Especiais


FESTIVAL DE BRASÍLIA 2011

04.10.2011
Por Leonardo Luiz Ferreira
FESTIVAL DE BRASÍLIA 2011

SEXTO PROGRAMA DE CURTAS EM COMPETIÇÃO:

04/10/2011



Ciclo, de Lucas Marques Sampaio

Um curta de conclusão de curso que de um simples projeto se tornou uma obra bem acabada e de interesse. Como o próprio título revela, o filme tem estrutura cíclica e pode ser visto em formato de looping em uma videoinstalação, por exemplo. O tema abordado é do ciclo da vida com uma visão muito particular do autor. A atmosfera é criada através da trilha sonora e o traço é o mais simples possível: preto em um fundo branco. Uma animação adulta que se utiliza do formato espiral para narrar o nascimento de uma criança.



Rái Sossaith, de Thomate

Um desenho de humor negro que tem inspiração nas charges críticas de Angeli e de nomes desse subgênero dos quadrinhos. O viés é político - como o próprio diretor declarou que se inspira em políticos da vida real - em tom cômico sobre a alta sociedade e suas particularidades. O funcionamento da obra se torna orgânico e de diálogo franco com o público por intermédio de uma dublagem funcional e da impressão de um tom de deboche sem censura.



L, de Thais Fujinaga

Um curta fadado a receber prêmios e ganhar festivais, como foi o caso no Festival de Brasília. É um filme de mensagem sobre amizade e compreensão das diferenças na infância. A história narra o rito de passagem de duas crianças para a adolescência: a menina não aceita ter pés grandes e o menino tem vergonha de seu cabelo. Cinematograficamente bem simples, Thais se propõe a um filme de ligação direta e emocional com o espectador. Ela consegue atingir tal feito, mesmo que escorregue em clichês e busque de maneira equivocada o “poético” na sequência em que a menina recebe uma pedra nos pés. É um grande exagero L sair coroado com os prêmios do júri e da crítica, em especial porque o filme não será lembrado daqui a alguns poucos anos.



Um Pouco de Dois, de Danielle Araújo e Jackeline Salomão

O curta se inicia como uma propaganda de sabão em pó e tenta ser simpático ao espectador e trazer um apuro estético. A linguagem é publicitária e, aos poucos, dá lugar apenas a mudança de produto, como a margarina ou as fraldas para bebês. O procedimento cinematográfico é o mesmo que infesta a televisão: depoimentos desinteressantes para a câmera. Só que em Um Pouco de Dois o tema são as relações amorosas. E para inserir um aspecto de cinema, as diretoras apostam na encenação da vida de um casal, com uma dramaturgia constrangedora e de pobreza nos diálogos. A cada depoimento, há um corte brusco para a porção ficcional em um docudrama ineficaz em suas duas vias. Um verdadeiro piloto de programa para o Multishow.



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LONGAS EM COMPETIÇÃO: MEU PAÍS

02/10/2011



Os primeiros planos de Meu País, de André Ristum, já delineiam a proposta estética do projeto, que depois vai se revelar como um dos seus maiores problemas. A busca é pela textura da imagem com realce da granulação em cenas rápidas que focam fotografias. O viés publicitário da fotografia será responsável pelo distanciamento da narrativa ao criar uma assepsia em cada rosto dos atores, já apagados em demasia por interpretações apáticas.



O filme é o caso clássico de que uma boa equipe de produção não gera uma obra orgânica e que pulsa na tela. Tudo o que Ristum planejou no roteiro, que tem uma abordagem pessoal, não é transposto para a tela com sentimento. É como se ele tivesse estudado a fundo dramas familiares do cinema europeu e enxergasse apenas a superfície das relações humanas ali formadas. Ao banhar a sua narrativa de impessoalidade e distância, o que nesse caso não pode ser confundido com problemas de afeto, o cineasta busca passar expressividade na criação de climas por intermédio do desenho de som e trilha sonora, mas essas escolhas resultam infrutíferas à medida que a história interessa cada vez menos ao espectador.



O roteiro não consegue dimensionar os personagens e, com isso, os atores, que não desempenham bem os seus papeis, são somente modelos cênicos sem vida no centro do quadro cinematográfico. A preocupação é sempre estilística da entrada de luz, o posicionamento da câmera e do figurino e maquiagem do elenco, porém nunca parece ser questão a dramaturgia. Nenhum do trio principal de atores, que têm boa carreira cinematográfica, encontra afinidade entre si, e os diálogos parecem que não têm contraplano em cena.



