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DIÁRIO DA CÔTE

27.05.2012
Por Ricardo Cota
DIÁRIO DA CÔTE

MICHAEL HANEKE COMPÕE SONATA DA FINITUDE NO COMOVENTE AMOUR



Não os chamem de idosos! O casal de Amour, obra-prima de Michael Haneke, é composto por um homem e uma mulher que se se amam, independente dos cabelos brancos, dos corpos flácidos e da memória claudicante. E o amor profundo não perde jamais a vitalidade. Nem diante da iminência da morte.



Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emanuelle Riva) são dois octogenários que vivem uma rotina espartana. Eméritos professores de música, dividem-se entre o cotidiano no austero e confortável apartamento parisiense e as idas a concertos clássicos dos pupilos de outrora. Tout va bien até a manhã em que o sensibilíssimo Georges percebe durante o costumeiro café da manhã sinais de demência no comportamento da esposa.



A partir daí, Amour segue com intensidade a entrega amorosa de Georges na companhia dos últimos dias de sua amada. Sem apelos fáceis, com um realismo de forçosa empatia (afinal quem já não passou, ou passará, por isso?), Haneke filma o passo a passo de um processo doloroso, em que o amor de Georges é posto à prova a cada apagão, a cada golfada, a cada grito da intraduzível dor de Anne.



Michael Haneke, em seu melhor filme, não cede a apelos sentimentalóides. O calvário de Annes pavimenta-se sem perfumarias. Será ela alvo de um tapa de Georges quando se recusa a beber água, da impaciência das prepotentes enfermeiras (a cena do banho é Haneke em estado puro: duro e seco) e da aflição da filha impotente (Isabelle Hupert, sempre Isabelle Hupert), que questiona o pai sobre a insistência de não levar a mãe para o hospital.



Nas entrelinhas do drama terminal, Amour esparge cinzas de esperança no carinho pela vida vivida, sem nostalgia barata. Ao ver fotos antigas, Anne não se exime de observar, para um perplexo Georges, que “a vida é boa”. O pas-de-deux casual de Georges com um pombo intrujão no corredor do apartamento sintetiza o quão angustiante pode ser uma manifestação pura da natureza num ambiente cercado pelo bafo da finitude.



Amour lembra-nos que a nossa morte é apenas uma dentre tantas que nos cercam. Em sua grande sequência, que vai gerar debates mundo afora, o protagonista acalma a amada num momento de muita dor. Conta-lhe uma história sobre a reação de sua mãe quando soube que o filho estava com difteria. Fala do medo, da solidão e da esperança pelo afeto. Corta o coração e arranca lágrimas até o desfecho hanekiano inesperado, sem concessões à correção de dramaturgia.



Com dois grandes atores, candidatíssimos à Palma de Ouro, poucos cenários e o auxílio luxuoso de Huppert, Haneke realiza o seu melhor filme, com total controle do tempo cinematográfico e existencial. Como ganhou há pouco, em 2009, a Palma de Ouro de Melhor Filme por A Fita Branca, e a de Melhor Diretor por Caché, de 2005, pode não levar o prêmio maior. Se ocorrer, vai ter protesto. Na sessão de gala, Amour recebeu 20 minutos de aplausos. Merecidos.



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KEN LOACH FAZ ELEGIA DOS PÁRIAS SOCIAIS EM THE ANGEL’S SHARE



No processo de destilação do uísque, 2% da essência evaporam. É o que os escoceses simpaticamente chamam de “the angel’s share”, uma forma poética de se referir ao malte dissipado que num fantasioso céu espiritual faz a alegria de anjos etílicos. Tão simpático quanto a sugestão do seu título, o novo filme do sempre socialmente alerta Ken Loach lança um olhar cúmplice aos párias sociais da Escócia. São eles os anjos que repartem o pouco do que se evapora do malte capitalista.



O protagonista é Robbie (Paul Brannigan), um jovem desempregado, de temperamento agressivo mas não desprovido de sensibilidade para perceber que precisa mudar de vida diante do iminente nascimento do filho nada planejado. Cumprindo pena de trabalhos sociais, Robbie irá se juntar a outros órfãos do capital, como um alcóolatra abilolado e uma cleptomaníaca. O grupo tem como tutor um chefe de obra bonachão, que leva a sério a tarefa de reenquadrá-los na sociedade. É ele quem propicia um inesperado passeio a uma destilaria escocesa que irá mudar definitivamente a vida dos pupilos.



