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FESTIVAL DO RIO 2011: DOCUMENTÁRIOS

19.10.2011
Por Críticos.com.br
FESTIVAL DO RIO 2011: DOCUMENTÁRIOS

JACK CARDIFF – VIDA E OBRA DE UM CAMERAMAN



CARLOS ALBERTO MATTOS



Dizem que os maquiadores são os que têm as melhores histórias de bastidores para contar. Mas Jack Cardiff (1914-2009) demonstra que essa prerrogativa também pode tocar aos cinegrafistas. Afinal, ninguém passa mais tempo no set do que eles. Nesse doc bastante convencional de Craig McCall, o magistral cameraman do Technicolor conta algumas boas histórias. Por exemplo:



- Marlene Dietrich exigia aquela famosa luz do alto não apenas para destacar as maçãs do rosto, mas para produzir uma sombra triangular abaixo do seu nariz, que ajudava a afilá-lo.



- Quando Michael Powell pediu-lhe um fade-in menos mecânico, ele simplesmente bafejou na lente e iniciou a tomada.



- Orson Welles exigiu um casaco de mink para seu papel no épico A Rosa Negra porque pretendia sair de fininho com ele para vestir no seu Otelo.



Enfim, esse é o tipo de doc que vive mais dessas informações de cinefilia que de observações técnicas sobre o métier. É curioso, por exemplo, saber que Scorsese reconhece influências diretas da fotografia de Cardiff nos filmes de Michael Powell e tem como sua fiel montadora a viúva de Powell, Thelma Schoonmaker. Aliás, foi Scorsese quem apresentou um ao outro.



Antes que esse texto fique parecido demais com os de Rubens Ewald Filho, deixe-me dizer que Jack Cardiff também comenta sua admiração pela pintura de Vermeer e Turner; que o filme coleta cenas deslumbrantes que fizeram de Cardiff talvez o maior fotógrafo de filmes coloridos dos anos 1940 (Narciso Negro) aos 80 (Conan, Rambo II), passando por muitos Hitchcocks, épicos e aventuras. Ele era um misto de artista, técnico e mago que o cinema começou a dispensar com a era digital. Quando seus “milagres” começaram a ser feitos pelos computadores, Cardiff admitiu que seu tempo havia passado. Mas, revendo aqui sua carreira, como passou bem!



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ABDIAS NASCIMENTO



CARLOS ALBERTO MATTOS



A fim de traçar um perfil e dimensionar a importância de Abdias Nascimento (1914-2011) para a cultura negra no Brasil, Aída Marques optou por uma abordagem próxima do filme doméstico. O político, escritor e ativista é visto em cenas cotidianas e em encontros, almoços e debates com uma série de admiradores, discípulos etc. Não há, portanto, como evitar um clima de tributo, complementado por uma entrevista memorialística que fornece o eixo básico da narrativa. Questões potencialmente polêmicas como o casamento de Abdias com uma mulher branca e sua participação no movimento integralista são apenas rapidamente mecionados. Da mesma forma, ficam sem aprofundamento afirmações retumbantes como a de que “os modernistas excluíram os negros da composição do povo brasileiro”.



O fator doméstico se manifesta também numa estética antiquada de telas divididas, um uso muito duro dos arquivos fotográficos e encenações excessivamente impostadas. Parece-me que o material se prestaria a um melhor resultado caso passasse por um trabalho de edição mais sofisticado.



A melhor situação, entre as criadas especialmente pelo documentário, é uma reunião de Abdias com representantes de várias gerações da causa negra, de Ruth de Souza e Léa Garcia a Lázaro Ramos e Marcelo Yuka. Nessa sequência, vêm à tona tensões e contradições que, de resto, o modelo de filme-homenagem deixa de considerar. Abdias foi alguém que procurou superar a inferiorização racial a partir da sua própria experiência pessoal, o que já gerou muito debate no movimento negro. Aída Marques lança uma primeira pedra nessa reconstrução que ainda fica por desenvolver.



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MARIGHELLA



CARLOS ALBERTO MATTOS



Depois de ter sido objeto de filmes de Chris Marker e Silvio Tendler, o herói comunista e líder guerrilheiro Carlos Marighella ganha a sua cinebiografia mais pessoal e provavelmente a mais rica em preciosidades documentais. Isa Grinspun Ferraz, sobrinha do retratado, parte de suas lembranças de menina, o que pode soar mais como alinhamento a um modelo narrativo em voga do que uma necessidade orgânica do filme. Mas felizmente esse “gancho” é usado de maneira discreta, deixando o foco principal para os depoimentos de velhos comunistas, parentes e figuras emblemáticas da resistência à ditadura militar, como o crítico e escritor Antonio Candido. Textos e poemas de Marighella surgem na voz de Lázaro Ramos. Tudo isso forma um tecido extremamente coeso, num roteiro praticamente exemplar.



A pesquisa iconográfica de Remier Lion é primorosa, com dezenas de filmes de ficção e documentários que se combinam, em perfeito ajuste dramático e atmosférico, para construir o itinerário do personagem e das esquerdas ao longo de quase 50 anos. Entre as muitas qualidades do filme, ressalta um equilíbrio cuidadoso entre o detalhe pessoal e a análise macro, a dimensão humana e o significado histórico daquele mulato revolucionário. Vale destacar também a expressividade e espontaneidade dos depoimentos, especialmente da parte de Clara Charf, ex-companheira de Marighella, cujos charme e vivacidade continuam apaixonantes.



Entre o “inimigo público n° 1” do regime militar, o “santo do socialismo” no dizer de Antonio Candido e o misterioso Tio Carlos que Isa via chegar em sua casa com uma enigmática capanga que ninguém podia tocar, Marighella desenha um perfil tão profundo quanto sóbrio. Junta-se a Hércules 56, Cidadão Boilesen e Diário de uma Busca como as melhores revisitas que o documentário tem feito a nosso passado ainda recente.



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DECORANDO O ALCORÃO



CARLOS ALBERTO MATTOS



Greg Barker, autor de um ótimo doc sobre Sérgio Vieira de Melo, volta ao front das relações internacionais numa escala micro, enfocando um concurso anual de recitação do Corão por crianças muçulmanas representantes de diversos países. Recitar o livro sagrado do Islã é quase um pleonasmo, já que o termo Corão significa justamente Recitação. Ele foi escrito para ser dito em voz alta. Os meninos e meninas instruídos a decorar o conteúdo de suas 600 páginas ganham a promessa de destreza intelectual e sucesso nesta e na outra vida.



