A cineasta japonesa Naomi Kawase chega para a entrevista e transparece a mesma calma e tranquilidade de seus filmes nos pequenos gestos e na forma comedida de falar. A eloquência passa longe tanto do seu modo de ser quanto de sua obra. Aos poucos, como a água que se move em fluxo contínuo em um rio, as suas palavras tomam sentido e criam uma ligação intrínseca com sua filmografia: observar tudo ao redor, ser fiel a si mesma e transmitir somente a verdade através da arte. A retrospectiva completa de seu trabalho no Centro Cultural Banco do Brasil, nas sedes de Rio de Janeiro e Brasília, é uma justa homenagem que as curadoras Carla Maia e Patricia Mourão prestam a uma diretora decisiva do cinema contemporâneo que, infelizmente, é pouco conhecida no Brasil, apesar de tantos prêmios. Nesta entrevista exclusiva, Kawase fala sobre o seu método de trabalho e aponta que a natureza e a família formataram o seu olhar cinematográfico, muito mais do que ver milhares de filmes.
Criticos.com.br - Até os 18 anos, você ainda não havia estabelecido uma relação com o cinema. Como ele entra na sua vida?
Naomi Kawase: Eu queria um emprego para a vida toda. Jogava basquete na escola e isso exigia muito de mim. Pensei que não aguentaria aquilo por muito tempo. Então, imaginei uma carreira que pudesse produzir sem ter limitações com relação ao preparo físico. Tinha colocado na cabeça que criaria coisas e, dessa forma, se inicia a ideia de me tornar realizadora. Claro que não tinha nenhuma ideia sobre direção de cinema, então parti para trabalhar na televisão e filmar o meu cotidiano.
Em seus primeiros filmes de 8mm, você busca descrever o universo ao seu redor. Por que essa opção?
A família me dá a ideia de elos humanos. Durante os meus estudos, um professor me deu um conselho para filmar aquilo que me era mais próximo e desenvolver um olhar sobre isso. E foi exatamente o que fiz ao filmar com minha super 8 as ruas onde morava em Nara, seus habitantes e, sobretudo, a minha família. A câmera cinematográfica funciona como a melhor ferramenta para o registro da realidade, como uma máquina do tempo.
O ato de filmar com uma câmera na mão pode ser solitário para a maioria dos diretores. Mas os seus documentários refletem o contrário: um modo de se aproximar de familiares e pessoas. Há uma sensação constante de que ao filmar você aplaca a solidão e a ausência, e realmente se sente conectada aos seres humanos. Fale um pouco sobre essa relação entre câmera-personagem.
Todos os artistas têm esse tipo de tristeza, esse tipo de dor, dentro de si. Pegar as coisas que tem no mundo e confrontar com as obras é algo maravilhoso. Sem a câmera não há como saber a história das pessoas: onde elas nasceram, como viveram. Mas através da câmera eu pude filmar e visualizar isso, que é algo muito importante para o meu trabalho. A câmera é a minha ferramenta de conexão com os indivíduos.
Em Floresta dos Lamentos (Mogari no Mori), assim como em seus outros longas ficcionais, a sensação que se tem é de que leva o documentário ou registro de memórias para a ficção, como se os atores tivessem contato com o material naquele instante. Como funciona a sua metodologia de trabalho em um set de filmagem?
Eu faço com que os atores cheguem no lugar da filmagem com pelo menos 1 mês de antecedência. Eles passam a viver naquele lugar como os outros moradores: comem, bebem e se divertem com as pessoas ao redor para parecem mesmo que são daquele lugar quando eu ligar a câmera. O roteiro muda conforme a filmagem: estou aberta a improvisos e sugestões por parte dos atores. Mas levo sempre para o set um roteiro finalizado de cada filme. Eu fico convivendo também com os atores e não dou ordens exatas a eles sobre suas ações em cena. Prefiro sempre capturar o cotidiano dos personagens muito mais do que demarcar posições cênicas sobre o que fazer ou onde ficar em uma cena. O meu cinema busca o real, mesmo com os não-atores busco filmar o que é vivo, verdadeiro. Eu coloco a câmera no set sempre de um modo que os atores não fiquem intimidados com a sua presença. Se você coloca a câmera na frente de alguém, ele se assusta e não rende o esperado. Já ao colocá-la em um ponto específico com o passar do tempo aquilo se torna natural. E é isso que me interessa.
A relação dos personagens com o espaço também é marcante em sua filmografia, como o fato de filmar de forma recorrente em Nara. Qual é a importância da ambientação para seu cinema?
A minha primeira preocupação está sempre ligada em filmar o real. E para a imagem ser real, eu tento estabelecer uma relação verdadeira dos atores com os lugares. Na verdade, é algo bem simples mesmo: não vou trazer a relação dos japoneses para o Brasil porque vai soar falso. Parto sempre de uma imagem para iniciar a feitura dos meus roteiros: é algo que vem a mim e me serve de inspiração. Então, coloco os personagens naquele lugar e passo a trabalhar desse ponto em diante.
