CARRIÈRE 250 METROS
por CARLOS ALBERTO MATTOS
1.4.2012
Cinéfilos, não esperem grandes revelações do doc Carrière 250 Metros. Afora um encontro muito simpático com Milos Forman e alguns recuerdos de Buñuel, não há muitas reminiscências cinematográficas nessa viagem-memória do roteirista de tantas obras-primas. Em compensação, temos insights das múltiplas ocupações de Jean-Claude Carrière: o homem de teatro que fez parceria indestrutível com Peter Brook, o coletor de histórias que se compara a um coletor de borboletas, o viajante apaixonado que se empanturra da cultura de cada lugar, o filósofo dado a fábulas e narrativas mitológicas.
O filme de Juan Carlos Rulfo, filho do escritor mexicano Juan Rulfo, foi escrito por Carrière e é narrado por ele em primeira pessoa – ora em francês, ora em espanhol ou em inglês. Carrega, assim, a marca de um escritor que se deixa levar pela imaginação. O filme flutua com ele entre cenas familiares (sua atual esposa é iraniana), encontros com velhos amigos, visitas a locais de importância afetiva, conversas de rua e considerações nascidas do acaso. Vai à França, Espanha, México, EUA e Índia. Em filigrana podemos perceber um esboço de autobiografia, mas nada muito definido. Como as repetidas tentativas de Carrière de desenhar um Ganesha na areia da praia lambida pelas ondas, esse doc também se quer como conversa provisória, informal. E deliciosa.
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TOKIORI - DOBRAS DO TEMPO
por CARLOS ALBERTO MATTOS
29.3.2012
Uma luz bonita, um ritmo sereno, imagens compostas com cuidado e um sensível desenho sonoro acolhem o espectador de Tokiori – Dobras do Tempo. Tudo muito condizente com a abordagem que Paulo Pastorelo faz dessas seis famílias de imigrantes japoneses do bairro rural de Graminha, perto de Marília (SP). Pastorelo, ele próprio um filho de imigrantes espanhóis, conhece de ouvido a “música” desses expatriados. A convivência com a pequena colônia japonesa na infância é que o levou a coletar fragmentos dessa história.
São histórias de separação, retorno, informações vagas e presentes indecifráveis cruzando os oceanos entre parentes distantes. O filme vai e vem entre o Japão e São Paulo, colhendo lembranças, cartas, filmes domésticos e imagens de arquivo. No final das contas, em função de casamentos cruzados, as seis famílias (muitas originárias da região de Fukushima) acabaram virando quase que uma só.
Não é muito fácil para o espectador se situar em meio a tantos laços, datas e referências. Uma bela instalação é montada com fotos impressas em tecidos, que são dispostos num grande varal. Isso, que poderia ser um dispositivo de identificação para remeter a cada história, infelizmente fica apenas como recurso supérfluo, sem cumprir seu potencial de evocação. O que apreendemos é um sentido um tanto genérico dos dilemas da imigração. São poucos os momentos em que algo de mais sólido emerge diante da câmera – como a vergonha do velho Takeo, ainda hoje, pela derrota do Japão na II Guerra. Mais que pela documentação, Tokiori impõe-se pela tonalidade em que trata o assunto.
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O HOMEM QUE NINGUÉM CONHECEU
por CARLOS ALBERTO MATTOS
28.3.2012
O que você faria se tivesse um pai acusado de genocídio, que viveu sempre na sombra dos segredos de estado e que você nunca viu expressar um sentimento? Talvez fizesse um documentário. Foi o que fez Carl Colby em O Homem que Ninguém Conheceu.
Seu pai, William Egan (Bill) Colby, foi agente especial da CIA na Itália do pós-II Guerra e no Vietnã, e chegou a presidente da agência no governo Nixon, cargo que passaria mais adiante para George Bush pai. Durante a guerra do Vietnã foi responsável pela implantação do Programa Phoenix, que ceifou cerca de 30.000 vidas como forma de aterrorizar os vietcongues. Até mesmo nos EUA ele foi criticado. Mais tarde, foi interrogado pelo Congresso por causa dos famosos assassinatos políticos (e tentativas) perpetrados pela CIA. Ou seja, um falcão negro americano por trás de uma fisionomia impassível de burocrata católico.