O filme acompanha três candidatos do Tajiquistão, das Ilhas Maldivas e do Senegal em sua viagem ao Cairo para o concurso. Todos têm dez anos de idade e, mesmo sem nenhum conhecimento do idioma árabe, trazem o Corão inteiro na ponta da língua. Crianças submetidas a provas sempre rendem narrativas cheias de suspense e afetividade. Aqui não é diferente. O carisma de Nabiollah, Rifdha e Djamil envolve completamente o espectador enquanto Greg Barker passa seu recado político.



Sim, porque Decorando o Alcorão (Koran By Heart) é um alerta civilizado, embora nada sutil, contra o recrudescimento do fundamentalismo islâmico através da educação em países tradicionalmente moderados. O menino tajique, por exemplo, conhece todo o Corão mas é semianalfabeto, já que sua educação tem sido basicamente religiosa. A menina maldívia teme ser levada pelo pai ortodoxo a sair do país para se dedicar a estudos eminentemente religiosos. A visita ao Cairo é uma pausa diferente na vida dessas crianças, mas também um possível divisor de águas em suas vidas de ídolos mirins.



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VALE DOS ESQUECIDOS



CARLOS ALBERTO MATTOS



Sem-terras, posseiros, grileiros, fazendeiros e índios se ameaçam reciprocamente numa região de Mato Grosso. Suiá-Missú era terra xavante antes de ser comprada por um grande latifundiário. Depois foi vendida a distintos fazendeiros e ocupada por posseiros. Os índios, transferidos para uma Missão com a conivência de padres, voltaram na marra anos mais tarde (aqueles que sobreviveram às doenças) e hoje reivindicam o direito de nação. O clima é de guerra iminente.



Vale dos Esquecidos faz um mapeamento das razões e das armas de cada um. O fazendeiro americano John Carter, por exemplo, vê a região como uma fronteira de faroeste, e não hesita, mesmo diante da câmera, em atear fogo nas choças de posseiros que localiza em suas terras. O cacique xavante agita sua borduna e explica que sua cultura não reconhece esse negócio de diálogo. Políticos e posseiros admitem que seus títulos de posse são ilegais, mas duvidam que alguém os tire dali. Passadas de mão em mão há mais de 50 anos, essas terras da desordem são um microcosmo de várias outras pelo Brasil afora.



Maria Raduan conta com dois profissionais de peso em sua equipe: o tarimbado fotógrafo-aventureiro Sylvestre Campe, responsável pelas magníficas imagens, e a montadora Jordana Berg, que articula da melhor maneira possível os vários temas e focos em questão. Algumas pontas ficam soltas, como o problema das queimadas e a responsabilidade da igreja na história. Mas como painel horizontal de um conflito complexo, o doc cumpre seu papel com muita propriedade.



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TABLÓIDE



CARLOS ALBERTO MATTOS



Os fatos da vida de Joyce McKinney parecem uma sucessão de manchetes sensacionalistas: eleição de Miss Wyoming, sequestro de um namorado mórmon, sexo com correntes, prisão, bilhetes traficados na vagina, disfarces, anúncios sexuais falsificados, roubo dos originais de um livro, estraçalhamento por um cão, clonagem de outro cão... Uma história, enfim, de muitos escândalos e, paradoxalmente, uma irremediável solidão.



Em Tablóide, a própria Joyce nos oferece sua versão, num misto de ingenuidade e malícia, olhos cravados na lente do Interrotron, o equipamento criado por Errol Morris que permite ao entrevistado conversar com a imagem do diretor através de uma espécie de teleprompter. O Interrotron fornece essa mirada muito direta que tanto caracteriza as entrevistas de Morris. No caso aqui, o olhar sem intermediação é fundamental para a abordagem “bisbilhoteira”. Tablóide, afinal, é a fofoca elevada a obra de arte.



Morris explora a estética dos jornais tablóides: recortes, palavras gigantes na tela, imagens icônias/irônicas de filmes e anúncios antigos para ilustrar os relatos. O efeito de hilaridade é irresistível, à medida que as histórias se sucedem num crescendo de absurdo e de patético. A verdade é algo sem nenhuma importância na névoa dos boatos. Errol Morris não se interessa por investigar a veracidade disso ou daquilo, mas sim pelas repercussões que flutuam no espaço midiático – incluindo aí a consciência da protagonista, também ela convertida em mídia de si mesma.



Tablóide é também um filme inspirador para documentaristas. Com uma boa personagem, poucas entrevistas, um material praticamente sem custo e uma escolha firme e certa de tom, Morris dá (mais) uma aula de economia e inteligência.



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MAMA ÁFRICA, de Mika Kaurismäki



por Luiz Fernando Gallego



Assim como Maurice Ravel sofreu uma espécie de “maldição” com o sucesso popular de sua peça para dança, o “Bolero” (quando ele preferia muitas outras composições suas), Mirian Makeba lamentava que seu maior sucesso, quase sua “marca registrada”, fosse Pata Pata.



O novo documentário musical de Mika Kaurismäki (que já filmou nosso gênero musical mais doce, o choro, em Brasileirinho, dentre outros docs tendo música como tema) ajuda a lembrar - ou mesmo informar - porque Mirian preferia outras canções de seu repertório. Mostra quem foi de fato essa cantora de sucesso mundial e combatente pelos direitos humanos - dos negros em particular, fosse em sua terra natal, a África do Sul, fosse nos Estados Unidos onde se radicou por um período – e onde foi boicotada após casar-se com Stokely Carmichael, líder do movimento “Black Power” dos anos 1960/70.



É surpreendente escutar da artista, nos anos 1970, com uma fala que transmite permanente doçura mais autêntica do que ensaiada, que a diferença entre Estados Unidos e África do Sul seria pelo fato do preconceito e ódio raciais na África do Sul serem mais manifestos, às claras, evidentes. Isso serviria para o nosso Brasil – de onde ela encontrou um de seus acompanhantes principais, o grande Sivuca do acordeão (e violão) que aparece em vários trechos de arquivo em shows, ou mesmo fora dos palcos em convívio com a cantora e a banda da (merecida e de fato) estrela (sem estrelismos). Tal convívio fez Makeba gravar Adeus, Maria Fulo do próprio Sivuca (que não é tocada no filme) e Reza (“laia-ladaia-sabadã-avemaria”), de Edu Lobo – cuja autoria não é mencionada nos créditos finais.



