelações bombásticas, suicídios, loucura, traições, sexo e muita paixão. A novidade são as referências eruditas, neste caso basicamente as pictóricas, que engrandecem a obra sem infectá-la com afetação. O controle do tempo narrativo é absoluto e as legendas que determinam o contexto da ação nos lembram reiteradamente que estamos capturados pela teia da trama. Um filme de Almodóvar, vale o registro, pode ser tudo menos entediante.



E assim o é La Piel que Habito, comédia negra que escova as franjas da individualidade. Afinal, é a nossa pele que nos define? Almodóvar, narrador soberbo, guarda a resposta a sete chaves.

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PATER: ALAIN CAVALIER FAZ BOUTADE COM CRÍTICA POLÍTICA

Ricardo Cota, 18/05/2011



No Brasil, Pater, presente na mostra competitiva do 64º Festival de Cannes, seria classificado como um “BO” (filme de baixo orçamento). Alain Cavalier, que não vinha à Croisette desde 1986, quando seu Thérèse ganhou o prêmio do júri, precisou de muito pouco para fazer uma crítica arguta e oportuna à crise de representação política na França.



O próprio Cavalier divide praticamente o tempo todo a tela com o ator Vincent Lindon. Os dois, que possuem uma relação quase de pai e filho, divertem-se praticando o esporte favorito de nove entre dez franceses: falar. Assumidamente “bavard”, Pater faz da palavra o instrumento essencial de crítica e seduz pela ação libertária entre diretor e ator.



Cavalier encarna um fictício Presidente cujo ideal é reduzir a diferença entre o maior salário e o salário-mínimo na França. Vincent é o seu Primeiro-Ministro. Os dois se divertem fazendo as vezes de homens de poder e debochando, sem citar nomes, da conjuntura política francesa. O diretor se expõe mais, seja verbalizando suas críticas sociais ou através de análises absolutamente pessoais, como ao comentar uma papada hereditária que lhe irrita de forma particular e que será retirada cirurgicamente no decorrer do filme. Aqui, ao rir de sua vaidade, Cavalier ironiza também os vaidosos homens de poder, reféns da imagem, sempre em conflito com o envelhecimento.



Entre digressões sobre política, gastronomia, paternidade e linguagem cinematográfica, Pater vai seduzindo o espectador como numa boa conversa, repleta de charme e humor. O narcisismo confesso de Cavalier não chega a ser incômodo graças à sua jovial capacidade de rir de si mesmo. Nada melhor do que um sopro autoral vindo de um veterano. Merecia uma Palma de livre pensar.



PS: Curioso notar que o mesmo Festival de Cannes exibiu, hors concours, La Conquête, de Xavier Durringer, que mostra os bastidores da campanha de Sarkozy a Presidente da República. Embora se diga ficcional, o filme dá nome a todos os bois da boiada. É uma produção mainstream, direta, de combate, que denuncia, sem empolgar, o arrivismo do atual Presidente, suas artimanhas eleitorais e a crise conjugal com sua ex-mulher. Tudo com os requintes de um grande filme, daqueles que se levam a sério demais. Pater, com sua nonchalance e sua inteligência natural, mesmo sem dar nomes, mesmo sem combate direto, é muito mais funcional. Um filme alternativo avant la lettre.

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L’APOLLONIDE (SOUVENIRS DE LA MAISON CLOSE) - ENTRE OS MUROS DO PROSTÍBULO

Ricardo Cota, 17/05/2011



Num Festival marcado por estrelas com lugar garantido no firmamento de Cannes, quem se candidata a azarão? Para enfrentar os irmãos Dardenne, Almodovar, Mallick, Cavalier e Lars Von Trier, Bertrand Bonello provocou polêmica com o audacioso para uns, pretensioso para outros, L’Apollonide (Souvenirs de La Maison close).



Ainda no tapete vermelho, na sessão de gala, o elenco, formado basicamente por belas mulheres, apresentou as armas e mostrou que a sessão teria um toque especial. Na tradicional pose para os paparazzi, as atrizes não pouparam bitocas que anteciparam o clima de libertinagem do longa.



L’Apollonide é um esforço de mise-en-scène que muitas vezes esgota-se em si mesmo. Bonello narra com inquestionável classe histórias pulverizadas de prostitutas que trabalham no “Apollonide”, uma casa de tolerância da virada do século XX. Elas são testemunhas e cúmplices de um verdadeiro arsenal de fetiches , confissões e violência da clientela masculina. Tudo regado a champanhe e perfumado a ópio. Pura decadência em ambiente claustrofóbico.