Na visita, Robbie descobre um talento nato para o faro do bom malte. O talento, aliado à malandragem das ruas e ao ceticismo quanto à recuperação social, irá levá-lo a montar um golpe, bem original, junto a seus amigos. Não há como o espectador deixar de se acumpliciar.



Diretor de uma vasta lista de mais de 20 filmes poderosos pelo denuncismo social, como Meu Nome é Joe e Ventos da Liberdade, Ken Loach, aos 76 anos, mantém inabalável sua verve crítica às injustiças do capitalismo e às suas inerentes deformidades sócio-políticas. A diferença aqui é que Loach se permite uma lufada de humor negro, que torna sua narrativa irresistível e nos remete à obra do também inglês Stephen Frears.



The Angel’s Share não pode ser definido apenas como uma comédia. A câmera de Loach mantém o tom de denúncia em sequências realistas clássicas, como a das brigas de rua e sobretudo na excepcional passagem da acareação de Robbie diante de uma vítima de sua agressão desmedida. Mas a realidade não se afina apenas pelo diapasão da desesperança. The Angel’s Share zomba do refinamento de hábitos burgueses e nas franjas das contradições do sistema constrói seu discurso deliciosamente perverso em que, ao torcer pela pura malandragem, o espectador, junto com os personagens, dá uma banana para o status quo. É uma palmada de ouro no tédio marcante da mostra competitiva.



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COM IO E TE BERTOLUCCI RETRATA SEM ENVELHECER A NOVA JUVENTUDE



Ver Bernardo Bertolucci, 72 anos, chegar para a sessão hors concours de Io e Te sentado numa cadeira de rodas cortou o coração dos jornalistas e admiradores que lotaram o Grand Theatre Lumière para prestigiar o diretor, há uma década sem filmar. Mas bastou o filme iniciar para a plateia esquecer a chocante decadência física do cineasta e passar a admirar sua intacta vitalidade por trás das câmeras.



Logo na primeira sequência, Lorenzo (Jacopo Olmo Antinori, ótimo), o protagonista, é indagado sobre como se define. A resposta é seca: “Normal”. O que se vê a seguir é a rotina de um jovem que pode ser tudo, menos isso. Num diálogo com a mãe, numa citação básica ao La Luna, do mesmo Bertolucci, Lorenzo pergunta: “E se para salvar a terra só restassem nós dois e tivéssemos que...?” A suposição é cortada imediatamente pela mãe, sem tergiversações, e Io e Te abandona o incesto, assim como a psicanálise do início.



Mentindo para os pais, Lorenzo consegue trocar uma semana na neve pela clausura de um porão inóspito onde se oculta para fugir do mundo. Acompanhado da inseparável lupa, elemento fundamental para a compreensão do filme, alterna momentos de observação de um formigueiro com a imersão quase autista na trilha sonora do seu ipod, que só toca The Cure e David Bowie.



Nessa solidão sem fim, Lorenzo recebe a visita da meia-irmã, Olivia (Tea Falco, um furacão), com quem irá travar os diálogos essenciais do filme sobre sexo, solidão, amor e sobretudo drogas. Adicta em heroína, Olivia se manifesta em meio a crises de abstinência que afetam sentimentalmente o meio-irmão. “Prometa-me que nunca mais usará drogas”, ele suplica ao final. Io e Te é pós-tudo: pós-psicanálise, pós-incesto, pós-droga. É a fundação de uma nova juventude.



No huis-clos da pocilga em que se alienam temporariamente, Lorenzo e Olivia são observados com lupa pelo diretor de Beleza Roubada. O rosto de Lorenzo é projetado em closes que não escondem o cabelo encrespado, as espinhas em profusão e os hormônios em ebulição. Olivia, por sua vez, é o oposto da introspecção. Sua expressão é corporal, visceral, uma vitalidade exuberante que se dissipa apenas com o entorpecimento, num cabo de guerra entre eros e tânatos. Renato Russo com certeza adoraria esse filme.