Makeba falou na ONU contra o “apartheid” sul-africano em 1963 e em 1964, indo além do mero cantar músicas “de protesto”, mas não descuidava da qualidade artística de suas interpretações, de seus músicos, de seu repertório vasto e em diversas línguas africanas. Sem condições de voltar à sua terra natal desde 1959, ao ficar sem condições de permanecer nos Estados Unidos depois de seu casamento com Carmichael, foi acolhida na Guiné, em um período em que os líderes africanos se direcionavam para um pan-africanismo que se perdeu com novos presidentes ou ditadores que ela chama de “neocolonialistas” visando interesses do Ocidente ou do Oriente, mas não da África. Só voltou à África do Sul após a libertação de Mandela.



Com boa utilização de muitas - e reveladoras - imagens de arquivo assim como de várias entrevistas de gente que conviveu com Makeba , este novo documentário de Mika Kaurismäki tendo música (e/ou músicos) como tema confirma seus acertos nesta área, talvez pela sua paixão pela melodia - e pelo ritmo.



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MARCELO YUKA NO CAMINHO DAS SETAS



CARLOS ALBERTO MATTOS



Documentários a respeito de sobreviventes costumam se pautar pelo elogio à superação, numa ótica edificante, principalmente quando se trata de artistas. Assim eram Herbert de Perto e Favela Rising, para citar dois exemplos recentes. Marcelo Yuka no Caminho das Setas toma um caminho relativamente distinto a partir do encontro de um personagem e uma documentarista não dispostos a apresentar um discurso pronto para o conforto do espectador.



Yuka, ex-baterista da banda O Rappa e ativista contra a violência nos dois lados da trincheira urbana, foi vítima irônica de um incidente de rua em 2000, quando levou nove tiros e se tornou cadeirante. Daniela Broitman começou a filmá-lo quatro anos depois, embora tenha “reconstituído” o período anterior com ajuda de materiais alheios. Com sua câmera, registrou momentos cruciais da fisioterapia, acompanhou a preparação do primeiro disco solo, documentou as palestras de Yuka –inclusive para presidiários culpados de crimes como o que o vitimou. Testemunhou, enfim, as sutis transformações que encaminharam o compositor para uma certa espiritualidade, mas principalmente a resiliência que faz seu discurso permanecer o mesmo depois de tanta dor.



A dor é uma constante na vida de Marcelo há 11 anos, mas ele rejeita os olhares de piedade e a posição de vítima ou herói. O filme o atende dignamente, mostrando o processo de reabilitação e o pensamento de Yuka em toda a sua complexidade. Suas conversas com Daniela e suas relações com os pais diante da câmera são extremamente reveladoras, às vezes difíceis mesmo. Dão a justa medida de quanto um documentário pode ser penetrante sem trair os princípios de quem está na mira das lentes. Trabalhos excelentes de câmera no improviso e a montagem sempre criativa de Jordana Berg completam a qualidade de enfoque da direção.



Daniela Broitman fez a proeza de “reabrir” o filme para incluir cenas de Yuka no Rock in Rio. Elas somam à dialética de metamorfose/permanência do artista ao longo desses últimos anos.



Daniela vem de um doc mais singelo sobre lideranças comunitárias, Meu Brasil. Este tour de force na fronteira entre o entretenimento, a consciência social e o drama individual prova sua capacidade de encarar desafios maiores.



>>> Amanhã (terça), após a sessão popular de 13h no Pavilhão do Festival (Armazém da Utopia), eu mediarei um debate com a diretora do filme e a provável participação de Marcelo Yuka.



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GIRL MODEL



NELSON HOINEFF



De perto, nenhuma aspirante a modelo é mesmo muito normal. São meninas bem mais novas do que imaginávamos, geralmente nos primeiros anos da adolescência, envoltas em problemas não previsíveis para garotas daquela idade – e uma busca desenfreada pelos valores tão estranhos quanto fortuitos que povoam este universo. Para alcançar o tipo de sucesso que esses valores definem, são capazes de tudo – em geral impulsionadas por mães que sonham com a fama efêmera da filha ou, bem mais comumente, com sua própria aposentadoria. Ocorre então, como não poderia deixar de ser, um circo dos horrores, protagonizados por faces que deveriam apontar para a paz e a beleza em estados puros.



Girl Model fala sobre uma espécie de açougue de modelos. São centenas de jovens, semi-despidas no frio siberiano, entulhadas num galpão, e ali buscando uma chance de chegar ao mercado japonês e norte-americano. Ali estão as belas meninas sendo, literalmente, inspecionadas para exportação, como se fossem receber um carimbo do ministério da agricultura.



Toda essa inspeção, dos pequenos detalhes que classificam ou desclassificam (“japonês não gosta quando é muito alta”, “vamos te botar num emagrecimento”) a escolha, o embarque e o que vem a partir daí, são vistos através dos olhos de uma das candidatas, e também de observadoras designadas para isso (“eu não tenho a palavra final”), além, é claro, do dono de uma agência de importação de meninas – o tipo de pessoa que faz questão de falar e se vestir de tal maneira que não deixe duvidas sobre o que realmente pretenda extrair dessa atividade. (Seu site, aliás, pode e merece ser visto em elenasmodels.com.).



O tráfico de mulheres do leste para o Japão e os EUA, a dilapidação de sonhos e, mais importante que tudo, de valores perversos que foram incutidos nas garotas desde o seu nascimento, merecia bem mais que o conjunto de depoimentos em que Girls Models, infelizmente, se resume. Co-produção entre Rússia, EUA e outros países, o filme é dirigido por dois americanos, David Redmond e Ashley Sabin. Juntos, eles fizeram mais dois documentários: Kamp Katrina e Intimidad, nenhum dos quais alcançou grande projeção no circuito internacional do gênero.



