1 - A MOSTRA PROPRIAMENTE DITA
Importantíssima essa MOSTRA INGMAR BERGMAN que começou no CCBB do Rio de Janeiro em 08 de maio e vai até 10 de junho (seguindo para SP em 13/06 e Brasília a partir de 19/06).
Quem conhece um pouco dos bastidores do que é organizar uma retrospectiva dessa envergadura (como foram as grandes mostras recentes sobre John Ford e Hitchcock, só para citar essas, bem extensas e de enorme penetração popular) tem obrigação de desculpar eventuais falhas que não se devem aos curadores, mas cabe destacar o prejuízo que o Rio geralmente sofre por ser o lugar onde essas mostras têm início pois um dos atrativos para cinéfilos é poder assistir os filmes no suporte para o qual foram concebidos em idades de ouro do cinema: projeção em película e em tela grande (mesmo que as dos CCBBs não sejam como as telonas das salas que existiam quando esses filmes foram lançados no passado).
No entanto, dificilmente, nas primeiras exibições cariocas, deixa de haver atrasos na liberação pela alfândega de algumas (senão de várias, ou de todas) as latas de filmes programados para as primeiras semanas. Essas cópias teriam sido conseguidas depois de negociações muitas vezes bem delicadas por parte dos organizadores brasileiros com cinematecas e institutos de preservação de filmes estrangeiros.
O resultado é que o espectador acaba vendo a obra programada em projeção de DVD quando esperava outra textura de imagem na tela, de acordo com o projeto original do cineasta e seus fotógrafos. E Bergman teve Gunnar Fischer e Sven Nykvist quase como co-autores de momentos exemplares de suas construções imagéticas. Outra situação mais frustrante ainda é no caso do filme não existir em DVD legendado (ou com legendas eletrônicas sob a tela). Às vezes não há DVD nem no exterior. Nessa situação, o cinéfilo chega lá para descobrir que outro filme (ou DVD) será exibido no lugar do que estava programado e para o qual ele se organizou.
Nem sempre o público entende que a culpa não é dos curadores nem do CCBB, mas mesmo assim, é decepcionante fazer algum sacrifício para conhecer aquele filme raro e não conseguir. Nessa mostra, algumas raridades estão programadas para exibição em Beta, mas duas dessas programações já deixaram este resenhista conformado em assistir outro filme diferente do que pretendia. Poder-se-ia dizer que, sendo de Bergman, nunca é perda de tempo rever algum de seus filmes, mas voltaremos a esse tema na segunda parte deste texto, mais adiante.
Sobre a mostra propriamente dita, cabe destacar a qualidade do catálogo (já esgotado par o Rio, e não dá para entender as tiragens sempre aquém da procura), ainda que haja alguns problemas na 1ª. edição. Tentando colaborar, destacamos que o texto que começa na página 155 (“A Pele de Cobra”) tem na página seguinte (156) a continuação de "Por que faço filmes" que vai até a pág. 160.
Já "A Pele de Cobra" reaparece na página 165 e segue corretamente nas pags. 166 e 167.
O início de "Por que faço filmes" está na pág. 145 e segue na 156, conforme citado acima.
Uma errata foi providenciada o mais rapidamente possível e colocada com encarte em catálogos distribuídos na segunda semana para quem acumulava 5 carimbos no “passaporte” que serve para todas as sessões (desde que haja lugar). Quem acumulou carimbos de comparecimento mais cedo recebeu seu catálogo sem a errata.
Uma questão quando a mostra é sucesso de publico no CCBB do Rio é que se você
assiste uma sessão dificilmente vai conseguir entrada para a sessão seguinte já que as senhas são distribuídas enquanto a gente está dentro da sala de projeção. Não sei como resolver essa questão, mas sei que como está é injusto para o espectador que vai lá e gostaria de ver dois filmes seguidos, já que por dia são exibidos três (ou mesmo 4) filmes diferentes.
É uma pena que a mostra quase completa dos longas que foram feitos para salas de cinema não tenha incluído dois filmes: teria sido porque Bergman os rejeitava? Ou não conseguiram cópias? Apostando na psicologia dos curadores, a segunda hipótese é mais provável, já que Bergman não permitia mesmo novas exibições de Sant händer inte här, um thriller de espionagem que o diretor se arrependeu de ter feito em 1950, cujo título geralmente é traduzido como “Isso não aconteceria aqui” (ou High Tension em alguns países onde chegou a ser lançado na época).