Inspirado em texto homônimo de Nicolo Ammantini, Bertolucci, o mesmo de Os Sonhadores, mais uma vez não desdenha da juventude, que se apresenta sempre em seus filmes distante dos clichês de desconexão. Ao contrário, é uma juventude que, mesmo contraditoriamente à sombra da autodestruição, da desilusão e da falta de comunicação familiar, rejeita a morte, a decadência, e que se expressa por meio de abraços fraternos, de um amor absoluto. O sorriso aberto do protagonista na cena final, portanto, pode ser visto como pura provocação. Provocação de um velho cineasta cuja cuca resiste às agruras da deterioração física e que, com dureza e ternura, estende a mão aos que fogem da caretice. Longa vida à eterna juventude de Bernardo Bertolucci!



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PABLO TRAPERO MIRA OLHAR SOCIAL EM DRAMA DOS FAVELADOS ARGENTINOS



No final dos anos 30, o arquiteto socialista Alfredo Palacios projetou um imenso hospital público na periferia de Buenos Aires. Não conseguiu ver o projeto acabado. Veio o peronismo intercalado pelos golpes de estado que marcaram a história do país e o prédio jamais foi terminado. Restou um esqueleto que ao longo dos anos foi ocupado irregularmente e circundado por uma das mais violentas favelas portenhas.



Petardo social do diretor Pablo Trapero, Elefante Branco - título que faz referência explícita ao esqueleto arquitetônico - se passa nesse ambiente de completo desamparo social, habitado por descamisados, drogados e gangues de traficantes armados até os dentes. É aí que os párocos Julián (Ricardo Darín) e Nicolás (Jeremie Renier), acompanhados da assistente social Luciana (Martina Gusman), empenham-se em levar dignidade ao caos espiritual dos habitantes.



Todos seguem os passos do padre Mujica -personagem verídico morto em condições misteriosas em 1974 - que pela dedicação aos favelados tornou-se mais um dos incontáveis mitos do trágico mosaico histórico argentino. A cada ano em que a igreja e a classe política, num pacto de leniência, atrasam qualquer tipo de intervenção pública para garantir melhores condições de vida aos habitantes do elefante branco, a situação se deteriora. E a esperança pede por oxigênio.



Trapero continua aqui o bem sucedido esforço de trazer à baila temas caros à contemporaneidade do seu país. À medida que os títulos se acumulam (Mundo Grua, El Bonarense, Nacido y Criado, Leonera e Carancho), mais o cineasta se aprofunda na arte de destrinchar os aspectos de uma sociedade multifacetada, seja acompanhando um drama familiar de classe média (Nacido y Criado), seja abordando os desvios de agentes da ilegalidade, como em Carancho.



Exibido na mostra Un Certain Regard, Elefante Branco sobrepõe várias questões com uma impressionante agudeza. O realismo seco como apresenta o dia a dia nas favelas, com seus tiroteios, velórios, festas e redutos de crack, é impactante. A questão ética dos protagonistas, que vivem no limite do stress, se perguntando a cada minuto o que os leva à caridade, apresenta-se ao espectador de forma exasperante, quase desesperançada. Trapero mostra no entanto uma característica bastante nacional: a da preservação dos ideiais pelo culto aos mitos regionais. Seja na fé, na política ou no futebol, a Argentina se reinventa a cada tragédia. Até o dia em que, como diz o cura vivido por Darín, se entenda que “os mártires não são tão necessários”. Esta é a utopia de los hermanos.



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PABLO LARRAIN VASCULHA O MARKETING POLÍTICO NO EXCELENTE NO



Em 1988, uma forte pressão, nacional e internacional, leva a temível ditadura chilena, do general Augusto Pinochet, instalada desde 1973, a convocar um plebiscito sobre a necessidade ou não de realização de eleições diretas no país. Seguros de sua vitória, os militares entram na campanha bafejados pelos bons índices eleitorais sem saber que ali plantava-se o sêmen de sua derrocada.



Exibido na Quinzena de Realizadores do 65º Festival de Cannes, No, de Pablo Larrain, aborda os bastidores do marketing político da que pode ser considerada a votação mais decisiva da história da democracia latino-americana da segunda metade do século XX. Se Brasil e Argentina já haviam dado um basta nos regimes autoritários, faltava ao Chile, no final da década de 80, dar o não que consolidaria o início de uma nova era política ao sul do Equador.