Girl Model joga pelo ralo uma boa chance para se lançar um olhar mais atento – e critico – ao material que afinal de contas foi colhido. Seus depoimentos – inúmeros, frios e poucas vezes relevantes – sugerem que, ao contrário, os realizadores não se espantaram muito com o que estava diante de seu nariz. Fizeram o que teriam feito se tivessem filmado exposições de gado. Pode fazer sentido, mas continua sendo um desperdício.



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OLHE PARA MIM DE NOVO



CARLOS ALBERTO MATTOS



Syllvio Luccio não é um homem qualquer. Na verdade, é uma mulher que vive como homem. De feminino, só tem a voz e a anatomia genital (ainda). De resto, é alguém que adora “falar de mulher” e entrar nos bares botando banca de macho cearense. Uma pessoa culta e articulada, que já foi ativista do MR-8, mas não recalca seu lado “brega e caipira”. Uma figura, sem dúvida, interessante. Kiko Goifman e Claudia Priscila deixam que ele narre a si mesmo em Olhe para Mim de Novo. Se isso confere personalidade ao filme, também gera certa limitação, já que pouco se agrega ou contrasta com a autoimagem do personagem.



Syllvio se dá a ver durante uma viagem por diversas cidades nordestinas, a caminho de um aguardado encontro familiar que vai ocupar a última (e ótima) cena. A ideia, ao que parece, era usar esse percurso para documentar outros casos de transgressão ou problematização de gênero na paisagem humana do Nordeste. Assim, Syllvio conversa com gays na rua, paquera na Feira de Caruaru e visita portadores de deficiência física e ambivalência sexual. O recurso, porém, não resulta dos mais produtivos para além da exposição do exótico, muito embora o tratamento seja sempre respeitoso e solidário.



Como trabalho da dupla (e casal) Kiko-Claudia, é menos inventivo que outros anteriores, mas alinha-se a suas investigações estéticas na área da identidade genética (como 33) e de personalidades menos convencionais (como a série de TV HiperReal).



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ESTIVEMOS AQUI, de David Weissman e Bill Weber



NELSON HOINEFF



HISTÓRIAS DE UMA EPIDEMIA Originalmente publicado a partir da exibição do filme no Festival de Berlim 2011 em 17/02/2011



No inicio dos anos 1970, uma comunidade que se reunia tendo como epicentro uma pequena rua de São Francisco, a Castro Street, mudou a rotina daquela cidade da Califórnia e deflagrou uma revolução de comportamento visível no mundo inteiro. Ela tinha base nas transformações operadas pelo movimento hippie no espectro de possibilidades de se pensar o mundo, e na cristalização do pensamento libertário de líderes como Martin Luther King. Muitos líderes de movimentos de direitos civis nasceram ali ou por ali estenderam tentáculos de seu ativismo político; um deles, Harvey Milk, retratado há dois anos com perfeição por Sean Penn no filme de Gus van Sant. E vinte anos antes, no extraordinário documentário de Rob Epstein, The Times of Harvey Milk. (Uma versão cinematográfica do recente livro de Randy Shielts sobre Milk, The Mayor of Castro St, está sendo realizada neste momento).



Várias outras vezes o cinema falou sobre as possibilidades inauguradas em Castro St. Sobre a alegria (suspeito que o termo “gay” tenha nascido ali), sobre a intolerância e os embates derivados da segregação.



Não me lembro, no entanto, de ter visto algo consistente sobre uma tragédia que se abateu sobre o mundo e muito especialmente sobre o estilo de vida proposto em São Francisco: a epidemia de AIDS percebida a partir do final dos anos 70.



É um assunto sobre o qual ninguém quer falar, possivelmente pelas contradições entre a luta pelo controle da epidemia e a outra luta, pela defesa do estilo de vida imposto por Castro St. Ou pela pequena fronteira existente entre a banalização das emoções, a pieguice, ou a possibilidade de, através do cinema, dar voz aos grupos representados de maneira deturpada pela cultura dominante.



We Were Here (título original) expõe com clareza essas contradições. Ele é dirigido por David Weissman (não confundir com o roteirista homônimo de Hollywood) e Bill Weber, a dupla que fez o celebrado The Cockettes, que não conheço.



Weissman e Weber usam apenas cinco entrevistas - e um grande material de arquivo, onde evidentemente não falta Harvey Milk - para contar a história do que era estar em São Francisco quando, de um dia para outro, todos os amigos começaram a morrer. A lenta descoberta do que estava acontecendo (no primeiro momento a doença era chamada de “câncer gay”), a perplexidade, o medo, a culpa e a incerteza sobre o que fazer quando a natureza parece tornar-se aliada do preconceito.



Dos cinco entrevistados, três são sobreviventes dos primeiros momentos da epidemia, estão saudáveis e certamente por isso constituem a veia ativista do filme, que evita incorporar de maneira explícita esse tom. É uma decisão controversa dos diretores, mas aparentemente correta. Estivemos Aqui narra o drama de Castro St. de maneira fria – ou, melhor dizendo, não panfletária. Entre a utopia proposta em San Francisco e os riots políticos de Stonewall , eles ficam com o primeiro. Não é um filme engajado em causa alguma – e justamente por causa disso cumpre melhor o seu papel.



Há imagens impressionantes de jovens de muito boa aparência e, poucos dias depois, definhantes; pessoas energéticas num dia e, logo depois, com sarcomas por todo o corpo nos seus leitos de morte. O filme promove uma apologia consistente do que a comunidade de Castro St estava ensinando ao mundo e a si própria; das suas lutas contra políticos conservadores e todo o establishment que procurava transformar em inferno opções pessoais de vida, para logo em seguida se deparar com uma galopante epidemia que muitos desses conservadores não hesitavam em definir como “punição”.



A epidemia não terminou nem está sob controle, mas, como mostra o filme, os números atuais são encorajadores; a AIDS já não é tão associada à culpa e a instituição do preservativo foi tão bem sucedida que hoje inúmeros jovens não cogitam de dissociá-los de toda atividade sexual. Os cinco entrevistados de Estivemso aqui apontam para o fato de que a utopia de Castro St. permanece viva. O belo documentário de Weissman e Weber sugere que escolhas exigem às vezes formas de adaptação.