Meu País tem em seu cerne uma família em fragmentos que busca se reconectar após a morte do patriarca. Ao largo da trama principal, há uma manobra no script para provocar a união: uma chantagem solta e descabida que um dos irmãos recebe por dívidas em jogo. É só mais um elemento de um roteiro esquemático que não consegue ser transformado em cinema por André Ristum.



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QUARTO PROGRAMA DE CURTAS EM COMPETIÇÃO

01/10/2011



O atraso maior ainda com relação à noite de quinta-feira provocou reações do público, que estava ansioso para conferir os filmes. Logo no primeiro discurso do curta-metragista Eloar Guazzelli, da animação Media Training, o caráter político marcou presença. O apresentador Murilo Grossi fez uma menção ao estado livre e recém-formado da Palestina e foi ovacionado. O cineasta Joel Pizzini chegou a ser vaiado por apoiar a queda da ditadura do ineditismo no festival. Mas a catarse só veio mesmo com a apresentação do diretor baiano Edgard Navarro de sua equipe de produção em O Homem que Não Dormia. Navarro dedicou uma palavra especial a cada um dos 15 membros presentes ao palco e falou pensatas sobre o festival e o Brasil. Com certeza, o melhor discurso até então no Festival de Brasília, que foi incompreendido por muitos, assim como seu belo e imperfeito segundo longa.



Media Training, de Eloar Guazzelli e Rodrigo Silveira

Uma animação propositalmente política que ainda não havia aparecido em um festival engajado como Brasília. Mas a visão dos autores não é um mero panfleto, e sim uma reflexão banhada pelo humor negro sobre a tortura perpetrada pelos Estados Unidos em Abu Ghraib. Como os realizadores mesmos declararam, o tema de tortura é universal e merece ser debatido sempre. A animação é adulta, com traços tortuosos que remetem a desenhos polêmicos, como South Park. A dublagem é toda em inglês em tom de ironia. Uma recriação perspicaz dos fatos da divulgação de fotos de tortura pela web.



Cafeka, de Natália Cristine

Uma animação em stop motion criativa que parte de uma homenagem à obra A Metamorfose, de Franz Kafka. O visual é estiloso, e o curta é ritmado pela trilha sonora. Uma experiência concisa e meramente curiosa, como a vinheta de abertura de um programa de design.



Elogio da Graça, de Joel Pizzini

Um veterano na seara da realização que tem uma filmografia dedicada a ensaios poéticos e videoinstalações. A sua experiência e maturidade é notada na tela frente aos outros competidores. Estamos diante de um retrato documental intimista e que busca fugir dos padrões convencionais para apresentar um recorte na vida de Maria da Graça, esposa do cineasta e fotógrafo Arne Suksdorff. As imagens de arquivo de seus filmes são intercaladas por depoimentos em off de Graça, com sua visão muito particular do casamento e do trabalho com o marido. É o típico documentário em que o realizador se depara com uma figura tão fascinante que seu projeto original tem que mudar inteiramente. Pizzini tem o mérito de saber ouvir e olhar respeitosa e afetivamente para sua personagem. Dessa forma, ele tange o poético de uma maneira diferente em sua obra. Tudo se desenvolve pela chave da simplicidade, que conquista até mesmo o espectador mais desavisado.







Três Vezes por Semana, de Cris Reque

Não há nenhum sentido na seleção desse curta-metragem em uma competição com tão poucos e seletos títulos como no Festival de Brasília. Se diversos outros trabalhos pecam em algumas escolhas cinematográficas, Três Vezes por Semana é um equívoco do início ao fim, que busca de maneira constrangedora o diálogo com o público. O curta conta a história de uma senhora solitária que vive de aparências e conta mentiras para suas amigas a respeito de sua vida pessoal. As interpretações estão fora do tom, em especial na declamação das falas, que mais parece uma leitura dramatizada onde os atores frisam palavras para promover demarcações. Ao largo disso, a diretora busca uma impressão estéril de estilo na sequência da piscina com som alto e câmera lenta inócua. Um olhar feminino desbotado e tão melancólico quanto sua personagem principal.