Inspirado na peça Referendum, de Antônio Skármeta, autor da novela O Carteiro e o Poeta, No aborda esse momento de transição sob a ótica do elemento que transformaria fundamentalmente a relação entre eleitor e voto: o marketing político. Rene Saavedra (Gael Garcia Bernal, preciso) é um criativo de uma agência de publicidade em ascensão que recebe o convite para dirigir a campanha do NO à permanência do regime militar. Filho de expressivo dissidente político, Rene transita no fio da lâmina entre a visão progressista da esposa e dos amigos de seu pai, e a cautelosa postura do dono da agência em que trabalha, cuja proximidade com o regime e com a campanha do SÍ não o impede de olhar para o futuro. Menos pelo bem da democracia; mais pela necessária adaptação do seu negócio aos novos tempos.



No, o filme, vai fundo nas entrelinhas paradoxais dessa batalha midiática pelo poder. A opção narrativa por uma fotografia de cores mal ajustadas, sobrepostas, mimetiza os efeitos da textura das fitas de vídeo dos anos 70. De início, o espectador desavisado, como eu, pode achar um defeito na projeção ou na cópia. Mas logo se entende que o defeito é efeito de linguagem para contextualizar e fortalecer os intuitos desse ótimo, e formalmente corajoso, filme.



Embora se passe há 35 anos, No sustenta-se com fortes elementos de filme de época que nos lembram com naturalidade (mérito da produção) o quanto o mundo mudou em pouquíssimas décadas. Os elementos que compõem o décor parecem saídos de um museu de estranhas novidades. São televisores, fitas betacam, carros e até um microondas a nos projetar para um mundo tão perto, tão longe.



As discussões sobre o formato de campanha - com ênfase na rejeição às mudanças do sisudo discurso de esquerda em face aos atrativos elementos da nova publicidade - compõem registros de um novo mundo em que, por exemplo, as canções de protesto, e seu apelo panfletário, cedem à vulgaridade dos jingles descartáveis que colam como chiclete no ouvido do inconsciente popular.



Pablo Larrain carimba sua condição de grande nome do cinema chileno contemporâneo. Seu nome também aparece como produtor de outro filme da pátria presente aqui em Cannes, Joven y Alocada (veja resenha mais abaixo). Como autor, chega à maturidade em seu quinto filme, no qual completa a trilogia do Chile pós-73. Do irregular Tony Manero a No, passando pelo denso Post Mortem, Larrain exibe talento ao transitar pelo humor, pela introspecção e agora pelo thriller político, com perspectiva histórica mas sem denuncismo. Como o protagonista Rene, seu cinema tem na observação e na entrega com ressalvas aos ditames da nova ordem mundial as chaves para questionar o sistema de dentro, sem a ele se render. É possível? Os filmes de Pablo Larrain, sem proselitismo, provam, que à revelia dos extremos, .



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WOODY ALLEN MERECE DOC-TRIBUTO À ALTURA DE SUA VIDA E OBRA



Imagine (quase) tudo o que você queria saber sobre a vida de Woody Allen e ninguém nunca tinha tido coragem de documentar. Woody Allen: A Documentary, exibido na mostra Cannes Classics, é esse filme. Um deleite para os fãs e estudiosos do mais profícuo diretor de cinema da atualidade.



Na verdade trata-se de um produto para a televisão, lançado com três horas e meia de duração pela PBS, mas que ganhou uma versão reduzida, de duas horas, para o cinema. Nada mau. O documentário, que não parece produto televisivo, é dirigido por Robert Weide, cuja bagagem inclui uma série de docs dedicados a humoristas americanos, como os Irmãos Marx (de quem é fã declarado) , Mort Sahl e Lenny Bruce. Weide assina também a série Curb Your Enthusiasm, sucesso há oito temporadas, estrelada por Larry David, o mesmo que viveu o acadêmico irritadiço de Tudo Pode Dar Certo, de Woody Allen.



Woody Allen: A Documentary compila fragmentos da riquíssima carreira do brilhante judeu do Brooklyn cujo talento precoce despontou na pós-adolescência escrevendo e desenhando sketches para jornais. Weide consegue mostrar um Woody Allen muito pouco conhecido, disposto a falar sobre sua carreira abertamente e até mesmo percorrer lugares como a casa em que nasceu, a primeira escola e, é claro, o primeiro cinema. Para a galera da antiga, tem sabor a revelação de que Allen ainda hoje, em plena era do Word, gosta mesmo é de dedilhar suas ideias numa velha e boa máquina de datilografia (meninos, pesquisem no google o que é isso!).