No filme, Carl pergunta-se pelo pai e ouve respostas da mãe, de jornalistas e políticos. Um misto de evocação familiar e arrazoado histórico se desenrola, calcado em massivo – e às vezes impactante – material de arquivo. As cenas do Vietnã são particularmente atrozes. Mas todo esse aparato não parece estar a serviço de uma verdadeira investigação sobre o caráter de Bill Colby. Carl faz um bom levantamento histórico, mas falha em desvendar a personalidade do pai. Ou talvez não fosse essa mesmo sua intenção, e aí o discurso em primeira pessoa serve apenas para “vender” melhor um projeto tradicional e superficial.
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CORAÇÃO DO BRASIL
por CARLOS ALBERTO MATTOS
28.3.2012
Navegar por diversos dias em pequenos barcos e caminhar 18 km numa picada no meio da floresta não é tarefa para qualquer viajante. Muito menos para um homem de 80 anos, andando de muletas. Mas foi isso o que Sérgio Vahia de Abreu se dispôs a fazer para reeditar uma aventura vivida 50 anos atrás. Em 1958, ele participou da expedição dos irmãos Villas-Bôas que demarcou o centro geográfico do Brasil, em terras indígenas do Mato Grosso. Em 2008, patrocinou uma nova expedição, que incorporaria pelo caminho dois outros expedicionários de 1958, o documentarista inglês Adrian Cowell, morto no ano passado, e o cacique Raoni.
Esses três senhores e seus reencontros emocionados são a maior graça e riqueza de Coração do Brasil, o filme dirigido por Daniel Solá Santiago. A expedição é narrada através de muitos mapas, muitas informações históricas difíceis de assimilar completamente, e uma narração que se alterna entre os relatos das viagens de 1958 e de 2008. É interessante comparar esse filme com o mais coeso e objetivo Paralelo 10, de Silvio Da-Rin, que também acompanha uma viagem por territórios indígenas e está na competição do festival.
Em Coração do Brasil, alguns dados potencialmente interessantes acabam submergindo na linearidade um tanto monótona da viagem. Um maior sentido de resistência por parte dos índios, se comparado com o tempo dos Villas Bôas, é algo que se insinua mas não consegue ser aproveitado dramaticamente. Da mesma forma, a idade avançada dos viajantes é motivo de duas ou três referências passageiras, mas não parece interessar muito ao olhar do documentarista.
Uma curiosidade, no entanto, se impõe: enquanto em 1958 a árdua chegada ao centro geográfico do país foi empreitada de anos, conduzida por instâncias governamentais, a expedição recente foi empreendimento pessoal, uma espécie de reunião de amigos para celebrar um feito do passado. Com coisas que não existiam há 50 anos, como GPS, câmeras de vídeo e o cansaço nos corpos batidos pelo tempo.
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COM AMOR, CAROLYN
por CARLOS ALBERTO MATTOS
27.3.2012
Numa cena de Com Amor, Carolyn, a octogenária Carolyn Cassady mostra alguns lençóis onde teria dormido com Neal Cassady, seu marido, e Jack Kerouac, seu amante. “Se pudesse provar isso, venderia esses lençóis ao Johnny Depp por milhares e milhares de libras”, comenta. A fala condensa bem o quadro flagrado pelas jovens documentaristas suecas Maria Ramström e Malin Korkeasalo. Solitária, Carolyn vive basicamente das memórias de sua convivência íntima por 20 anos com os ícones da geração Beat. Daí tenta, não sem certa relutância, tirar seu sustento, no que é ajudada pelo filho, John Allen Cassady.
Quando o filme começa, Carolyn já se mostra uma mulher sem ilusões. Ela sabe que só está sendo objeto de atenção por ter tido os homens que teve, não por ser também uma escritora. Seu único livro, aliás, é Off the Road, um relato do seu ponto de vista da saga ficcionalizada em On the Road. Ou seja, é uma mulher ocupada por dois homens mortos há muito tempo, e que não conseguiu refazer sua vida amorosa. O atual revival dos beats é uma oportunidade para melhorar um pouquinho o baixo saldo bancário e colocar alguns pontos nos “is” – ou seja, dizer que a história gloriosa de Neal e Jack na verdade é uma história de autodestruição e desperdício de talento.
