Enquanto o último filme de Pedro Almodóvar não vem – o elogiado La Piel que Habito, exibido no último Festival de Cannes - a Caixa Cultural brinda o público com a retrospectiva de um dos raros ‘autores’ em contínua atividade. O ex-enfant terrible do cinema espanhol pós-Franco é hoje um senhor sexagenário, com vários prêmios internacionais, capaz de conciliar um dos maiores desafios de um artista: mudar permanecendo fiel a si mesmo.
Enquanto realizadores como Steven Soderberg, Hal Hartley, Jim Jarmush, saudados como promessas autorais por volta dos anos 80, perderam a marca pelo caminho, o hoje grisalho Almodóvar trocou o kitsch exacerbado do início de carreira por um estilo mais requintado, preservando, no entanto, personagens que viram pelo avesso noções de norma e desvio. A excentricidade dos perfis humanos tinha suas razões: com o fim da ditadura, Almodóvar içou excluídos, marginalizados e reprimidos de vários departamentos para o centro das narrativas, enquanto cidadãos supostamente acima de qualquer suspeita – donas de casa beatas, juízes, policiais, psiquiatras – adquiriam a possibilidade de revelar seus inesperados lados b.
Esta galeria daria, à primeira vista, um soberbo almanaque de perversões e transgressões. Alguns exemplos: a freira cocainôma em Maus Hábitos, a dança entre gêneros sexuais de A Lei do Desejo, a mocinha apaixonada pelo seqüestrador em Ata-me, a advogada que mata seus amantes como um toureiro em Matador, a hilária legião de carentes de Mulheres à beira de um ataque de nervos, o enfermeiro que tira a paciente do estado de coma com métodos nada convencionais em Fale com Ela.
Esta mesma galeria, no entanto, poderia comportar apenas caricaturas se não fosse o talento e o crescente domínio narrativo do diretor. Com apreço declarado pelo melodrama e notável direção de atores, sobretudo mulheres, Almodóvar permite-se ainda uma arriscada mistura de gêneros. Para ele, drama, comédia e melodrama podem configurar em um todo orgânico, como processou em Fale com Ela, com direito ainda a inserções de uma animação muda e clip de Caetano Veloso interpretando Cucurucu Paloma.
Em trajetória tão longa e diversificada, com muitos altos e inevitáveis (mas poucas) decepções, pode-se fazer a pergunta: afinal, o que buscam os personagens de Almodóvar? A dica pode estar no nome da sua produtora e também da mostra: exercitar o desejo. Satisfazê-lo pode ser uma ótima idéia, mas nem sempre. E quando dá errado, pode render ótimos filmes.
A mostra em cartaz apresenta ainda o documentário Tudo Sobre o Desejo: O Apaixonante Cinema de Pedro Almodóvar,de Nick Cory Wright (2001), exposição de fotos assinadas por Antonio Banderas, filmes produzidos ou que fizeram a cabeça de um diretor no amplo exercício de sua liberdade autoral mas intransigente no princípio de não julgar seus personagens. Por mais bizarra que pareça, a fauna almodovariana merece uma profunda compaixão de seu criador que sempre rejeitou os princípios religiosos nos quais foi criado, e sabe, como poucos, rimar humor e dor. Como diria Caetano, ‘por que és o avesso do avesso do avesso”.
TEXTO PUBLICADO NO CADERNO RIO SHOW (O Globo) em 10 de junho de 2011