Woody Allen trata com absoluta transparência de temas recorrentes na sua vida e obra, como a obsessão pela morte (“Foi duro quando descobri que tudo isso termina”), a compulsão por filmar (“Preciso dar ordem ao caos à minha volta”), sucessos, fracassos, e não foge sequer ao tema da traumática separação com Mia Farrow: “Sei que tem gente que passou a gostar menos de mim e até admiradores que deixaram de ver os meus filmes. A única coisa que posso comentar é que entendo a opinião alheia mas não me importo”.



A lista de entrevistados, que não inclui Mia Farrow, passa pelo colega de ofício Martin Scorsese, o fotógrafo Gordon Willis, um teólogo, produtores e atores, a inseparável irmã e um depoimento colhido pelo próprio Allen de sua mãe, protagonista do curta dirigido pelo cineasta para Contos de Nova York. Musas como Mariel Hemingway - que descreve com singular emoção a cena final de Manhattan -, Naomi Watts, Scarlett Johansson e Dianne Wiest são escolhidas para destacar os métodos de direção do cineasta. Diane Keaton, a quem o filme reserva os melhores momentos de intimidade nos bastidores, destaca-se pelo carinho sincero e a inteligência soberana.



O melhor do documentário, no entanto, fica por conta dos comentários sobre a vida do diretor extraídos de segmentos de seus próprios filmes. Para os maníacos por Allen, como eu, o oportuno uso de sequências extraídas de filmes como Annie Hall, Manhattan, Radio Days e Crimes e Pecados toca na veia sobretudo quando desenham paralelos com outros cineastas-referência para o diretor, como Fellini e Bergman.



O crítico Mike Hale, do The New York Times, foi cruel ao comentar que o documentário reforça a tese de um diretor congelado por criogenia nos anos 1970. Segundo o crítico, o documentário marca bem a produção do diretor entre os anos 70 e início dos 80 mas passa batido por mais de 30 filmes que fez a seguir. Ok. Mas aí o documentário original teria que ter umas dez horas e a versão para o cinema umas cinco. Woody Allen: A Documentary é um tributo, um filme de iniciação para novos cinéfilos e de reafirmação para os mais velhos. Está longe de ser definitivo. Mas é fundamental para entender uma obra, felizmente, to be continued.



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JOVEN Y ALOCADA CONFIRMA BOA FASE DO CINEMA CHILENO



Depois de provocar polêmica em Sundance, onde recebeu o prêmio World Cinema Screenwriting, o chileno Joven y Alocada vem despertando interesse nas sessões do mercado de Cannes. Filme de estreia de Marialy Rivas, Joven y Alocada não poupa elementos para discussões acaloradas sobre sexo, religião, pornografia, internet e, por que não?, cinema.



Temas para provocação não faltam. Daniela (Alícia Rodriguez, bastante despojada) é uma adolescente que pertence a um meio evangélico difuso. Vive entre a mãe dogmática repressora e os amigos - também religiosos mas não tão ortodoxos - com quem faz estágio numa tevê evangélica. O meio por onde explicita sua dúvidas e incertezas é o seu blog, de nome “Joven y Alocada”. Nele, Daniela encontra espaço para expor sem pressões angústias religiosas e sexuais.



A linguagem do filme se apropria dos piques e repiques das ferramentas de comunicação virtual, com mensagens rápidas e uma iconografia criativa - ainda que pobre na finalização - do universo de colagem de textos e imagens típicos da web. É um filme que mostra a internet como instrumento de libertação, plataforma lúdica para jovens em formação. Parece otimista. E é.



Daniela é uma evangélica bem avançadinha que nos interstícios de suas teclagens seduz meninos e meninas com a mesma desenvoltura. No seu confessionário virtual, a genitália se mistura a citações da Bíblia e a imagens de filmes religiosos. Vale tudo na catedral sacro-pornô dessa Lolita do sétimo dia.