Mas Bergman também criticava sua (fraquíssima) comédia Para não falar de todas essas mulheres (1964) que é disponibilizada, e em uma retrospectiva ampla sempre cabem os momentos menos felizes de um grande autor para uma revisão crítica de fato. Além do mais, esse filme maldito seria apenas “ruim”? Ou foi extirpado por ele pela origem de ser uma encomenda em vez de um projeto mais pessoal? Seus primeros cinco filmes também não tinham roteiro seu e ele tinha que dirigir roteiros fraquíssimos como o de Música na noite (1948) e mesmo achando o resultado pífio, nunca interditou este (e outros filmes dos quais desgostou logo ou após algum tempo).
Talvez a resposta mais instigante (apenas uma hipótese, mas nada absurda) seria a questão “política” do enredo, já que o filme tratava a ex-União Soviética como vilã (coisa comum nos filmes americanos da “guerra fria”) em um caso de imigração de fugitivos, por mar, da antiga “cortina de ferro”. Como esse tema permanece atual, envolvendo situações trágicas de mortes no mar de emigrantes “ilegais”, da África para a Europa pelo Mediterrânio, ou - como aconteceu muito - da ex-Iugoslávia para a Itália, seria curioso ver o tema como foi tratado, mesmo que em um projeto comercial sueco.
Mais sério, artisticamente falando, é o caso de The Touch, de 1971, co-produção norteamericana falada em inglês, aqui intitulada A Hora do Amor. Mesmo que se concordasse com as alegadas deficiências do roteiro, a cena de abertura, quando a personagem de Bibi Andersson chega ao quarto de hospital onde sua mãe acaba de morrer, é uma das melhores coisas que Bergman filmou: objetos da morta na mesinha de cabeceira parecem perder imediatamente todo o significado que podiam ter quando sua dona vivia. A filha, desolada, se esconde em um closet para chorar. Um estranho que pretende apanhar o sobretudo no closet abre a porta e uma luz se acende iluminando o semblante “desarrumado” da atriz. Ele é vivido por Elliott Gould, com quem a mulher vai ter um tumultuado caso extra-conjugal.
Se o restante do filme não sustenta o impacto e beleza destas seqüências, nem assim é tão menos satisfatório do que outros filmes de Bergman. E aqui, passamos à nossa apressada reavaliação do que a obra de Bergman pode significar em 2012.
2- A OBRA BERGMANIANA PROPRIAMENTE DITA – uma revisão parcial em meio à terceira semana da mostra
Em 1996, o Grupo Estação Botafogo e a Cinemateca do MAM-RJ promoveram uma primeira grande mostra Bergman. Foi quando tivemos oportunidade para conhecer vários filmes do diretor que eram inéditos no Brasil, comercialmente ou mesmo em sessões especiais. (Muitos anos antes de O Sétimo Selo, de 1956 ser lançado pelo extinto Cinema 1 programado por Alberto Sahtovsky – e isso só se deu em torno de 1972 ou 73 – um colega de adolescência me falava de ter visto o filme do jogo de xadrez entre um cavaleiro medieval e a Morte, ela mesma, no MAM. Isso foi em 1966, salvo engano). Mas os “primeiros” Bergman, mesmo que não tendo roteiro de sua lavra, atraíam nossa curiosidade. Especialmente Um Barco para a Índia (1947) de enredo francamente “edípico”.
Mais importante ainda era conhecer Prisão (1949), já escrito pelo cineasta, que é uma obra seminal: temas que seriam desenvolvidos e reciclados em diferentes momentos estão neste filme que ainda traz um pastiche de filme mudo de pastelão que ele reutilizaria em Persona de 1966.
Apesar de seus aspectos formais muito datados, Um barco para a Índia mantém algum interesse na revisão, que mais não seja pelo conflito filho-pai, recorrente na obra - e mais ainda na vida - de Bergman. Sua luta interna (e explícita) com o pai, pastor luterano, assim como sua relação distante com os próprios (nove !) filhos é bastante comentada. Ainda que o filme copie sem disfarces os soturnos filmes franceses de Marcel Carné, há alguma coisa consistente autoral que funciona bem e sobrepuja os aspectos menos felizes dessa produção. Vale por fazer parte da obra como um todo.