Bonello (diretor de O Pornógrafo) alterna momentos sublimes com outros em que a mão do diretor nitidamente pesa, sobretudo quando força paralelos entre o contexto do filme e os dias atuais. Músico de formação, o cineasta usa a trilha sonora para ratificar suas intenções, apelando para canções pop que fazem um baita ruído no bordel belle époque. A estranheza remete ao filme Maria Antonieta de Sofia Coppola.



Pode-se questionar a obviedade de alguns recursos utilizados por Bonello, como a já citada música, o split screen (divisão da tela em partes para exibir sequências diferentes) e algumas legendas de passagem absolutamente desnecessárias, como ‘Março de 1900-A Alvorada de um Novo Século’. Mas sua direção de atores e composição de ambientes são irretocáveis. Mereceria uma Palma especial pelo conjunto de atuação das atrizes. Quanto à Palma, é muito azarão.

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BLUE BIRD: FILME BELGA SEGUE PASSOS DO CINEMA IRANIANO

Ricardo Cota, 16/05/2011



Uma das atrações da Quinzena dos Realizadores, turbinada por forte campanha publicitária na Croisette, Blue Bird, do cineasta belga Gus Van den Berghe, enquadra-se perfeitamente na trilha da prosa poética do Abbas Kiarostami de Onde é a Casa do Amigo? ou do Jafar Panahi de O Balão Branco. Panahi, por sinal, é o grande homenageado da Quinzena. Em todas as sessões no Théatre de la Croisette, uma cadeira vazia marca o protesto dos organizadores contra a ditadura iraniana, que mantém Panahi preso, proibido de sair do país e até mesmo de filmar. Não é o caso de Gus Van den Berghe, que foi à África buscar inspiração para o seu filme.



Gus não é estreante na Quinzena, ano passado apresentou Little Baby Jesus of Flandr, uma inusitada releitura da história dos três reis magos, filmada em preto e branco, que dividiu opiniões. Em relação a Jesus of Flandr, Blue Bird representa uma guinada radical para um cinema mais realista, de fundamentos quase antropológicos.



Numa remota aldeia africana, a câmera acompanha o dia de um casal de crianças desde o momento em que saem de casa até o final do dia, quando retornam para os braços da mãe. A narrativa, apesar da curta duração do filme (aproximadamente 90 minutos) é propositadamente lenta, reproduzindo o próprio ritmo de vida dos moradores locais. Enquanto saem à caça de um misterioso pássaro azul, as duas crianças dividem com o espectador o olhar sobre os anciãos, as castas, o tráfico de menores e a morte na comunidade.



Gus expressa-se também através da fotografia. Se em Little Baby... o preto e branco emprestava ares expressionistas ao filme, aqui, numa experiência mais radical, o uso do filtro proporciona uma fotografia inteiramente azulada, do início ao fim, como se o diretor quisesse contrapor ao duro realismo da trama uma poética imaginária da luz. Blue Bird é algo irregular, sobretudo no tempo da montagem, mas não deixa de ser hipnótico na condução de um dia na vida dos esquecidos.

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CANNES ENFIM SE CURVA À BOLLYWOOD

Ricardo Cota, 15/05/2011



Foi uma noite incomum. Na madrugada de domingo, o tapete vermelho que leva à suntuosa Salle Lumière se fez passarela para um desfile sensual de sáris e batas indianos. Produtores, diretores, atores e atrizes da meca do mainstream da Índia quebraram o protocolo do black-tie com pouca roupa, muita cor e muita dança. Mesmo o compenetrado delegado do festival, Thierry Frémaux, apresentador oficial de todas as sessões de gala, não resistiu ao charme e à malemolência da tropa indiana e anunciou: “Senhoras e senhores, esta é uma sessão diferente. Podem bater palma, cantar e dançar, se quiserem”.



Bollywood: The Gratest Love Story Ever entrega já no título sua falta de modéstia e assumida megalomania. Trata-se de um filme hipérbole, inclassificável como documentário. No fundo, é uma grande fita promocional da fórmula genérica que consagrou a indústria de números estratosféricos no histórico do mercado cinematográfico internacional.



O filme é uma mega colcha de retalhos que costura sequências de vários momentos da história do cinema indiano nas últimas 70 décadas, desde os primeiros longas estrelados pelo mitológico Raj Kapoor nos anos 40. A receita permanece irretocável. Há que se ter um pouco de tudo, como define a atriz Aishwarya Rai, uma das mais belas do mundo (confira no Google). E tudo é comédia, romance, ação, drama e muita, muita música. O ator e diretor Shami Kapoor chega a afirmar ser impossível imaginar um filme de Bollywood sem pelo menos oito números musicais. As referências estrangeiras, sobretudo de Hollywood, são evidentes, mas não há como negar uma vitalidade, um vigor e uma riqueza de sons e cores que só se encontra ali.



