O ENCANTADOR DE CARANGUEJEIRAS
PATRICIA REBELLO
O novo filme de Pedro Almodóvar, A Pele que Habito, responde a uma pergunta que existe em cada um dos filmes do diretor: sim, todos os personagens de Almodóvar habitam uma espécie de “segunda pele” e sim, Almodóvar é um dos raros diretores que conseguem falar da experiência da alteridade sem o ranço existencial psicanalítico ou a nova sociologia trans-globalizada. E, sem cair na armadilha de um ou outro, consegue realizar o que ambos levam anos para produzir: a curiosidade pelo diferente, e o prazer da descoberta de novas formas de subjetividade.
A Pele que Habito, baseado no romance Mygale, do escritor francês Thierry Jonquet, conta a história do Dr. Robert Legard (Antonio Banderas), que, depois da morte da esposa e da filha, mergulha no desenvolvimento de uma pele artificial sensível a todo toque e resistente a qualquer agressão. Robert divide a bela mansão El Cigarral com a assistente Marília (Marisa Paredes) e com uma misteriosa e bela jovem metida em um macacão cor da pele, Vera (Elena Anaya). A história vai sendo montada aos poucos, aos retalhos, com muito corte e costura, acidentes de carro, assassinatos, acessos de ciúme, raiva, lágrimas, desaparecimentos e sangue, naquele tom vermelho-Almodóvar fundamental.
Mygale, título original do romance de Jonquet publicado em 1984, é um tipo de aranha caranguejeira que existe no sul da Europa. Ela é solitária, errante e quase totalmente inofensiva ao homem: sua pièce de resistance são os grossos pelos, que produzem forte irritação na pele. A pele. A nossa superfície de contato com o mundo, aquilo que dá os limites entre interno e externo, entre eu e o outro, o tecido do corpo humano que nos contém e que previne que transbordemos. O filme de Almodóvar se desenvolve em torno da utópica proposta de invenção de uma superfície perfeita. Mas mesmo a superfície mais perfeita não segue imune e resiste à história que lhe atravessa. Ao contrário, a própria pele se torna um gesto de resistência. A Pele que Habito, e também a que eu e você habitamos, é uma pele que tem sua própria história.
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O QUE TRANSBORDA PELOS POROS
LUIZ FERNANDO GALLEGO
Almodóvar sempre alimentou em seu público a expectativa de originalidade a cada novo filme. Parece mesmo que se obriga a isso como cobrança. Pena que, por um lado, possa incorrer eventualmente mais na bizarrice do que na originalidade almejada, caso deste A Pele que habito. E que por outro lado, formalmente, repita os mesmos truques de roteiro procurando causar:
a) perplexidade no início (em grande parte por omitir, como em histórias policiais, explicações de como as coisas chegaram àquele – estranho - ponto na vida de seus personagens);
b) entendimento a partir de flash backs onde revela o que omitira, o que aconteceu “antes”;
c) conclusão (não necessariamente “resolução”) em uma espécie de “terceiro ato de roteiro” (“atos” como rezam os manuais caretas de roteiros).
Essa estrutura vem se repetindo e ficando mais evidente quando seus filmes são menos bem-sucedidos como Abraços Partidos, Má educação e especialmente nesta obra mais recente, a mais insatisfatória desde Kika (que já o levara a um ponto de exageros a partir do qual ele deu meia-volta para A Flor do meu Segredo e chegou à obra-prima Carne Trêmula).
Os exageros fazem parte das criações de Almodóvar, evidentes desde sua “primeira fase” menos polida, onde até as bobagens gratuitas de Maus Hábitos eram mais toleráveis pelo humor e irreverência. Sem maior inspiração para o humor em A Pele que habito, o que bate na tela fica como um excesso bizarro em tons mais sombrios e desequilibrados, sem o nonsense do deboche. O excesso do personagem de Antonio Banderas lembra a hybris (desmesura), a falha trágica dos gregos - mas se há alusão, não há discussão de temas ligados à bioética que remontam a Frankenstein (e Banderas, graças a uma iluminação azulada, de baixo para cima em um plano fechado de seu rosto pode lembrar Boris Karloff - mas como “cientista louco”). As alusões servem apenas ao enredo descabelado com sub-plots excessivos (o personagem fantasiado de tigre) que nem semrpe se articulam bem no geral.
Se a pele é órgão continente do corpo, dessa vez Almodóvar não coube em sua própria pele e transborda como excesso.
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CORPO SEM ALMA
CARLOS ALBERTO MATTOS
A Pele que Habito me dá a nítida impressão de que Almodóvar realmente mudou de pele com o passar dos anos. Depois da fase transgressora e “suja” dos anos 1980, a partir de Carne Trêmula ele se transmutou num elegante contador de histórias absurdas, mas ainda trabalhando o kitsch do melodrama a seu favor. Ultimamente, daquilo tudo parece ter ficado apenas um formalismo cada vez mais pomposo, enquanto o kitsch passa a controlar o diretor, ao invés do contrário.
Vejo Almodóvar como o cirurgião plástico vivido por Antonio Banderas. Preocupado sobretudo com a excelência das formas e das superfícies, acaba perdendo o pulso do que vai na psique de sua criatura. Na maior parte das cenas, tive a impressão de estar vendo uma série de anúncios publicitários longinquamente inspirados em Almodóvar. A exceção é quando a ênfase no requinte formal dá lugar à franca vulgaridade, como em todas as estranhas referências ao Brasil e à língua portuguesa.
Quanto à trama, prefiro não me estender, deixando para o espectador (e meus colegas críticos) a tarefa de deslindá-la. Só não posso concordar com quem já enxergou profundidades filosóficas a respeito de identidade, gênero, subjetividades e reinvenção do amor. Nem me venham falar de Hitchcock ou Mary Shelley. Para mim, aquilo é apenas a paródia de velhos filmes B a Z, que misturavam na mesma coqueteleira barata a ficção científica, o terror e o romance truncado. Basta levantar um pouco a pele bem iluminada e maquiada do filme para ver o corpo cansado de um cineasta que não provoca mais entusiasmo.