Aliás, em um dos ensaios pioneiros sobre Bergman, escrito quando ainda estava sendo lançado A Fonte da Donzela (1960), Jacques Siclier usa a imagem da espiral para a obra do cineasta: volta-se aos mesmos pontos, mas em planos diferentes. É assim que uma mulher idosa vestida de negro em Juventude (1950) com o rosto muito branco prenuncia a imagem da Morte em Sétimo Selo.
E os filmes sobre casais vivendo um inferno a dois percorrem dezenas de suas realizações, como em Um Barco... e nos iniciais Prisão e Sede de Paixões, chegando até momentos de maturidade como no bem-sucedido (síntese de todos?) Cenas de um casamento, de 1973. Foi revisto nesta mostra em sua versão de 170 minutos que funciona muito bem em sala de cinema - por mais que o DVD nacional da Versátil com seus quase 300 minutos, ou seja, a minissérie completa para a TV - seja imperdível).
Mas também revimos e confirmamos a impressão tida na época de lançamento de que Da Vida dos Marionetes (1980) é muito artificial e raramente funciona bem. Não cabe considerar que tudo que um grande autor realizou é perfeito, e essa revisão vem mostrando que há momentos excepcionais cujos filmes valem por si, isoladamente – e no corpo da obra. Mas que há outros filmes que só mesmo cinéfilos aficionados irão ter satisfação de conhecer (ou mesmo rever) pelo aspecto sistêmico do pensamento em imagens de Bergman:
- Rumo à Felicidade (1950) continua a ser um melodrama quase grotesco de tão gauche,
- No Limiar da Vida surge mais impessoal e menos interessante do que há tempos
- Quando as mulheres esperam (1952) só se realiza no terceiro “episódio” (que é cômico ! E mostra como a atriz Eva Dahlbeck servia bem para certos papéis que interpretava em filmes de Bergman deste período, culminando com a ‘Desirée’ de Sorrisos de uma noite de amor, de 1955)
Com raras exceções, quase todos os outros filmes da mostra confirmam sua grandeza na cinematografia universal, com destaque óbvio para Gritos e Sussurros e Morangos Silvestres, minhas preferências pessoais. Mas também posso preferir o revolucionário Persona. Não há escolha: nossa sugestão é que se tente ver ou rever o que for possível. Pois mesmo nos momentos menos felizes, Bergman reserva instantes pontuais de grandeza cinematográfica. E humanista, tão em falta nas artes contemporâneas - e não só no cinema.
Um último reparo: embora a mostra atual tenha incluído filmes feitos para a TV depois que Bergman deixou de filmar visando salas de exibição (ou seja, depois de Fanny e Alexander), quase todos (exceto Depois do Ensaio) inéditos nos cinemas brasileiros (sendo que Na Presença de um Palhaço teve exibição no canal Multishow quando a TV a cabo era melhor no Brasil), um filme feito para televisão, o excelente Construtores de Imagens, sua penúltima realização, não foi incluída agora, embora o crítico João Marcelo Matos o tenha exibido em mostra da qual foi curador no mesmo CCBB. Era sobre filmes de grandes cineastas feitos para a TV.
Seria bom rever este “teatro filmado” (provando que até a expressão “teatro filmado” pode incluir grande Cinema) já que traz como personagem o cineasta Victor Sjöström que foi ator em Morangos Silvesteres e era cultuado por Bergman por seu filme silencioso de 1921 A Carruagem Fantasma (um dos pontos de partida para o jovem Ingmar aderir ao Cinema como projeto de vida).
Neste filme, baseado em peça que não foi escrita por Bergman, também surge como personagem a escritora Selma Lagerlöff que escreveu o texto literário que deu origem ao filme de Sjöström. Uma atriz que foi amante de Victor é outra figura em cena, além de um projecionista que vai participar da primeira exibição do filme de ’21 para a escritora, um “monstro sagrado” das artes suecas de então, Prêmio Nobel de 1909. Poderia ter sido uma chave de ouro da carreira de Bergman, fechando um ciclo muito pessoal de uma obra única. Mas ele ainda nos legou o crepuscular e pungente Sarabanda. Não dá para privilegiar as falhas em uma obra tão magnífica.
Aproveitem o que puderem.