Mesmo sem qualquer caráter didático, The Greatest Love Story Ever told esbarra em alguns momentos no registro documental. As entrevistas, mesmo que curtas, tentam de alguma forma nortear o espectador, pelo menos quanto às principais características do gênero. Entre um e outro número musical deslumbrante, o espectador, hipnotizado, acompanha depoimentos de populares em que não há meio-termo: ou ignoram ou idolatram Bollywood.



A idolatria por sinal rende a melhor cena do filme, quando um ambulante, vendedor de pôsteres, mostra para a câmera que não há diferença iconográfica entre os símbolos religiosos e os cartazes-exaltação das estrelas. Também é impressionante a romaria semanal de fãs à casa de Amitabh Bachchan, veterano e popular astro indiano, que religiosamente distribui seiscentos autógrafos semanais. Ainda que seja um samba do saibi doido, Bollywood: The Greatest Love Story Ever Told é um cartão de visitas de um cinema que se assume como igreja e continua encantando a sua seita fiel. Hare baba!

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PRECISAMOS FALAR DE KEVIN (e analisar sua mãe?)

Ricardo Cota, 13/05/2011



Inspirado no best seller homônimo da escritora americana Lionel Shriver, We Need To Talk About Kevin, presente na mostra competitiva do 64º Festival de Cannes, aborda um tema de incômoda contemporaneidade: o massacre de adolescentes em escolas americanas. É uma espécie de day after de Elefante, filme de Gus Van Sant, Palma de Ouro de 2003, que versa sobre o massacre de estudantes em Columbine.



Aqui, o centro da trama não são as ações dos jovens criminosos pré e durante atentado. We Need to Talk About Kevin foca na ambivalente relação entre Eva (Tilda Swinton, soberba) e Kevin (Ezra Miller, mascaradinho), seu filho psicótico responsável por um terrível massacre escolar. O filme carrega nas tintas rubras desde a impressionante sequência inicial, um espetacular plongée de uma festa do tomate em algum lugar da Espanha. O fantasma "rojo" perseguirá Eva ao longo do filme, seja no dia-a-dia ou até em seu sonhos, verdadeiros espasmos da mancha de vergonha deixada pela ação filial. Aliás, o vermelho é onipresente na fotografia, desde as cenas iniciais.



O olhar sobre a família certamente fará do filme da britânica Lynne Ramsay um ótimo objeto de discussão em núcleos de psicanálise. A perturbada relação entre mãe e filho se inicia já na gestação, passagem em que Eva não esconde seu desconforto com a gravidez. Perpetua-se nos primeiros anos de infância, quando se estabelece uma troca física de agressões, e perde o freio após o nascimento de uma segunda filha. Tudo sob a mirada abonadora do pai (John C Reilly, subaproveitado).



Apesar do título, We Need to Talk About Kevin, é um filme feito de pouquíssimos diálogos. Seu grande mérito advém da excelente montagem de Joe Bini, o mesmo de Vício Frenético, de Werner Herzog. A narrativa entrecortada cria a atmosfera entre sonho, realidade e pesadelo que reforça o estado de estupor de Eva. Mais uma vez, o onipresente Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead responsável pelas trilhas de Sangue Negro, Harry Potter e o Cálice de Fogo, Norwegian Wood e Crepúsculo, escolhe a dedo as canções que pavimentam o abismo de Eva. A longa noite de luto dessa mãe escrava da culpa pelos atos do filho acerta o espectador como uma flecha. Podemos nos revoltar diante de sua passividade, considerá-la culpada ou absolvê-la. Resta analisar. Psicanalistas, afinem o verbo!



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MEIA-NOITE EM PARIS RESUME O MELHOR DE WOODY ALLEN

Ricardo Cota, 12/05/2011



Não tem mistério. Meia-Noite em Paris, o recente Woody Allen que abriu o 64º Festival de Cannes, é um filme autorreferencial. E por isso é bom, muito bom. Imaginem uma criativa mistura de Manhattan com A Rosa Púrpura do Cairo, um banho de sofisticação do hotel Le Bristol com um toque do mais legítimo bas-fond do Quartier Latin . Resultado? Meia-noite em Paris.