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MOSTRA PANORAMA BRASIL: MÃE E FILHA

01/10/2011



O título do segundo longa de Petrus Cariry remete a filmes do russo Aleksandr Sokurov (Arca Russa), e as ligações não ficam restritas somente a isso. O realizador cearense faz um cinema atmosférico em que o peso da câmera é necessário para desenvolver a narrativa. É uma construção rígida e notadamente artística, mas que no caso de Cariry funciona inteiramente com a proposta que busca para seu cinema.



É difícil pensar em um diretor brasileiro que tenha entre seus referenciais cinematográficos a obra de Andrey Tarkovski (Solaris) e consiga colocar isso em prática na tela, sem soar um pastiche ou ensaio pretensioso. O diretor conduz o espectador para comungar com seus personagens em uma cidade fantasma em ruínas rodeada pela natureza. Esta marca presença com seus quatro elementos (fogo, ar, terra e água) na maioria das sequências em que o espaço-tempo se desenrola de maneira particular.



A vida que emana de Mãe e Filha respeita um tempo próprio, que é reforçado pelas câmeras lentas de animais e cangaceiros. Petrus imprime imagens vagarosas e de variadas texturas para dar a sensação de pintura em movimento, que é uma terminologia que remonta aos pilares da sétima arte. A composição do quadro é tão importante para o filme quanto seu desenho de som ou os parcos diálogos entre as duas personagens. É nesse esforço de captura e registro que Cariry arranca instantes poéticos, como o raio que prenuncia a chuva em uma tomada semelhante à de Cao Guimarães em Andarilho. O personagem é inserido na paisagem e faz tão parte dela quanto as árvores ou o solo.



A estética de Mãe e Filha não é límpida como a preocupação dos planos pode sugerir, pois dessa forma o realizador se afastaria da essência dramatúrgica de solidão e angústia dos personagens em um não-lugar marcado pela atemporalidade. A iluminação é natural, muitas vezes com velas no interior da casa, e o foco trabalha o claro e escuro para banhar de luto a tela.



Os olhos de mãe e filha não se cruzam em cena, pois cada uma vê o mundo de uma forma completamente diferente. Não é o embate costumeiro entre velho e novo, mas sim a convicção do que a vida lhe reserva. As duas caminham entre mortos e vivos, e enquanto uma enxerga apenas água em uma garrafa a outra acredita na transformação em vinho. Em paralelo ao eixo principal da trama de retorno ao lar para enterrar o filho morto, Mãe e Filha se impõe de maneira forte com questões metafísicas e existenciais, em especial sobre a existência de Deus. Os signos religiosos se espalham durante a narrativa e a dúvida prevalece em imagens simbólicas, entretanto nada tão significativo quanto o “enterro” em uma igreja em decomposição com santos e anjos quebrados embalando a criança. Uma cena iconoclasta no cinema brasileiro, tão bela quanto dura, que apaga inteiramente a inserção desnecessária de uma música sinfônica e de canto gregoriano em duas passagens.



“Meu lugar é lá”, diz a filha para sua mãe. As pás continuam a girar vagarosamente, enquanto os bois passeiam em uma outra rotação. A vida segue seu rumo repleta de destroços em que não basta trazer ou dar à luz para gerar um novo sentido. Mãe e filha ficarão ali paradas num não-tempo de lugar nenhum para sempre.





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TERCEIRO PROGRAMA DE CURTAS EM COMPETIÇÃO



A noite de ontem começou bastante atrasada devido a primeira apresentação nacional do longa Hoje, de Tata Amaral, que subiu ao palco com inúmeros integrantes da equipe. O problema não foi nem o tempo de espera para o início da sessão, cerca de 45 minutos, mas a seleção fraca de curtas-metragens apresentada logo depois. Filmes tão díspares, porém abaixo da mediocridade em termos de narrativa cinematográfica. Tentarei ser breve na análise de cada um deles.



Quindins, de David Mussel e Giuliana Danza

Uma animação em stop motion baseada em um conto homônimo de Luis Fernando Veríssimo, que recebe uma homenagem em um desenho. Como os próprios diretores ressaltarem, o roteiro do curta é uma livre adaptação que busca desenvolver uma visão pessoal dos autores. E realmente a técnica empregada destoa de toda animação exibida até aqui, com bonecos de massinha, desenhos em preto e branco e movimento. Se na parte visual, Quindins pode chamar a atenção, é na questão cinematográfica que a experiência se torna pesarosa. Ainda que de curta duração (9 minutos), o filme gira em torno da onipresença de uma trilha sonora completamente equivocada que pesa cada gesto e ação narrados. Há até uma emenda com um fade de música mal feito e o retorno da mesma melodia melancólica, que só afasta o espectador de uma história confusa e mal narrada sob qualquer aspecto.