As diretoras transmitem nas imagens e sons o grau de intimidade que conseguiram estabelecer com a personagem. Não sei se algumas confissões envolvendo sexo e família já haviam sido antecipadas no livro, mas de qualquer forma ouvi-las de viva voz surte um efeito poderoso. No fim das contas, esse retrato de uma mulher forte e determinada fecha certos contornos da história maior que a envolveu e selou seu futuro. Como aperitivo para On the Road, de Walter Salles, é um dry martini no capricho.
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DINO CAZZOLA - UMA FILMOGRAFIA DE BRASÍLIA
por CARLOS ALBERTO MATTOS
26.3.2012
Nas sequências iniciais de Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, vemos latas serem abertas para revelarem filmes em franca decomposição, alguns mesmo virando pasta de celuloide. Ouve-se a voz do técnico Francisco Sérgio Moreira repetindo: “lixo, lixo, lixo...”. Era o estado em que se encontrava a maior parte do acervo do produtor cinematográfico Dino Cazzola, sem contar o que já fora destruído pela censura e a incúria das redes de TV. Cazzola filmou Brasília de sua gestação até meados dos anos 1970. O filme de Andrea Prates e Cleisson Vidal (autores do essencial Missionários, de 2005) procura dar uma ideia e um sentido ao material restante, que não chega a 30% do que teria sido filmado.
O filme se organiza de maneira cronológica, como a recontar a história de Brasília através das cenas rodadas por Cazzola. Trata-se de uma opção problemática, já que o material não permite cobrir o período a não ser por saltos largos e sem muita conexão. Além disso, enquanto na maior parte do tempo as cenas de documentários e reportagens para a TV assumem corretamente o protagonismo como enunciadoras dos relatos, há trechos em que o artista plástico Xico Chaves parece ocupar o papel de narrador, fazendo com que as imagens se submetam a suas memórias, ligadas principalmente à resistência ao regime militar. Nesse desvio de prioridades, o filme corre o risco de se descaracterizar.
Da mesma forma, são discutíveis os recursos de edição para sublinhar o que não necessita mais ser sublinhado, como o golpe de 1964 e a decretação do AI-5. O epidódio da invasão da UnB é ilustrado com matérias de jornais e fotografias, o que reforça a impressão de que o acervo de Dino Cazzola se compunha basicamente de cenas oficiais – ou, como chamaria Paulo Emilio Salles Gomes – rituais do poder. Os registros de episódios desagradáveis para a ditadura, conta-se, teriam sido censurados e inutilizados pela TV Brasília.
O aspecto às vezes propagandístico da produção de Dino Cazzola talvez diga muito sobre seu lugar de imigrante agradecido ao país que o acolheu desde que ele se associou aos pracinhas na Itália durante a II Guerra. Sua história pessoal, se não fosse apenas ventilada, poderia jogar mais luz sobre a natureza dos seus filmes. O resgate está feito, mas ainda carece examinar com maior profundidade aquelas imagens.
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CRAZY HORSE
por CARLOS ALBERTO MATTOS
26.3.2012
Frederick Wiseman tornou-se um mestre por observar o cotidiano de várias instituições americanas e, com isso, abrir janelas para o funcionamento da sociedade. Assim foi com escolas, delegacias, manicômio, forum judiciário, jardim zoológico, indústria da moda, academia de ginástica etc. Sua estratégia de não intervenção, supostamente neutra, catalisa toda a nossa atenção para os mecanismos e relações humanas observados, gerando uma impressão de testemunho direto. Vez por outra, Wiseman desloca seu olho – e sobretudo seus ouvidos, já que ele costuma captar o som de seus filmes – para Paris. Crazy Horse é o terceiro tomo de um trilogia parisiense que inclui La Comédie Française (1996) e La Danse (2009, sobre o Balé da Ópera de Paris).
Não conheço o primeiro, mas La Danse e Crazy Horse têm como alvo mais o espetáculo que o funcionamento da instituição. Essa mudança de ótica se intensifica em Crazy Horse, levando a uma das maiores decepções que já tive com um trabalho de Wiseman.
A começar pelo objeto em si. O Crazy Horse, com seus shows de strip tease e insinuações fetichistas e sadomasô, é um dos entretenimentos mais decadentes e ultrapassados que existem na Europa. Atende principalmente a turistas pequeno-burgueses, para quem ver mulheres “chiques” e seminuas dançando entre luzes coloridas ainda é um programa “ousado”. O conceito de mulher-objeto é celebrado em bundas iluminadas, meneios pseudoeróticos e sugestões de animalização dos corpos femininos.