Críticas puritanas publicada nos EUA tentaram enquadrar Joven y Alocada, por suas cenas de forte apelo sexual, à linhagem do soft-porn, o que é uma piada. A cineasta Marialy Rivas apenas fala com naturalidade da difícil passagem da juventude à vida adulta, tema batido e rebatido mas que ganha frescor em meio à barafunda contemporânea que mescla tecnologia de ponta com regimentos medievais de conduta. Joven y Alocada é honesto e imperfeito, como sói ocorrer com os bons primeiros filmes. Produzido por Pablo Larrain, cineasta também presente em Cannes, é mais um tijolinho de qualidade na moderna cinematografia chilena. Como se destaca no Facebook, "curti".



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JACQUES AUDIARD ENALTECE A POÉTICA DOS CORPOS



A dedicatória a Claude Miller, falecido há pouco mais de um mês, arrancou aplausos mesmo antes do início de De Rouille et D’Os, de Jacques Audiard, em competição no 65º Festival de Cannes. Oportunismo? Não. O filme de Audiard faz jus às histórias humanistas de Miller, construídas por personagens cotidianos cujas vidas sofrem transformações a partir de revelações inesperadas ou do puro acaso, seja ele lírico ou trágico.



De Rouille et D’Os, que poderia ser literalmente traduzido como “Ferrugem e Ossos”, resulta da adaptação de dois contos de Craig Davidson, um deles intitulado “Carne e Osso”, que por sinal resume melhor o espírito do filme. Da junção das histórias nasce o nada usual caso de amor entre um lutador de rua marginal e uma treinadora de orcas. Audiard repete aqui a parceria com o roteirista Thomas Bidegain, o mesmo do anterior Um Profeta, Grande Prêmio do Júri de Cannes em 2009.



Ali (Mathias Schoenaerts) é um outsider que herdou o filho de uma relação provavelmente sem preservativo. A primeira fala do filme é do menino (“estou com fome”) e dá a dimensão econômica da vida do protoganista. Ali procura refúgio na casa do cunhado e da irmã nos arredores de uma cidade bem cinematográfica: Cannes. Mas também aqui não há oportunismo de Audiard. A Cannes do longa é periférica e bem pouco glamurosa.



Ali é fascinado por lutas e consegue bicos como vigia e competidor em lutas interditas. Uma noite protege a agressiva Stéphanie (Marion Cotillard) de uma briga em um nigthclub. Ela trabalha num parque aquático e após o encontro com Ali é vítima de uma tragédia provocada por uma orca em tarde de Shamu, aquela orca que fez uma vítima num aquário da Disney. Quando Ali a reencontra, Stéphanie é uma mulher devastada pela dor e pela perda das duas pernas.



Nasce uma relação original, em que o bruto Ali torna-se o companheiro de todas as horas de Stéphanie. Leva-a à praia, convida-a para acompanhar suas lutas clandestinas e, a um simples toque de celular (num ótimo recurso de roteiro), apresenta-se para uma assistência sexual. No original relacionamento entre os dois não há espaço para romantismo. A carne é forte.



Como a solitária mutilada, Marion Cotillard larga como grande favorita ao prêmio de melhor atriz. Agressiva, sensível, introspectiva, Cotillard constrói uma Séphanie cujo mutilamento não inspira comiseração. Na aproximação com o kickboxer, Stéphanie sublima a perda das pernas e recupera o amor pelo corpo. Ali é na essência carne e osso, tudo em que Stéphanie se agarra para preservar a vida.



Jacques Audiard aborda o tema da mutilação e da superação físicas sem apelações e dá um tiro certeiro na abordagem cinematográfica. De Rouille et D’Os mostra de certa forma como o cinema também é a arte de monitorar corpos mutilados e lhe dar força, consistência e densidade. São torsos, pernas, bundas, nucas, coxas, mãos, punhos e até um dente ensanguentado perdido em grande close lembrando o peso de carne e ossos, a matéria-prima de De Rouille e D’Os.



Audiard estende-se um pouco ao não querer perder a viagem sem falar da crise europeia. Há uma trama paralela sobre o uso da vigilância eletrônica ilegal para monitorar o comportamento de funcionários de mercados e lojas. Não acrescenta muito. O forte do filme advém da entrega física dos personagens e do intuito humanista do seu realizador. Além de uma esperta embalagem musical pop, que também não pode ser considerada oportunista pois é de extrema funcionalidade. Claude Miller pode descansar em paz.

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