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A RAINHA SEM COROA



NELSON HOINEFF



O SHOW DA VIDA (texto escrito em 14/02/2011 a partir da exibição do fikme no festival de Berlim 2011)



O que mudou o mundo foram as redes sociais e, antes delas, os blogs. Nem uma bigorna duvida disso. Mas se você abrir agora o seu Facebook, vai ver um post sobre o pôr-do-sol, outro sobre a festa de formatura no sábado passado. Os mecanismos estão aí. Eles não têm culpa se as pessoas não têm nada a dizer.



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O israelense Tomer Heymann tem muito a dizer. Ele fala de suas experiências mais profundas como se estivesse contando o resultado de um jogo de futebol. Tomer tem mais coisa a dizer do que um monge budista. Está falando dele, mas de maneira extraordinariamente forte está dialogando com cada espectador, como se fosse o seu melhor amigo. É dele um dos mais fascinantes documentários exibidos esse ano em Berlim: The Queen has no Crown (titulo original).



A rainha é sua mãe, cujos filhos estão deixando o lar, e o documentário é sobre sua família. Ou melhor, é sobre como Tomer olha a sua família. Melhor ainda: sobre como Tomer olha o seu mundo e vê como o mundo percebe o seu olhar.



Aos 40 anos, Tomer é um dos mais inovadores documentaristas de Israel, o país que produz hoje alguns dos melhores, mais inteligentes e controversos documentários do mundo. É um ativista de muita coisa: a liberação dos territórios ocupados por Israel; os direitos civis de várias comunidades, entre elas as de diferentes orientações sexuais.



Tomer é uma das grandes vozes dos movimentos anti-homofobia em Israel e no mundo. Isso está expresso em muitos de seus filmes exibidos em outros anos em Berlim: Paper Dolls (2004) e I Shot my Love (2010), entre eles. Mas isso é apenas o início do que ele tem para dizer.



A Rainha sem Coroa é, aparentemente, um filme sobre a dissolução de uma família. Este é o seu tema principal. Pouco a pouco, os filhos de uma família de classe média em Israel vão deixando o lar para trabalhar, ou estudar, nos EUA. É um filme sobre o lar de Tomer, ou o que restou dele. Os pais, separados depois de um casamento de 33 anos, que agora nem se cumprimentam, seus irmãos e as famílias de seus irmãos.



Um dos irmãos, gêmeo de Tomer, tem o mesmo nome de seu namorado. É uma situação embaraçosa e divertida, é um dos muitos problemas cotidianos com que tem que lidar. Outro irmão desafia permanentemente o oficio de fazer filmes, que considera uma coisa menor, uma atividade inútil. Atira, particularmente, sobre o método utilizado por seu irmão para fazer esse filme.



Pois seu método é o seguinte: por mais de 10 anos, Tomer não largou nem por um segundo a sua câmera portátil. Documentou tudo o que acontecia ao seu redor. Os encontros e desencontros com a mãe e o pai, as partidas de seus irmãos para sempre, o encolhimento da família, a solidão de sua mãe, o seu flerte e depois o tórrido namoro, a sua grande paixão - e a separação indesejada. Não deixou de fora nem os garotos de programa com quem esteve depois que foi largado pelo namorado.



E, no entanto, ao contrário do que tudo parecia indicar, não é Tomer o foco de seu filme. Ou por outra: A Rainha sem coroa fala dele o tempo todo, e na primeira pessoa. Mas está falando mesmo é sobre o mundo que está ao seu redor. Sobre o seu país. Sobre a sua sexualidade e os entraves a essa expressão. Sobre paixões e razões para viver. Sobre a inserção de cada um no seu núcleo familiar. A constatação relevante é que quem habita esse mundo somos nós.



Há um vetor político nas proposições de Tomer: discutir como o governo de Israel está tratando a sua gente, pensar por que tantas famílias, descendentes de sionistas e sionistas elas próprias, têm deixado o país. O foco para isso está em sua mãe. Nesses dez anos ou mais, Tomer captou todas as suas reações à partida dos filhos, às revelações de Tomer, aos seguidos jantares de Pessach, cada vez menores e menos animados. A mãe subiu ao palco com ele na primeira exibição do filme em Berlim.



O outro vetor está na maneira pela qual Tomer simplesmente surfa pela vida. Ele tem um papel político a cumprir, mas, sobretudo, uma experiência humanista a compartilhar. Na maior parte do filme, Tomer é profundamente feliz. Não se pode dizer a mesma coisa de muitos outros personagens. É difícil imaginar que haja alguma culpa a ser contabilizada pelo simples fato de Tomer viver bem a sua vida, a sua opção política, a sua orientação sexual.



A contemporaneidade de A Rainha sem Coroa deriva justamente dessa atitude. Não há nada no filme que não seja real (na medida em que nada foi encenado e nem sequer preparado como depoimentos formais), ou que não seja verdadeiro (ainda que seu irmão não ache isso e o classifique de “manipulativo, com essa camerazinha de merda”).



Não tenho certeza que seja uma camerazinha de merda, mas estou seguro quanto aos limites da manipulação. Esse é um filme menos manipulativo do que um único acorde musical numa comédia romântica. Um filme sobre emoção, verdade, e nada mais. Herzog fez um documentário falando uma hora e meia de mentiras, com uma câmera em 3D. Tomer, com “uma camerazinha de merda”, faz um documentário falando uma hora e meia de verdades.



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CUBA LIBRE



CARLOS ALBERTO MATTOS



Evaldo Mocarzel tomou duas boas iniciativas em Cuba Libre: registrar a volta da atriz transformista Phedra de Córdoba a Havana depois de 53 anos; e usar a viagem para documentar o embrião de uma nova consciência sobre a diversidade sexual na ilha de Fidel. Só faltou fazer com que esses dois assuntos conversassem de verdade dentro do filme.



Um dos problemas do roteiro é não fazer com que a presença assumida e performática de Phedra em solo cubano possa ser percebida como sinal ou termômetro de qualquer avanço psicossocial. Ela está por demais ocupada com suas memórias e embevecida com seu estrelato no documentário para servir de agente de uma investigação da cena artística cubana. Evaldo, por seu lado, obtém flashes um tanto soltos, dos quais o melhor sem dúvida é uma entrevista com um casal de lésbicas que se refere uma à outra com poemas. Há também uma curiosa noitada num clube LGBT de Havana, mantido em regime de semiclandestinidade.