Wiseman parece levar toda aquela vulgaridade a sério, submetendo-nos a longas performances aborrecidas. Quando vai para os bastidores, sucumbe a conversas sem rumo e claramente forjadas para a câmera. Ou então a falsas entrevistas para outros veículos, em que os responsáveis pela casa e o espetáculo se desdobram em autoelogios constrangedores. Tudo bem que o Crazy Horse seja uma “instituição” francesa em certo sentido, mas a falta de uma perspectiva crítica dá a entender que Wiseman estava colado àquela imagem ultrakitsch do erotismo comercial. Ou, quem sabe, comprando gata por lebre. Alguns poucos momentos mais reveladores, como a escolha das fotos dos clientes e das candidatas no teste, estão longe de justificar a escolha desse assunto nem muito menos um enfoque que se confunde com má publicidade.
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VIVAM OS ANTÍPODAS!
por CARLOS ALBERTO MATTOS
26.3.2012
Para fazer Vivam os Antípodas!, Victor Kossakovsky dividiu o mundo em quatro quadrantes e foi filmar em oito locais antípodas que tivessem alguma população. Partiu um pouco assim como Cao Guimarães e Pablo Lobato partiram para as cidades mineiras filmadas em Acidente. Buscava um ponto fixo de onde pudesse retirar uma síntese poética do lugar. E daí construiu relações por contraste ou semelhança com os pares do outro lado do planeta.
Depois de curtir a suíte audiovisual resultante, o espectador pode se perguntar a que levou o filme. Talvez não leve mesmo a nenhuma conclusão sobre a vida na Terra, como era o caso da Trilogia katsi de Goddfrey Reggio, mas pelo menos leva a alguns lugares impressionantes. E é bonito como poucos documentários recentes. O virtuosismo fotográfico de Kossakovsky (ele mesmo faz a câmera e a edição) combina-se com o desenho sonoro muito criativo de Marc Lizier e a música de Alexander Popov para proporcionar um deleite praticamente ininterrupto.
A proposta é mais formalista do que, por exemplo, a do catalão Carlos Casas com sua Trilogia End, rodada em locais extremos do mundo. Kossakovsky tem um interesse apenas superficial pelos elementos humanos que escolhe, como se eles fossem mais um elemento da paisagem. Os fragmentos de conversas e ações que percebemos – à exceção talvez dos irmãos argentinos que vivem isolados em Entre Rios – não chegam para caracterizar personagens. O foco do diretor está na ideia geográfico-poética (como bem disse Vitor Souza Lima) de que uma linha invisível uniria os antípodas. Kossakovsky brinca com os eixos – do planeta, da câmera e do nosso olhar – jogando com reflexos (reais e virtuais), imagens de ponta-cabeça, pessoas plantando bananeira etc.
O som também acompanha esse dispositivo. Uma música havaiana parece animar um baile em Botswana, um coral russo empolga montanhas e lagos da Patagônia chilena.
Dois momentos me despertaram uma curiosidade especial: o plano de um leão bebendo água visto de dentro do lago (provavelmente filmado com fundo de vidro); e o longo travelling pelos hutongs (bairros populares) de Xangai, talvez a primeira influência que o documentário absorve do Google Street View.
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DUCH, O MESTRE DAS FORJAS DO INFERNO
por CARLOS ALBERTO MATTOS
25.3.2012
Em Duch, O Mestre das Forjas do Inferno, o documentarista cambojano Rithy Panh dá prosseguimento a seu acerto de contas com um passado que lhe custou uma tragédia. Aos 11 anos de idade, Panh viu seus pais e irmãs serem mortos pela polícia política e foi enviado a um campo de reeducação no interior. Em 2003, já consagrado como documentarista, fez o antológico S21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho, em que torturados e torturadores se reuniam para recontar os massacres da ditadura que ensanguentou a imagem do Camboja nos anos 1970 (leia mais aqui.
As imagens daquele filme voltam em Duch para serem confrontadas com o depoimento do carrasco Kaing Guek Eav, mais conhecido como Duch, o comandante do genocídio no S21. Só nas últimas cenas o filme revela a condição atual de Duch, mas a sinopse já informa que ele foi o primeiro oficial do Khmer Vermelho a ser condenado por uma corte internacional. Diante da câmera de Rithy Panh, ele desliza entre a assunção da culpa, a alegação de ter servido fielmente a uma ideologia e um tardio e vago arrependimento cristão. Suas reminiscências carregam um tom confessional de quem não espera mais o perdão. De resto, é um monstro capaz de racionalizar até a morte da própria mãe, ao mesmo tempo que o olhar esgazeado, os risos estranhos e as sinistras citações em francês dão conta de um homem frio e impiedoso.