A Mala, de Fabiannie Bergh

A técnica desenvolvida é a de bonecos de papel presos por arame e o movimento se dá na captura quadro a quadro. A diretora explicou que o roteiro do filme nasceu de uma piada interna e que esperava que o público compreendesse. O que se percebe na tela é um fiapo narrativo baseado em uma gag sem graça e que soa muito mais divertida para a produção do que para quem assiste. Um verdadeiro curta que do papel a realização foi pouco desenvolvido até chegar a uma versão final de pobreza estética e nenhum interesse.



Premonição, de Pedro Abib

A busca pela estilização da obra já se inicia nos primeiros planos de um relógio e da rua com luz chapada. A tentativa é de criação de atmosfera para retratar a Bahia nos anos 50. Mas o que se vê no decorrer da projeção é de que o curta poderia ter sido rodado na Lapa carioca ou em qualquer zona portuária espalhada pelo Brasil. Não há nenhuma marca ou característica que pareça personificar a experiência com uma equipe baiana. A estética prevalece em detrimento do conteúdo, que não captura nenhuma essência de boemia, como descrita na sinopse e pretendida pelo roteiro. É um exercício de câmera e jogo de luzes muito mais do que uma narrativa de interesse. Abib busca brincar com o espectador ao criar uma tensão que a todo momento é quebrada até o desfecho imaginado. Os créditos são tão elaborados visualmente que parecem ter tomado o tempo da equipe, que se esqueceu do próprio filme.



De Lá Para Cá, de Frederico Pinto

Tendo em vista os outros três curtas, o simplório De Lá Para Cá recebe uma cotação melhor do que deveria. O diretor parte da dificuldade das relações humanas em que um casal vive em horários distintos para manter a casa. O filme é todo sem diálogos e vem desse ponto o seu maior erro: a ausência de diálogos soa como uma forçação estética que representa um vício de referências no cinema contemporâneo, tendo o malaio Tsai Ming-liang como grande expoente. Além disso, todos os tempos mortos e ações cotidianas são apressados em demasia para criar uma noção de espaço-tempo significativa. Com isso, a obra carece de peso e não dimensiona as escolhas de seus personagens. Parte-se de uma concepção que nunca encontra sentido nas imagens filmadas. A história permanece em progresso, ainda que tenha sido codificada em tempo menor. De Lá Para Cá não resulta nem em um drama humano e sensível, como sugere as cenas com a criança ou o plano final, nem em uma ficção com olhar documental.

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LONGAS EM COMPETIÇÃO: TRABALHAR CANSA

29/9/2011



O cineasta italiano Dario Argento, que ganha uma retrospectiva completa no próximo Festival do Rio, passou anos se dedicando a escrever roteiros para outros cineastas filmarem. Até que resolveu apostar em seu debut em frente às câmeras, com a ajuda na produção de seu pai, em O Pássaro das Plumas de Cristal (1970). É curioso pensar que o diretor estreou diretamente em longa-metragem sem ter sequer passado pela escola do curta. Mas isso é algo comum de acontecer. Não que esse rito de passagem seja necessário, o que se deve ter sempre em mente é a formação do olhar do realizador para com o universo que pretende abordar, e para isso não importa o formato ou bitola. No final o que interessa é o produto, a obra cinematográfica.



A dupla de realizadores Marco Dutra e Juliana Rojas tem um longo histórico de trabalhos em curta-metragem, tanto em parceria quanto individuais. O que acontece entre eles desde meados da década passada é uma perfeita sintonia, talvez só detectada também nos irmãos Pretti (Estrada para Ythaca, Os Monstros). É fato raro de uma codireção que dá tão certo que eles se transformam em apenas um. Após curtas de marcas autorais tão fortes, como Um Ramo, a chegada ao primeiro longa é um prolongamento de todo o trabalho realizado pela dupla até aqui. Trabalhar Cansa é uma verdadeira súmula da competência e maturidade de dois realizadores em constante busca do desenvolvimento de uma carreira cinematográfica consistente. E eles não poderiam ter estreado melhor com um filme que já nasce como chave do chamado “novíssimo cinema brasileiro”.