O grupo teatral paulista Satyros, ao qual pertence a atriz, está em Havana ensaiando um espetáculo de autor cubano, texto que também permanece em relativa obscuridade depois de terminado o filme. De maneira geral, Cuba Libre sugere o aproveitamento limitado de uma rara oportunidade. Dessa vez, o proverbial senso de urgência e improvisação de Mocarzel não foi suficiente para juntar as pontas da aventura.



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TILLMAN, UM HERÓI SOB MEDIDA



CARLOS ALBERTO MATTOS



Patt Tillman tinha tudo para ser um all american hero: rapagão forte e saudável, queixo quadrado, estrela do futebol americano, que interrompeu a carreira no apogeu para se alistar na guerra do Iraque. De fato, quando ele morreu na aridez de um cânion iraquiano, o exército tratou de colocá-lo imediatamente no panteão. O documentário de Amir Bar-Lev, entre os mais festejados da temporada americana de 2010, mostra como a família de Patt reagiu contra o uso do rapaz na glorificação oficial da guerra.



O pressuposto dramático é o oposto do que se vê normalmente, que são famílias faturando na heroicização de seus mortos. Os Tillman começaram sua cruzada ao descobrir que, ao contrário do que fora inicialmente divulgado, Patt havia sido morto por fogo amigo, provavelmente fruto da ansiedade e da excitação causadas pela guerra entre os jovens soldados. Depois, ao perceber que as honras oficiais contrariavam os desejos e posturas de Patt. Aos poucos, o alvo passou a ser a cadeia de comando do exército e do governo Bush.



Amir Bar-Lev (My Kid Could Paint Like That) fez um trabalho exemplar de levantamento e reconstituição jornalística dos fatos e da batalha judicial dos Tillman. Assim conseguiu desdobrar um caso aparentemente isolado para dimensionar as contradições e a desfaçatez de um dos piores capítulos da história americana recente. Patt Tillman estava fadado, sim, a ser uma espécie de herói, mas não exatamente aquele que os EUA gostariam de levar para seus livros escolares.



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ROCK BRASÍLIA - ERA DE OURO



CARLOS ALBERTO MATTOS



(Texto publicado originalmente em 9/7/2011)



Um filme sobre rock?! É o que muitos perguntam, assustados, ao ver o nome de Vladimir Carvalho associado a seu novo longa, Rock Brasília - Era de Ouro, eleito melhor doc do Festival de Paulínia e Prêmio Saruê no de Brasília. Para Vladimir, no entanto, isso não representa uma novidade absoluta. Um dos filmes que mais o impressionaram nos anos jovens foi Sementes de Violência, de Richard Brooks, que praticamente lançou o rock ‘n roll no cinema. Em sua casa, quem lançou o rock foi o irmão Walter, que participava de concursos de roqueiros. “Nos meus filmes, volta e meia tem rock”, diz ele, citando cenas de O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra e Barra 68.



Mas será mesmo Rock Brasília um filme sobre rock no sentido que se espera do gênero, com ritmo veloz, som em alto volume e imagens de rebeldia? Não é bem assim. Rock Brasília é, isso sim, um filme de Vladimir Carvalho. Um filme sobre como as pessoas se lembram das coisas e são capazes de contá-las cara a cara com o diretor. Na verdade, mais do que sobre rock, este é um filme sobre Brasília. Conclui uma trilogia de longas sobre momentos históricos da capital: a construção, evocada em Conterrâneos Velhos de Guerra; os assédios da ditadura, expostos em Barra 68; e a manifestação talvez mais frutuosa da cultura brasiliense, que foi o rock surgido ali entre o fim dos anos 1970 e o princípio dos 80, quando chegou a haver quase duzentas bandas na cidade.



Vladimir percebeu na época a importância do que rolava nas superquadras de classe média, especialmente naquela chamada Colina. Estimulou alunos e colegas da ABD a registrarem os primeiros shows das bandas Aborto Elétrico, Legião Urbana, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Capital Inicial e Detrito Federal. Não satisfeito, saiu ele mesmo para fazer entrevistas e filmar eventos como o célebre show do Legião em 1988, que terminou em confusão com muitos feridos e em ódio de parte do público pelo grupo. Esse material, guardado desde então, é a base documental de Rock Brasília.



Através de entrevistas e cenas de arquivo, além de uma sequência encenada para recuperar a atmosfera romântica dos acampamentos à beira do Lago Paranoá, o filme conta uma história de sonhos e obstáculos. Uma “epicrônica”, como Vladimir prefere chamar. Durante a fase de montagem, ele se abria aos eflúvios do livro A Jornada do Escritor, de Christopher Vogler, que analisa a criação de histórias a partir de estruturas míticas. Assim, a jornada dos heróis roqueiros foi montada com base nos desafios à ordem estabelecida, confrontos com a polícia, catalisação de insatisfações políticas, rachas internos, conflitos de garotos que se tornaram homens em plena exposição da mídia. Nesse percurso, tiveram mentores e guardiões, sendo também assombrados pela morte prematura do líder maior, Renato Russo.



Russo, que Vladimir considera “o maior poeta do rock brasileiro”, é o eixo individual mais importante na narrativa de Rock Brasília, mas divide o tempo de tela com integrantes da Legião, Capital e Plebe, bem como respectivos familiares. No fundo, é uma história de famílias o que ali se conta. Em sua maioria filhos de professores, diplomatas e altos servidores públicos, os roqueiros saídos de Brasília tinham um acesso privilegiado à cultura estrangeira – e as influências de Bob Dylan, do Police e do movimento punk ficam patentes. Tinham, por outro lado, a pecha de “filhinhos de papai” para desmentir com atitudes e letras de música. A última cena do filme, puxando bem para o lado emocional, completa o sentido familiar dessa saga.



Para ser um legítimo filme de rock, Rock Brasília precisaria ter mais música e menos falas. Precisaria ter capas de disco fazendo piruetas na tela, fãs se descabelando e uma certa exaltação das emoções em jogo. Mas aí talvez não fosse um filme de Vladimir Carvalho. Não há um interesse específico em celebrar o êxito das bandas. Os relatos da formação, da dissolução e de uma ressurreição superam a crônica dos anos de maior sucesso. Isso fica para outro tipo de filme ou programas de TV. Vladimir, como sempre, sai atrás das histórias humanas que rebatem na política. Sai atrás das memórias que ficam depois que a poeira baixa e a reflexão substitui a dor e a euforia.