Com seu habitual rigor, Panh usa rápidos flashes de arquivo dos tempos do Khmer como aparições do mundo dos mortos para assombrar o presente. O carrasco manipula e comenta documentos, slogans e fotos com impecável objetividade, enquanto admite ter se esforçado muito para esquecer os crimes que cometeu. Uma certa monotonia funciona como mote para essa minuciosa descrição das entranhas de um período de horror absoluto.
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1/2 REVOLUÇÃO
por CARLOS ALBERTO MATTOS
25.3.2012
Muitas imagens correram o mundo simultaneamente e logo após a revolução egípcia do ano passado. O que ½ Revolução oferece de especial é basicamente a existência de um ponto de vista e de uma dramaturgia. Trata-se do testemunho de um grupo de amigos, alguns estrangeiros de origem árabe e residentes no Cairo, dos fatos ocorrido entre 25 de janeiro e 4 de fevereiro de 2011. Os protestos explodiam na Praça Tahrir, e esses jovens saíam às ruas com pequenas câmeras, como tantos outros. Filmavam as manifestações, os ataques da polícia, as nuvens de gás lacrimogêneo, os mortos e feridos, a trégua para as orações. Como tantos, eles também pediam pelo fim do regime.
A diferença é que o cinema estava nas veias deles. Por isso filmavam-se uns aos outros, as buscas desesperadas por notícias, as discussões caseiras a respeito de cada novo momento de uma revolta que começava a se transformar em guerra civil sem desfecho à vista. O que não conseguiam filmar, contavam uns aos outros diante da câmera. De alguma maneira, este é um filme sobre a revolução e como sobreviver dentro dela – desde comprar comida e leite para o bebê até safar a própria pele quando eles descobrem que moram numa rua infestada de gente pró-Hosni Mubarak.
O tratamento final das imagens e sons, numa reviravolta curiosa, tem algo dos filmes de ficção que emulam o estilo dos documentários de guerrilha urbana. A sensação é de estarmos vendo um filme de Roger Spottiswoode (Sob Fogo Cerrado) ou Paul Greengrass (Domingo Sangrento). Vivemos de fato uma era de hibridismo absoluto, em que os docs imitam as ficções que imitam os docs.
O filme assinado por Omar Shargawi e Karim El Hakim nos faz mergulhar no medo, na angústia e na esperança daquele pequeno grupo. Não os faz de heróis, como alguns críticos andaram apontando. Muito pelo contrário, o filme vai até o limite de sua tenacidade e desejo de sobrevivência. O título ½ Revolution sublinha a sensação que se seguiu à derrubada de Mubarak e à tomada do poder pelos militares: A Praça Tahrir protagonizou uma revolução ou apenas uma troca de guarda?
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AUGUSTO BOAL E O TEATRO DO OPRIMIDO
por CARLOS ALBERTO MATTOS
25.3.2012
Pena que só depois de morto Augusto Boal ganhou um documentário capaz de sintetizar o seu trabalho seminal para a democratização do teatro no Brasil e no mundo. Vê-lo descrever suas experiências em Augusto Boal e o Teatro do Oprimido é talvez a melhor forma de apreendê-las, já que ele é sempre tão objetivo e convincente. O T.O., afinal, viveu sempre da ação e da reflexão, inseparáveis em sua proposta.
Zelito Viana e a produtora Vera de Paula pretendiam viajar com Boal registrando seus workshops em diversos países. Não conseguiram financiar o projeto, mas levaram o filme adiante assim mesmo. Obtiveram um material de arquivo fascinante de atuações do T.O. no Brasil, na Índia e em Moçambique. De resto, é o carisma de Boal que dá as cartas diante da câmera. Num dado momento, o próprio Zelito dá o seu depoimento, o que soa como se estivesse “assinando” o filme. Isso se justificaria melhor se estivesse claro que eles eram, de fato, velhos amigos.