Trabalhar Cansa se inicia com um retrato aparente de felicidade no cerne de uma família de São Paulo. Os primeiros planos só evidenciam que essa imagem idealizada só existe mesmo na fotografia de cabeceira. Helena se interessa em alugar um mini-mercado, que é filmado em estado de decomposição e vendido pela corretora como uma filial de um posto de conveniência. A estética trabalha a paleta cinza e azul para introduzir uma atmosfera visual de vazio e reconstrução. Tão logo a expectativa de iniciar nova vida se estabelece, o marido recebe a notícia de que perdeu o emprego. O mercado, que teoricamente poderia unir o casal, como sugere um dos poucos instantes de alívio em uma cena de beijo no local, passa a afastá-los cada vez mais. E a narrativa desemboca em um paralelo, mas o intuito permanece intacto para discussão das relações humanas e o mercado de trabalho.



A interpretação dos atores no primeiro terço de projeção é minimalista, silenciosa e pautada por olhares e poucos diálogos. Todo o filme está estruturado em uma tensão crescente que torna críveis as ações desenroladas. É uma construção que pode parecer esquizofrênica ao olhar apressado do espectador, mas Rojas e Dutra têm total domínio da mise-en-scène e sabem exatamente onde querem chegar. Aos poucos, as ações cotidianas são atravessadas por episódios estranhos que flertam com o fantástico, como é característico na obra dos realizadores. É como se da normalidade do dia-a-dia brotasse uma estranheza, algo que o cineasta David Cronenberg (Crash – Estranhos Prazeres) desenvolveu em sua filmografia. A filiação também pode ser dada através do cinema asiático, só que tanto Apichatpong Weerasethakul (Mal dos Trópicos) quanto Tsai Ming-liang (O Sabor da Melancia) carregam as suas imagens de metáforas e alegorias.



Para a experiência de Trabalhar Cansa funcionar na tela, um grande aliado está no desenho de som, visto que não há trilha sonora a não ser a diegética. E o trabalho de Daniel Turini e Fernando Henna é soberbo nesse sentido: a construção de clima e atmosfera em uma descida ao lado oculto da personagem Helena não poderia ser melhor realçada do que aquela que o som proporciona. O espectador é envolvido na narrativa e por mais estranha que ela soe para cada um não há como não adentrar por seus meandros até o desfecho.



A serenidade dá lugar à angústia, porém o humor negro permanece ali afiado, com o timing certo para a duração de cada cena e as interpretações que esperam uma reação até eclodirem emocionalmente no desfecho em que a libertação vem através de um grito, seja ele literal ou figurativo. Trabalhar Cansa desnuda as relações do homem e a crueldade no mercado de trabalho, sem que para isso use de artifícios ou soe panfletário. E vem daí a sua beleza natural, na qual Dutra e Rojas seguem à risca a sua visão de cinema e conseguem atingir muito mais do que imaginavam.





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SEGUNDO PROGRAMA DE CURTAS EM COMPETIÇÃO



Assim como já havia acontecido na primeira noite, os 4 curtas exibidos foram divididos entre duas animações e dois documentários. Diferente da primeira seleção, os curtas apresentam certas conexões, apesar de temas e abordagens tão distintos. Os personagens são solitários e carregam entre si alguma angústia existencial. O humor se faz presente em dois deles, ainda que não proposital. E a tônica da plateia no Festival de Brasília tem sido receber bem todos os filmes exibidos, alguns com aplausos entusiasmados. Essa reação deve deixar contentes tanto curadores quanto realizadores. Mas o real sentido de um festival, além de divulgar os trabalhos, está no debate e confronto de ideias. É dessa troca que surgem parcerias e uma autorreflexão sobre o próprio ofício.