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JEAN-PAUL GAULTIER, QUEBRANDO AS REGRAS



CARLOS ALBERTO MATTOS



Dirigido por uma de suas ex-modelos, Farida Khelfa, este doc abre grandes espaços para outras parceiras célebres de Jean-Paul Gaultier. Carla Bruni e Dita Von Teese aparecem entrevistando o estilista, enquanto Madonna enfeita diversos momentos do filme. Nessas relações transparece bastante do diferencial de Gaultier frente a nomes aristocráticos de gerações anteriores, como Cardin, St. Laurent e Valentino. Ao contrário deles, Gaultier é filho do pop, do rock, da TV e do cinema. Nunca pretendeu ser um intelectual da moda. Esteve sempre com o pé no mundo do espetáculo e na atualidade.



O doc é um programa de televisão de 52 minutos, aditivados pela metralhadora oral de Gaultier. Ele reconta velozmente sua carreira, a formação do seu gosto, suas influências e preferências, assim como o romance com o companheiro Francis Menuge, morto pela Aids. Uma entrevista-base, muito material de arquivo, e basta para compor um perfil relativamente superficial. Os “choques sociais” provocados pelos desfiles de JPL passam batidos numa reportagem mais interessada em passar informações concisas que em investigar o sentido desse capítulo da história da moda.



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UMA LONGA VIAGEM



DANIEL SCHENKER WAJNBERG



Depois do excelente Que Bom Te Ver Viva , Lúcia Murat volta a investir num filme assumidamente pessoal. Foca agora na sua trajetória e na de dois de irmãos, Heitor e Miguel, que cresceram influenciados pelo ímpeto libertário dos anos 60. Diferentemente do documentário anterior, no qual Irene Ravache interpretava uma personagem alterego da diretora, agora a própria Lúcia narra o filme em primeira pessoa, sem se valer de uma construção ficcional como biombo transparente.



Lúcia Murat conta que a morte de um dos irmãos, Miguel, motivou-a a fazer o filme. Relembra sua trajetória: militante na luta armada desde os 19 anos, foi presa e torturada em 1971 e depois transferida para a Vila Militar como presa política. Saiu da cadeia em 1974, época “da abertura lenta e gradual”. A cineasta entrelaça a sua jornada com a do irmão, Heitor, que viveu sem amarras palmilhando a Índia e outros cantos do mundo e enveredou pelas drogas, imbuído de uma busca por transcendência.



A figura de Heitor se agiganta na tela. Além da conversa dele com Lúcia atravessar o filme, Caio Blat o interpreta – sem incorrer na ambição de espelhá-lo. A estrutura do filme inevitavelmente pende para Heitor. A jornada de Lúcia fica em segundo plano e a de Miguel, em terceiro – em parte, por evidente decisão da diretora, que optou por não esclarecer as causas da morte dele.



Por mais que a longa viagem do título remeta diretamente à trajetória de Heitor (bem como a extensa troca de cartas, entre 1970 e 1978), essa estrutura causa certa estranheza em relação à proposta inicial lançada pela diretora – como já foi dito, a de destacar os percursos pessoais trilhados por três irmãos herdeiros da década de 60. Mas não faltam pontos interessantes, como a proximidade de Heitor com a loucura. “Houve um momento, nos anos 60, em que enlouquecer tinha um charme”, afirma Lúcia Murat, atentando para a frequente abordagem romântica da loucura.



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UMA ELEIÇÃO AFRICANA: GANA VAI ÀS URNAS



CARLOS ALBERTO MATTOS



Desde que Robert Drew criou, em Primárias (1960), um padrão para documentários de campanha eleitoral, este filme sobre as eleições presidenciais de 2008 em Gana é certamente uma de suas melhores aplicações. Embora contando apenas com duas ou três câmeras, é impressionante a cobertura que o filme faz dos dois candidatos principais, assessores, consultores e estrategistas, em diversas regiões do país durante quase dois meses. O que se vê é um thriller político com muita adrenalina. Não vá ao Google antes de ver o filme. Melhor não saber quem afinal ganhou as eleições para melhor aproveitar a narrativa eletrizante conduzida pelo diretor Jarreth Merz, um conhecido ator de cinema e seriados de TV. Basta dizer que a eleição precisou de três turnos para se definir.



Gana partiu para as urnas disposta a restaurar a imagem da democracia na África. Esteve próxima do desastre, dados os rumos que o processo eleitoral tomou em alguns momentos. É primorosa a forma como o filme nos introduz ao estilo africano de fazer campanha, às contagens de votos realizadas no meio do povo, às apurações finais na “sala forte”, assim como à paixão política do povo nas ruas e ao feeling geral do país. O acesso da equipe é quase total e sem precedentes na região. As imagens são excelentes do ponto de vista de composição e de teor de informação. No fim das contas, tudo converge para um elogio subliminar do grande espetáculo da democracia.



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A ONDA VERDE



CARLOS ALBERTO MATTOS



Quando Ahmadinejad e o clero conservador sufocaram com mão de ferro a rebelião dos jovens verdes contra as fraudes das eleições de 2009, a única fonte de informação confiável eram os blogs, as redes sociais e as imagens de vídeo e celulares contrabandeadas através da internet. Na época, antes que as Google Revolutions derrubassem as ditaduras da Tunísia e do Egito, aquele fluxo caseiro não foi suficiente para deter o escândalo eleitoral e o massacre da oposição em Teerã.



É com esse material que The Green Wave constrói um poderoso libelo sobre o sonho interrompido da juventude e dos progressistas iranianos. Relatos de 15 blogs, além de mensagens do Twitter e do Facebook, inspiraram uma narrativa adaptada à animação. O efeito é muito poderoso, ficando a meio caminho entre o documento sonoro e a reencenação visual. Ao contrário do premiado Valsa com Bashir, as cenas animadas não predominam no filme, mas apenas fornecem um pathos dramático ao que é descrito em palavras, combinando-se com materiais filmados na rua e depoimentos de ativistas, jornalistas e reformistas.