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TROPICÁLIA
por LUIZ FERNANDO GALLEGO
25.03-2012
Em uma passagem de Tropicália, filme de Marcelo Machado que abriu o 17º “Tudo é Verdade” em São Paulo, ouvimos Caetano Veloso comentar que seu disco que continha a canção que dá título ao filme estava pronto para ser lançado em dezembro de 1967, e em dezembro de ’68, ele e Gilberto Gil já estavam presos. Essa delimitação temporal retrata bem o quanto foi curto o período do que poderia ser considerado como efetivamente o do “movimento tropicalista” em termos musicais. E o quanto foi intensa essa breve duração.
É verdade que, embora tenha ficado mais associado com a face musical do dito “tropicalismo”, suas raízes estéticas teriam origem em outras manifestações artísticas. É ainda Caetano que assume o quanto foi instigante para suas composições seguintes ter visto Terra em Transe, de Glauber Rocha, lançado em maio de 1967. Seu disco de estreia, “Domingo”, compartilhado com Gal Costa, também era desse mesmo ano, mas ainda ligado a um formato bastante bossanovista, sendo que no texto de contracapa Caetano anunciava interesse por “caminhos diferentes”. A encenação de “O Rei da Vela”, dirigida por José Celso Martinez Correa teria sido coincidente com os “caminhos diferentes” que Caetano exibiria no disco seguinte.
Essas duas manifestações seminais do Tropicalismo estão mencionadas no filme de Machado, assim como não deixa de ser citada a “Tropicália” mais anterior de Hélio Oiticica. Mas o filme é mesmo centrado nas músicas da época. Para ser mais exato, na trajetória de Caetano e Gil entre 1967 e 1972. Se esta opção pode ser passível de crítica para quem esperava um filme sobre o tropicalismo como um todo que também se manifestava no cinema, teatro e artes plásticas, não se pode negar que na esfera musical os nomes de Gil e Caetano são emblemáticos, justificando-se de algum modo a seleção feita pelo diretor e co-roteirista.
Curiosamente, o filme abre com Nara Leão cantando “A Estrada e o Violeiro” com o autor da música, Sidney Miller, que deixaria clara sua discordância da pretensão universalista da Tropicália no disco “Do Guarany ao Guaraná”. A cantora é pouco associada aos gritos da Gal Costa tropicalista ou às guitarras dos Mutantes, mais lembrados quando se pensa no movimento. Mas ela está no disco-manifesto “Tropicália ou Panis et Circenses” cantando “Lindonéia”, composta por sua sugestão e que também fez parte de seu LP de ’68 que trazia mais duas composições tropicalistas. Mas no festival de ’67 em que Caetano e Gil usaram chocantes (para a época) guitarras elétricas, Nara estava cantando uma letra (que seria premiada) cheia de metáforas de acordo com o ideário dominante na música brasileira que vinha dominando o gosto de um público mais informado. Essas metáforas repetidas anunciavam um “novo dia” (ou caminho, como o da ‘estrada’ que Nara havia cantado) - e que chegariam para mudar a face política do Brasil sob a ditadura militar (ainda pré-AI-5). O filme parece querer dizer que a dita “musa” da Bossa Nova - que alguns anos antes havia surpreendido ao lançar seu primeiro disco com canções de protesto e de compositores de samba que estavam mais ou menos esquecidos (Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti) – seria o “elo de ligação” entre a chamada M.P.B pós-Bossa Nova e a Tropicália.
Além dela, não deixam de ser mencionados ou aparecer em entrevistas letristas como Torquato Neto e Capinam e, com direito a um pouco mais de tempo, Tom Zé, Gal e Mutantes. Mas Machado quer mesmo mostrar como a Tropicália de Gil e Caetano foi mal-entendida pelos que estavam adaptados às canções de Edu Lobo com Elis Regina, por exemplo. Ou a tudo que soava como “de protesto” político (às vezes mais modismo do que um engajamento efetivo). Mas Caetano e Gil é que foram os primeiros perseguidos. Deixa-se de lado que, mesmo sem um exílio tão forçado pelos militares, pouco tempo depois também ficariam fora do Brasil durante um bom tempo – e por se sentirem ameaçados - nomes como Chico Buarque, a própria Nara e Geraldo Vandré. Esta seria outra história que Machado não está contando e é bem interessante lembrar que, mesmo sem uma explicitação política óbvia, as canções (e atitudes) tropicalistas incomodaram mais precocemente a ditadura do que compositores e letristas formalmente menos vanguardistas, ainda que mais evidentemente “engajados” - como se dizia então.