Moby Dick, de Alessandro Corrêa

Antes da exibição do filme, o diretor explicou ao público de que se tratava de uma livre adaptação do livro homônimo de Herman Melville. Uma obra que leu na infância e guardou pouca coisa na memória. Ao invés de reler o romance, Alessandro partiu para uma reinvenção da história a partir de fragmentos de lembrança. É uma medida curiosa que resulta em uma animação autoral. O curta está inteiramente baseado em sua trilha sonora, que varia do progressivo ao jazz e dá ritmo a todas as sequências. Não há diálogos e a escola a ser seguida é do cinema mudo, com foco nas expressões. A estética de Moby Dick remete ao trabalho de recorte e colagem, que extrai humor devido as suas composições inusitadas. O diretor não consegue tornar interessante toda a curta extensão (8 minutos) da narrativa, sobretudo por tentar conectar imagens e criar algumas metáforas. Mas a sua interpretação pessoal sempre prevalece e deve ser levada em consideração no resultado final.



2004, de Edgard Paiva

Um filme de conclusão de curso para a escola de Belas Artes da UFMG. E 2004 reflete exatamente isso: uma obra em formação de quem ainda engatinha e experimenta na seara de animação. O curta mescla cenas documentais com animação, e conta uma história simples de um rapaz que se apaixona por uma moça em um ônibus. Os traços são angulosos e mais uma vez a música se faz presente como guia narrativo. Interessante observar que poucas animações da nova safra nacional apostam na dublagem para contarem suas histórias. A tentativa é de aproximação entre os personagens, mas o roteiro fica mal resolvido e o que se vê na tela é apenas um esboço, um projeto que necessita de acabamento e um olhar a ser lapidado.



Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, de Rafael Urban

Apesar de ser apresentado como um trabalho documental, o curta se desenrola através de procedimentos ficcionais. E é nisso que o diretor Urban diferencia seu filme de tantos outros retratos cinematográficos que pululam todo ano em festivais. A câmera está sempre fixa e há uma preocupação grande com a composição do quadro, que remete em alguns momentos ao cinema de Chantal Akerman (Jeanne Dielman). A personagem se dirige diretamente para a câmera e reconta a sua história de amor que conquista o público pela chave do humor. O fascínio de Rafael pela personagem, a norueguesa Ragnhild Borgomanero, faz com que ela se torne coautora do processo, ainda que não creditada dessa forma. Por mais que a construção prévia exista, Ovos de Dinossauro na Sala de Estar se sobrepõe ao dispositivo para existir no tempo particular da personagem e na maneira inusitada de abordagem de seu universo.



A Casa da Vó Neyde, de Caio Cavechini

A coragem no cinema não está em registrar assuntos polêmicos ou mostrar imagens atrozes e que são normalmente censuradas e escondidas. Mas sim refletir a partir delas demonstrando um olhar maduro para com os fatos, que fuja do sensacionalismo ou da mera exposição. Devido a falta de experiência do realizador, o curta A Casa de Vó Neyde promove a discussão sobre ética no cinema. Ao decidir filmar a ida de seu tio para uma clínica de reabilitação de crack, Cavechini não sabe como agir diante dos fatos que se revelam ali à sua frente. A câmera nunca encontra a distância certa para com os personagens. Ela se mostra receosa e, com isso, o projeto revela-se um equívoco que foi concluído. Ao analisar o material posteriormente, Caio tentou dar algum sentido àquelas imagens e partiu para a muleta da narração em off para contextualizar o espectador, só que sua voz soa forçada e distanciada, e bem diferente do lado humano que imagina estar a retratar. Durante a projeção, o pensamento é único: o diretor não encontrou uma forma em um conteúdo tão problemático de ser registrado. A câmera permanece ali baixa, como em uma discussão na cozinha, e nunca olha realmente de frente os seus personagens.

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COMPETIÇÃO DE LONGAS: AS HIPER MULHERES

28/09/2011



Um projeto como As Hiper Mulheres necessita de tempo de maturação e de uma equipe envolvida realmente de corpo e alma para transformar a experiência em uma obra cinematográfica. É esse exatamente o caso dos três realizadores do filme, Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro. Porque um complementa o outro no set de filmagem em uma aldeia no Xingu, em Mato Grosso. O primeiro é um professor dedicado a estudos etnográficos e que faz vídeos com índios desde os anos 80; o segundo é um jovem diretor da cena do cinema brasileiro que foi premiado com seus curtas e traz um olhar fresco e cinematográfico ao filme; e o terceiro é um habitante do próprio local que se interessa por vídeo e consegue traduzir exatamente aquilo que seu povo pensa.