O que representa para você a sala de montagem?
É a parte mais importante para a existência de um filme. Posso comparar com comida, já que mesmo que você tenha ingredientes ótimos, se não souber preparar não vai fazer um prato saboroso. Da mesma forma são os filmes, ainda que consiga material bom ao filmar não se terá uma boa história se não souber editá-la de maneira apropriada. Quando editei Hotaru pela primeira vez fiz da maneira que imaginava naquela época, no ano 2000, tentando me aproximar ao máximo da realidade e acabou ficando muito longo. Mas depois refleti e vi que a edição poderia ser feita de outro modo. Daí partiu a minha vontade de reeditá-lo e lançá-lo novamente com cerca de 40 minutos a menos que a versão original. Aprendi bastante sobre montagem com o editor francês Tina Baz, que trabalhou comigo em Floresta dos Lamentos.
Dois de seus roteiros, Suzaku e Hotaru, se transformaram também em romances. O que lhe moveu a escrevê-los?
Os roteiros são completamente diferentes dos romances. Estes são bem subjetivos, eles são feitos para que cada pessoa imagine algo diferente a partir de suas palavras. Ao escrever uma árvore grande em meu livro, sei que cada pessoa vai imaginá-la com um tamanho diferente. Em um filme há o concreto: eu filmo a minha árvore grande e o espectador não tem espaço para gerar outra imagem. O script é feito para ser trabalhado e acrescentado por vários tipos de staff distintos. Não é algo para o público ver ou ler, ele serve de base para a produção concreta do filme. Devo tentar alguma vez escrever um roteiro a partir de um romance meu. Ou seja, fazer o caminho contrário do que fiz até então.
Uma de suas mais representativas declarações é a de que “o cinema é uma ferramenta para capturar o momento, o agora...”. Como analisa a sua filmografia entre o início com 8 mm, a consagração com o Camera D´or em Cannes por Suzaku e a maturidade atual de uma cineasta que influencia o cinema contemporâneo?
O meu trabalho como cineasta foi trilhado a partir de um caminho muito longo em que no princípio ficava sozinha com minha câmera para tentar captar a realidade. O momento que nós vivemos agora vai se perder e está se perdendo a cada segundo que passa. Mas com o filme você pode voltar no tempo. Poderíamos, por exemplo, retornar para esse encontro de agora. Quando passei a fazer longas narrativas tive que aprender a montar porque o cinema tem a sua própria linguagem e eu precisava aprendê-la, e foi o que fiz filme após filme. A partir de Floresta dos Lamentos, eu percebi uma especificidade cinematográfica e uma necessidade de contar uma narrativa e não só lidar apenas com o real, como fazia antes.
No filme Caleidoscópio (Manguekyo), você questiona se o fotógrafo Shinya Arimoto está fazendo aquilo em que ele realmente acredita com relação ao trabalho fotográfico que sugeriu. O artista deve sempre se questionar?
Os artistas precisam fazer o trabalho para sobreviver. Mas isso também implica em se manterem fiéis a suas concepções artísticas. Os artistas devem sempre manter vivos os questionamentos para produzirem, pois assim eles são verdadeiros consigo mesmos e com os trabalhos que produzem. Como artista, eu reconheço meus próprios erros e sei exatamente quando as coisas não funcionam da maneira que gostaria. Eu escuto bastante a opinião das pessoas que trabalham comigo, mas não me recordo de nenhum episódio em que fui questionada de maneira externa e mudei radicalmente a forma de pensar.
Apesar de diversos críticos apontarem influências em seus trabalhos, como Yasujiro Ozu (Era uma Vez em Tóquio) e Jonas Mekas (Diaries, Notes and Sketches), a proximidade, em minha opinião, está mais relacionada com realizadores contemporâneos, entre eles os irmãos Dardenne (O Filho) e Tsai Ming-liang (O Rio). À parte as referências, como se formou o seu olhar cinematográfico?
A natureza é muito importante para o homem e através dela o homem consegue muitas coisas. Ela também mostra uma faceta boa e outra má, como as catástrofes naturais. Eu sempre pautei a minha carreira querendo fazer filmes em que o homem mostre uma natureza boa dentro de si, obras que trazem uma luz para o futuro que a humanidade possa ter de alguma forma. Encontrei no último Festival de Cannes os irmãos Dardenne e eles me disseram que viram todos os meus filmes e que gostaram bastante. Já o Tsai Ming-liang, nós participamos de uma entrevista juntos e percebi que sua relação com o cinema vem desde a infância, algo muito parecido comigo. Não há nenhum filme em especial ou diretor que tenha inspirado diretamente o meu trabalho como cineasta.
Informações completas sobre a mostra O Cinema de Naomi Kawase: http://naomikawase.wordpress.com/445-2/
Catálogo da retrospectiva: http://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/catalogokawase.pdf