Afinal, 87 minutos representam pouco tempo para contar a história real que o filme pretendeu contar, e cabe destacarmos o risco de pretender ficar mais preso a imagens e depoimentos do período do que em reflexões atuais dos personagens que viveram a aventura tropicalista. Nesse aspecto, Tropicália se inscreve não apenas como mais um importante documentário brasileiro que escolhe a MPB como tema, podendo vir a ser atraente para o público que curtiu Uma Noite em 67 e ainda está prestigiando A Música segundo Tom Jobim. Mas também fica como destaque a tentativa de abordar seu assunto com menos didatismo - sem deixar de ser informativo em passagens menos conhecidas como o festival da Ilha de Wight em que os baianos estiveram. E não dá para não se emocionar quando na volta ao Brasil Gil lança “Back in Bahia” e Caetano “It’s a Long Way”.
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O CORDELISTA E OS ARQUITETOS
por CARLOS ALBERTO MATTOS
25.3.2012
São relações que a gente só estabelece mesmo no âmbito de um festival como esse. Fora daqui, não faria o menor sentido. Mas, exibidos na mesma sala em sessões consecutivas, Cuíca de Santo Amaro e Os Irmãos Roberto acabam chamando atenção para as contaminações diversas que afetam a construção de um documentário.
Ambos tratam de personagens razoavelmente célebres, mas que não gozam da repercussão mais ampla de seus pares. O cordelista Jorge Gomes, vulgo Cuíca de Santo Amaro, foi um cronista social da Bahia nas décadas de 1940 a 60, um empreendedor de si mesmo que ajudou a derrubar e eleger políticos, viveu da versificação de escândalos e do fruto de pequenas chantagens. Um “canalha modesto”, que, no dizer de Millôr Fernandes, apenas ecoou em escala miúda o comportamento da grande mídia. Já os irmãos Marcelo, Milton e Maurício Roberto foram expoentes um pouco menos conhecidos da arquitetura modernista carioca, responsáveis por prédios inovadores como a sede da ABI, o aeroporto Santos Dumont e os edifícios Marquês de Herval e Julio de Barros Barreto (junto à Universidade Santa Úrsula).
Cada um a sua maneira, os filmes procuram jogar luz sobre a atuação desses artistas, sem muita ênfase na sua vida pessoal. Os Irmãos Roberto, aliás, deixa esse aspecto completamente de fora. Os diretores Ivana Mendes e Tiago Arakilian concentram-se na discussão da obra do escritório MMM Roberto, capaz de tratar edifícios residenciais com requintes artísticos e atenção especial para o contexto urbano em que eles se inseriam. Algo muito diferente da arquitetura pretensamente luxuosa e indiferenciada que hoje prevalece. O que temos, então, é uma espécie de seminário de arquitetos e professores de arquitetura, ilustrado por descrições in loco de algumas dessas obras fundamentais. Uma apresentação, portanto, bastante racional e bem-comportada do assunto, com imagens enquadradas classicamente e alguma dificuldade na hora de se mover mais livremente pelos ambientes. A edição procura construir uma linha retórica sólida e única a partir dos vários depoimentos, realçando os pontos de continuidade e simetria. Ou seja, um doc que se pretende peça “arquitetônica” bem acabada e vistosa, inteligente e bem articulada. Como as construções que enfoca.
Cuíca de Santo Amaro, por sua vez, deixa-se um pouco contaminar pela verve baiana do personagem e dos demais “personagens” que falam sobre ele. A intenção dos diretores Joel de Almeida e Josias Pires, no fundo, não é muito diferente: trata-se de arquitetar um perfil tangível do poeta que se autodenominava “O Tal!” – assim mesmo, com ponto de exclamação. Há mesmo a necessidade de inscrevê-lo na história da cultura como sucessor de Gregório de Mattos e precursor do Tropicalismo. A diferença está no material, e isso vai afetar a relação que o espectador estabelece com o filme. Se em Irmãos Roberto, a gente ouve e tende a respeitar o que ouve, em Cuíca de Santo Amaro a gente ouve, duvida, ri e partilha a picardia.
Aparentemente muito distintos, mas com semelhanças subterrâneas, os dois filmes combinam o resgate de personalidades colocadas em segundo plano com denúncias de um estado de coisas (a arquitetura contemporânea, o jornalismo venal) e um grande desejo de mostrar seus personagens na moldura do seu tempo.