Como em Manhattan, Allen abre o filme com um prólogo de arrepiar. São imagens de recantos de Paris, sob o sol, sob a chuva, embaladas pela dolente Si tu vois ma mère , de Sidney Bechet. Uma sequência que já tem seu lugar na história do cinema. “Paris é uma Nova Iorque mais bela”, disse em entrevista ao Le Figaro. Talvez por isso tenha escolhido Darius Khondji, o mesmo de A Praia, para fotografar a cidade num reluzente colorido, ao contrário do preto e branco de Manhattan.



A trama pode ser resumida como um conto de fadas para intelectuais, uma assumida farsa. Às vésperas de seu casamento, Gil (Owen Wilson à la Allen) viaja com a noiva Inez (Rachel McAdams, nova deusa na lista do diretor) e os prováveis sogros para Paris. Gil é um roteirista bem-sucedido mas insatisfeito com sua produção lowbrow. Seu sonho é escrever um livro de sucesso . Viaja em busca de inspiração.



Os planos começam a naufragar quando ele a noiva encontram um casal de amigos americanos: Paul (Michael Sheen), um intelectual francófilo afetadíssimo, e a mulher. Paul seduz Inez com seus conhecimentos sobre arte, literatura e enologia. Gil acaba solitário na noite parisiense. Como em qualquer conto de fadas, as badaladas da meia-noite transformam o real em magia. E, sem maiores explicações, Gil é transportado para os anos 20, cercado de gente como Zelda e Scott Fitzgerald, Cole Porter, Ernest Hemingway e Picasso.



O inusitado encontro rende anedotas típicas de Woody Allen, como o momento em que Gil sugere a ideia de um filme, O Anjo Exterminador, a ninguém menos que Luís Buñuel. O elenco compra a brincadeira e torna tudo mais fácil com caracterizações impagáveis, como o Salvador Dalí de Adrien Brody ou a Gertrude Stein de Kathy Bates. A nota destoante é uma apagada Carla Bruni, no papel de guia do Museu Rodin.



Woody Allen traça caricaturas sem deixar que o filme seja apenas caricatural. Há alfinetadas no conservadorismo americano, concentradas nos diálogos entre Gil e o sogro, críticas ao exibicionismo intelectual e mais uma digressão, à feição do autor, sobre a nostalgia e as interseções entre o tempo passado, presente e futuro. Tudo com humor refinado e muito romance. Só Woody Allen poderia manusear clichês da intelectualidade parisiense sem ser destroçado pela crítica francesa. Ele pode.



A paixão do cineasta por Paris é antiga. Em 1964, Allen hospedou-se durante oito meses no suntuoso George V para escrever aquele que ele mesmo considera um dos seus piores roteiros: “What´s New Pussycat?”. O fracasso no trabalho não impediu que nascesse ali uma relação de afeto com a cidade que só aumentaria com a acolhida obtida por seus filmes ao longo da carreira.



Em Meia-Noite em Paris, Allen encontrou uma forma de retribuir esse amor prestando uma homenagem à Paris de hoje e de sempre. Garantiu assento perpétuo, e merecido, no coração dos franceses. E dos francófilos, bien sûr !

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ANTES DE CANNES, RICARDO COTA VIU ALGUNS FILMES NA CAPITAL FRANCESA



MIRADAS INVISÍVEIS

10/05/2011



Dois filmes latino-americanos em cartaz em Paris propõem reflexões bem semelhantes sobre as ditaduras em seus respectivos países. Santiago, 1973: Post Mortem de Pablo Larraín, em competição no último Festival de Veneza, se passa nos dias que cercam o golpe militar que derrubou Salvador Allende, no Chile. Apesar da evidência política já enunciada no título (francês; o original é apenas Post Mortem), não se deve esperar um declarado manifesto contra a opressão.



Santiago se insurge nas reentrâncias de uma história que se apresenta em ritmo propositadamente lento, como uma marcha fúnebre. Mario é um funcionário de um necrotério de vida monástica que é atraído de forma obsessiva pela vizinha, uma dançarina de cabaré. À medida que se aproxima do seu objeto de desejo, Mario, um alienado, vê os fatos políticos baterem à sua porta. A dançarina é irmã de um militante e o movimento no necrotério aumenta de forma progressiva, sobretudo depois da chegada de um cadáver muito especial: o de Salvador Allende.



Expoente do novo cinema chileno, Pablo Lorraín continua aqui sua revisão da década de 70, já vista em Tony Manero, seu filme de estréia cujo roteiro segue os passos de um serial killer obcecado por John Travolta. Em Santiago, 1973, um filme mais maduro, o cineasta refina sua narrativa. O tom mórbido, sombrio, é obtido a partir de uma fotografia cinzenta e de uma exploração dos tempos literalmente mortos da narrativa, o que não significa monotonia. Há muitas sequências fortes, dignas de registro, como a da revolta no necrotério diante do acúmulo de cadáveres e a corajosa sequência final, em que a loucura se confunde com o desejo quixotesco de conter a história.