Diretor, equipe e entrevistados são iranianos expatriados, sobretudo na Alemanha, onde o filme foi produzido. Todos eles sabem que, depois desse doc, tão cedo não poderão voltar ao Irã. Mas o tom das palavras que ouvimos no filme não é só de revolta, terror e desânimo com o esmagamento da Onda Verde. Abatida mas persistente, resta uma voz de esperança pela “reconstrução da nossa nação”.



Emocionante como peça histórica, o filme de Ali Samadi Ahadi testemunha também a importância que os blogs e as redes sociais vão assumindo na realização de documentários. Eles “aquecem” os dossiês colocando a experiência humana à frente das visões profissionais do jornalismo.



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SILVIO PARA SEMPRE



NELSON HOINEFF



A extraordinária complexidade do fenômeno Silvio Berlusconi permitiria que dezenas de documentários fossem feitos sobre ele sem que se esgotasse o assunto. Há o Berlusconi self-made man; o Berlusconi magnata; o Berlusconi controlador de grande parte da mídia – em particular da televisão – italiana; o Berlusconi homem público, um dos políticos mais votados – e mais odiados – de seu país; e, last but not least, o Berlusconi mulherengo, protagonista de escândalos frequentes no noticiário.



O caminho encontrado por Roberto Faenza para retratá-lo em Silvio para Sempre não deixa de ser original. O diretor define seu filme como “uma autobiografia não autorizada”. Isso acontece porque todo o documentário é amparado sobre frases e ações do próprio Berlusconi, em momentos diferentes de sua trajetória. Algumas frases estão literalmente na boca dele. Outras são reproduzidas, de modo a não alterar o que foi dito. Há poucos depoimentos e estes, quando ocorrem, fazem também parte do arquivo coletado. Cada um dos Berlusconi tem uma extraordinária riqueza própria; entrelaçados, parecem fruto de um delírio.



É uma grande quantidade de material, fruto sem dúvida de uma pesquisa intensa – e de uma provável dificuldade de obtenção das imagens e dos direitos de exibi-las. São imagens de valor histórico, que parecem bem organizadas numa “autobiografia” que simplesmente é exposta cronologicamente. A opção pela cronologia, se simplifica as coisas, dificulta sua contextualização, mas não é com isso que o diretor (trabalhando ao lado de Fillipo Macelloni, seu ator e assistente de Dario Argento em Síndrome Mortal, de 1996) está preocupado. Silvio para Sempre é uma espécie de exposição de motivos para detonar o biografado, como convém à época Michael Moore. Esse é uma questão a ser pensada. Essa “biografia não autorizada” é feita como se fosse uma peça de propaganda – irreverente mas também irreflexiva e de limitações criativas como essas peças costumam ser.



Fica por conta de Dario Argento, aliás, um dos mais deliciosos pequenos momentos do filme, quando a primeira-dama Verônica Lario é vista sendo retalhada no magnífico Tenebre (1892), do mestre do terror explicito italiano. Em outra sequência, Verônica se diz retalhada de outra maneira. É um dos momentos em que os escândalos sexuais de Berlusconi são levados à tona. A relação de Silvio com as mulheres, e o sexo de uma forma geral, parece saída de uma ficção barata. Explicando-se por utilizar os serviços de prostituição de menores, o primeiro-ministro se defende: “é melhor gostar de belas mulheres do que ser gay”.



Se um mérito a classe política tem, é a de ser auto-explicativa. De Idi Amim Dada a Waldomiro dos Santos Pereira, o político não precisa da ajuda de ninguém para exibir a sua face mais grotesca. O documentarista só precisa ligar a câmera. Por ali aparecerão também as nuances. O vetor carismático de Silvio, por exemplo – expresso não apenas em discursos políticos, mas através de suas performances como cantor e entertainer em shows particulares – é exibido aqui de forma tão rica que muitas vezes parecemos estar diante de um trabalho enaltecendo as suas virtudes.



Não é bem assim. Faenza, 68 anos, autor de muitos filmes de ficção, alguns lançados no Brasil, como A Ordem é Matar (com Harvey Keitel, 1983) e Jornada da Alma (2002), tem outros documentários políticos em sua filmografia, inclusive Forza Itália!, de 1978, expressão que anos mais tarde seria utilizada por Berlusconi para sua campanha à chefia do governo.



Silvio para Sempre não é desse modo um documentário isento, muito menos um estudo em profundidade sobre o controvertido primeiro-ministro. É um comentário sobre ele, que parece a introdução para outros documentários que poderiam ser muito mais completos, mais reflexivos e melhores. É efêmero como uma peça de propaganda política, com a qual ele tanto se parece. Mas não se pode esperar que cada tycoon da mídia tenha em cada biografia o seu Rosebud.



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NOSTALGIA DA LUZ



LUIZ FERNANDO GALLEGO



Em ritmo pausado, o espectador é apresentado a diferentes atividades que se desenvolvem no deserto de Atacama, Chile: há observatórios para astrônomos explorarem estrelas que podem estar sendo vistas milhares de anos depois de sua extinção (ali, tudo é mais visível pela transparência do céu no local); arqueólogos pesquisam múmias de antes da descoberta das Américas, muito preservadas devido à extrema baixa umidade da região; e um grupo de novas “antígonas” tentam encontrar restos mortais de “desaparecidos” durante a sangrenta ditadura de Pinochet que, neste mesmo deserto, manteve um campo de concentração de presos políticos e espalhou os corpos dos torturados e assassinados.



Dos “corpos celestes” aos corpos humanos, o que “costura” a reflexão deste admirável documentário (por incrível que pareça, poético), de Patrício Guzman, é a noção de tempo: o presente só existe como constructo mental interiorizado, dizem seus entrevistados, astrônomos e arqueólogos; o que existe mesmo é o passado: se o das estrelas e o das múmias é muito bem pesquisado, o passado mais recente do Chile está bloqueado, recalcado, denegado.



Mas as mães, viúvas e irmãs dos “desaparecidos” não desistem e estão lá, pateticamente arranhando a terra seca com suas pás, em busca de fragmentos ósseos: é preciso enterrar Polinyces para desenterrar o passado forcluído; é preciso manter a memória, pois, como é dito no filme, a memória tem força de gravidade: ela atrái. Quem tem memória consegue viver o fugidio presente; quem não tem memória não consegue viver.

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