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TONIA E SEUS FILHOS
por CARLOS ALBERTO MATTOS
24.3.2012
Os 57 minutos de Tonia e seus Filhos se passam em torno de uma mesa. Pela iluminação e a gravidade das fisionomias, poderia ser uma mesa espírita. Diante do diretor Marcel Lozinski, dois irmãos confrontam-se com as memórias de sua mãe nos anos 1940, quando ela esteve presa por suposta colaboração com espiões americanos na Polônia. Não há espíritos, logicamente, mas fantasmas documentais que nos chegam através da leitura de cartas, relatórios de confissão e de tortura, além de umas poucas fotos e trechos de um filme inacabado. Há uma tensão no ar, pois Marcel (o personagem tem o mesmo nome do cineasta) desconhecia boa parte do que ocorrera com sua mãe. Chega a duvidar de que certos escritos sejam mesmo dela. A irmã, ligeiramente mais velha, o poupara das piores partes, ou talvez escondera por razões que o filme aos poucos vai descortinar.
Esse psicodrama familiar se desenrola com total sobriedade, apesar de os closes revelarem um mundo de emoções e algumas lágrimas. Em certos momentos, a acareação dos irmãos sugere uma nova sessão de tortura psicológica. Se o filme ganhou a competição nacional do Festival de Cracóvia é porque tem um apelo especial para o público polonês e a história do país. Entre nós, parece excessivamente austero e um tanto cifrado. Mais que tudo, é o nome do mestre Lozinski que, a meu ver, justifica sua seleção.
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JORGE MAUTNER - O FILHO DO HOLOCAUSTO
por CARLOS ALBERTO MATTOS
24.3.2012
A abertura carioca do festival ontem (sexta) foi em total clima de festa. Amir Labaki, Jorge Mautner, o produtor Paulo Mendonça (Canal Brasil) e Heitor D’Alincourt, um dos diretores do filme, receberam uma plateia lotada (duas salas) para ver Jorge Mautner – O Filho do Holocausto. Ao final da sessão, não havia lugar para tantos sorrisos.
O filme de Pedro Bial e D’Alincourt é de uma grande felicidade em captar o espírito performático de Mautner e abrir veredas para melhor compreendê-lo. Mautner é um tesouro semi-escondido na cultura brasileira: poeta, músico, pintor, filósofo, performer. Quem o conhece de fato além dos iniciados? Sem didatismo nem camisa-de-força biográfica, o doc faz esse serviço com graça e competência.
É um doc-show assumido. Nos muitos números musicais em que Mautner se apresenta com uma banda afiadíssima e participações de Caetano e Gil, assim como nas conversas gravadas numa estranha sala cheia de poltronas e móbiles – onde as pessoas falam frequentemente para “ninguém” –, rola um certo clima de estúdio de televisão, algo que tende a apequenar esteticamente as cenas. No entanto, esse handicap é sobejamente suplantado por uma indisciplina interna, uma impressão de caos (ou “kaos”) organizado que preenche tudo com a inteligência e a solenidade irônica do personagem.
Mautner ora aparece lendo trechos de suas memórias, O Filho do Holocausto, ora cantando ou declamando em clima de cabaré filosófico, ora trocando ideias com gente querida. A conversa com a filha Amora sobre os “micos” que ela pagou na infância por causa do pai está entre os momentos antológicos desse tipo de “papo-família” em documentários. O encontro com Gil e Caetano diante das imagens de O Demiurgo, piração filmada em Londres, 1970, é outra passagem fadada ao inesquecível. De uma ponta à outra, o filme diverte e adensa o perfil de Mautner, esse extremista de centro que tomou as ideologias como um parque de diversões.
O roteiro e a montagem são excelentes. Tiram partido de frases, canções e materiais de arquivo para construir um ensaio documental. As cenas de arquivo têm um papel criativo logo no início, quando imagens da II Guerra, ao som de Lágrimas Negras, marcam o ponto inicial de todas as obsessões do “filho do Holocausto”. Ou mais adiante, quando uma apresentação de palhaços num estádio de futebol comenta ironicamente o relato de uma briga (quase fatal) por causa do Corinthians.
Mas o melhor de tudo é a liberdade que Mautner e o filme se autoconcedem para aprofundar, sempre em tom de performance, o que existe de grave, complexo e ambíguo na persona desse pensador incansável.