A divisão em seis mãos na realização de um filme pode muitas vezes ser um fator complicador, pois são muitos egos e interesses distintos em jogo. É raro uma experiência como As Hiper Mulheres dar certo em se tratando de codireção, mas o que se vê na tela é justamente a união harmoniosa de cada bagagem dos envolvidos, incluindo aí o produtor executivo Vincent Carelli, da ONG Vídeo nas Aldeias e do longa Corumbiara. Dessa forma, o filme não cai na armadilha do exotismo ou do documentário didático a la National Geographic para se estabelecer como uma visão de dentro de uma comunidade indígena. Se não realizam um ensaio poético como Joel Pizzini em 500 Almas (2004), os diretores aproximam o espectador da convivência com uma tribo indígena em pleno século XXI: alguns costumes mudaram, como a inclusão de aparelhos eletrônicos (o gravador de cassete) e vestimentas (como a cena hilária em que um índio se traja com uma camisa com o desenho de Darth Vader), porém os rituais continuam os mesmos. Tudo é passado de geração para geração, como o último plano indica ao notarmos uma jovem índia aprender os seus primeiros cânticos.



A câmera permanece sempre na mão e busca não interferir no cotidiano dos índios. Aos poucos, eles nem notam a sua presença e em outros momentos claramente encenam para o vídeo. A opção é pela captura do real, portanto a iluminação é natural com instantes em que não dá para identificar inteiramente a sequência. Esse movimento se coaduna com a proposta estética de observação, de ser mais um no meio deles e só assim extrair a “verdade”.



O grande destaque de As Hiper Mulheres está na montagem do próprio Leonardo Sette, que consegue trabalhar o tempo particular da aldeia com elipses precisas e cortes no momento certo das sequências. Nada soa repetitivo ou se desenrola além do previsto. É nesse equilíbrio nas ações que a construção dramatúrgica se desenrola paulatinamente da preparação à execução do ritual feminino no desfecho. Além de uma edição cuidadosa, há a introdução de montagem paralela que ressalta as diferenças entre homens e mulheres.



As Hiper Mulheres vai de um simples registro até a força de algumas imagens em que revela a ligação do índio com a natureza. Se peca em alguns instantes ao apostar num tom anedótico sobre sexo e brincadeiras, e particularidades que não acrescentam à experiência, o filme tem um desfecho de congraçamento em um belo transe coletivo em prol da alegria de viver.





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PRIMEIRO PROGRAMA DE CURTAS EM COMPETIÇÃO

28/09/2011



Antes de cada longa-metragem na sessão noturna no Cine Brasília serão exibidos 4 curtas, sendo que os dois primeiros competem na mostra de animação e os outros dois se dividem entre documentários e ficções. É a primeira vez que o Festival de Brasília outorga prêmios para as animações, que nunca foram tão produzidas no país. A escolha das obras na noite de ontem não seguiu um critério de aproximação, visto que os curtas exibidos não se interligam em absolutamente nada, nem em estética ou discurso. Ao que indica isso deve ser uma tônica no festival. Se por um lado não se detecta unidade, por outro é possível avaliar e ressaltar as qualidades de um curta em detrimento de outros. Os comentários a seguir serão breves, mas mantendo a ideia original de escrever sobre todos os filmes exibidos e assim extrair um panorama completo da 44ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.



Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo, de Rodrigo John

Já o tinha assistido durante o CineEsquemaNovo, de Porto Alegre, e não tinha boas lembranças da ocasião. Agora revendo pude notar qualidades, sobretudo na aposta do diretor no humor negro e no nonsense. O curta brinca com a plateia o tempo todo, no sentido de que ele vai por caminhos cada vez mais tortos quando parecia que seria uma simples narrativa cômica. Há referências a Cantando na Chuva e uma citação de Machado de Assis. É uma história tragicômica sobre um cachorro que perde partes do corpo durante a projeção, com uma estética suja e uma proposta autoral clara. Se nunca chega a ser brilhante é ao menos uma animação inusitada dentro do cinema brasileiro. Não vai me surpreender se sair laureada em mais um festival.



Bomtempo, de Alexandre Dubiela

Uma animação clássica com traços simples e que não se propõe a ser nada mais do que o argumento previa. É nessa despretensão que Dubiela ganha pontos com uma duração de 1 minuto e 30 segundos que desenvolve a risca a sua proposta inicial. É o esboço de um trabalho; um exercício que todo animador deve passar para atingir novos horizontes.