La Mirada Invisible (*), que estreia esta semana, é mais uma dessas preciosidades do cinema argentino. Dirigido por Diego Lerman, novo talento, o filme se passa também numa data simbólica, março de 1982, quando o coturno da ditadura argentina começa a deixar de marcar terreno depois da vergonhosa derrota nas Malvinas. Assim como o Mario do filme chileno, Maria Teresa vive uma realidade à parte. Entre os muros de uma escola, exerce sua função de inspetora, reprimindo moral e sexualmente os alunos.



Versão sexualizada do personagem imortalizado por Norma Aleandro em A História Oficial, Maria Teresa fará sua iniciação política conhecendo outro tipo de violência, a violência sexual da qual ela é agente e vítima. Assim como o Mario de Santiago, 1973, Maria Teresa é um personagem que pretende viver alheio, mas que se vê obrigado a atender as batidas à porta da história.



As miradas invisíveis de ambos os filmes prosseguem uma leitura que tem sido comum no cinema latino-americano dos anos de chumbo e que no Brasil produziu ecos em O Ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer. São filmes que revêem a história, não numa perspectiva de massa, de movimento conjunto, mas a partir de histórias de individualidades. Em ambos os casos, a maior protagonista é a história e a maior vítima o homem.



(*) Fez parte da mostra “Foco Argentina” no Festival do Rio 2010 depois de exibido em Cannes no mesmo ano.

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TRAN ANH HUNG NO PANTEÃO DOS GRANDES

08/05/2011



Wong Kar Wai não está só. Ainda bem. Com Norvegian Wood, traduzido para o francês como La Ballade de L’Impossible (sim, os tradutores franceses também inventam), Tran Anh Hung entra na categoria de mestre do melodrama contemporâneo. O filme estreou esta semana em Paris como favorito da crítica. E faz por merecê-lo.



Sem abandonar a platitude e o refinamento estético de suas produções anteriores, a trilogia O Cheiro do Papaia Verde, Entre a Inocência e o Crime e As Luzes de um Verão - Tran Ahn Hung, munido de um roteiro poderoso, inspirado em romance Huraki Murakami, materializa uma história de amor pós-adolescente de complexa geometria e rara expressão poética.



O contexto de Norwegian Wood reforça suas intenções. Em meio à efervescência política da Tóquio do final dos anos 60, Watanabe, um jovem solitário, alheio à turbulência política, vive experiências definitvas para consumar seu rito de passagem à vida adulta. O triângulo inicial mostra Watanabe como testemunha do amor platônico entre Naoko e Kizuki, um jovem que se suicida inexplicavelmente nos dez minutos iniciais. A tragédia afasta temporariamente Watanabe e Naoko, que ao se reencontrarem iniciam um romance marcado pela sombra da perda de Kizuki.



O cineasta Tran Ahn Hung segue essa história marcada pela loucura, frigidez, insegurança sexual e sobretudo pelo espectro da morte sem economizar na utilização dos recursos técnicos que o consagram como um dos grandes estetas da contemporaneidade. O prazer de filmar está presente a cada plano, a cada travelling, a cada close. Tran Ahn Hung é um mestre da contemplação e abusa, sem agredir o espectador, do contraponto entre o drama dos personagens e as mutações climáticas e naturais do tempo dramático.



Como em seus outros filmes, Norwegian Wood é um esforço coletivo. Ao naturalismo dos excelentes atores, somam-se uma impecável trilha sonora, sob o comando de Jonny Greenwood, e a fotografia de Mark Lee Ping-Bin . Na trilha original, Greenwood, o mesmo de Sangue Negro, mescla solos delicados de guitarra com inflexões melodramáticas de violinos, além de citar clássicos do pop, entre eles a evidente “Norwegian Wood”, dos Beatles, que dá título ao filme.



Quanto à fotografia, basta lembrar que Lee Ping-Bin é o diretor de fotografia de Amor à Flor da Pele, do supracitado Wong Kar Wai. É ele quem dá ao filme a coloração poética que traduz os diversos estados de espírito do protagonista e de seus pares. Depois de uma passagem mal-sucedida por Hollywood, onde realizou o aculturado Fugindo do Inferno, Tran Anh Hung retorna ao cinema autoral e se afirma no panteão dos grandes com esta balada de amor e dor.

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