Ser Tão Cinzento, de Henrique Dantas

O curta resgata uma obra marginal de Olney São Paulo intitulada Manhã Cinzenta, que foi perseguida durante a ditadura militar pelo seu caráter alegórico. A aposta de Dantas está em revisitar essa história, porém imprimir uma carga experimental e se aproximar do filme de Olney. A estrutura base da narrativa se foca em uma espécie de vídeo-instalação da projeção da película 16 mm de Manhã Cinzenta na parede de uma suposta cela de prisão. Ao largo das imagens, as vozes em off das pessoas envolvidas no projeto. A escolha equivocada está na repetição incessante dos créditos para identificar as falas, que se torna desnecessária devido ao curto espaço de tempo em que são proferidas. Além disso, após toda a explicação e reflexão sobre o episódio, Ser Tão Cinzento se encerra com um letreiro explicativo e redundante que apenas compila para o espectador desatento tudo o que foi falado previamente. O filme se sustenta pela estranheza com que Manhã Cinzenta se desenrola na tela muito mais do que revisitar os momentos.



A Fábrica, de Aly Muritiba

O baiano Aly, que está radicado em Curitiba, vem desenvolvendo um trabalho de grande interesse na seara do curta-metragem: uma produção constante que agora vem colhendo os frutos em festivais. A Fábrica é a continuação do olhar pelo cotidiano já apresentada em Dia 1 p.m. em que Muritiba transita com propriedade entre o documentário e a ficção. A Fábrica apresenta uma construção dramatúrgica madura na qual a narrativa se desenvolve sem pressa e captura o olhar do espectador para seus meandros. A câmera está na mão e nos aproxima dos personagens, sem que isso soe como um cacoete estético da produção independente. A aposta de Aly está na desdramatização, tanto na interpretação dos atores quanto na maneira como conduz a história. O mesmo roteiro na mão de diversos diretores se transformaria em um melodrama para passar mensagens, só que Muritiba está seguro e ciente daquilo que busca alcançar: o silêncio, os olhares e a tensão de uma história presente no cotidiano de tantas famílias brasileiras. Não há maquiagem, concessão ou artifício, somente a encenação crua e documental de um curta que merece ser visto com atenção especial por crítica e público.





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ABERTURA

27/09/2011



Após a abertura para convidados na noite de ontem com a exibição do documentário Rock Brasília – Era de Ouro, de Vladimir Carvalho, o Festival de Brasília inicia hoje a sua competição oficial de longas, que contém apenas seis títulos, com o filme As Hiper Mulheres, de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, que aborda um ritual feminino no Xingu.



A 44º edição do Festival de Brasília nasceu sob o estigma polêmico da queda do ineditismo para a competição pelos candangos. Pela primeira vez também, obras em digital foram aceitas no certame - o que abrange assim o universo de produção independente. Além disso, a tradicional data de novembro foi antecipada para o fim de setembro. Polêmicas à parte, a quebra do ineditismo é algo positivo, desde que a seleção oficial reflita uma curadoria criteriosa para a escolha dos filmes. A expectativa é alta tendo em vista a característica transgressora e artística do festival. A entrada do digital só amplia o leque de opções. É certo que nem tudo rodado nesta bitola é digno de atenção, mas a força de produções do chamado “novíssimo cinema brasileiro” está justamente nessa busca incessante pelo registro.



A seleção de longas é bem plural e parte da junção de novos nomes no cenário, como Marco Dutra e Juliana Rojas (Trabalhar Cansa), com o trabalho autoral de Tata Amaral (Hoje) e Edgar Navarro (O Homem que Não Dormia) – que, ainda que com carreira curta, devido às dificuldades de captação de recursos, deixaram suas marcas no audiovisual entre as décadas de 70 e 90. Após as exibições de todos os filmes, incluindo os curtas, poderemos traçar um perfil de um corpo de trabalho e identificar se existiu realmente um olhar cuidadoso para agrupá-los. A análise muitas vezes pode soar apressada devido ao curto espaço de reflexão, porém ela é o registro fiel daquele momento. E não há nada mais fascinante do que se perder em inúmeros filmes e tentar encontrar respostas, ainda que não se saiba ao certo que vá encontrá-las. A cobertura nesse espaço será diária e a proposta é sempre do diálogo com o cinema.



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