O Festival Internacional Lume de Cinema, que chegou à segunda edição, é uma iniciativa corajosa de Frederico Machado, que leva para São Luís um cardápio cinematográfico que não costuma desembarcar no circuito comercial da capital maranhense. São filmes autorais, que, em medidas variáveis, exigem disponibilidade do espectador que visita o Cine Praia Grande, sala localizada nas proximidades do centro histórico da cidade.
Na primeira edição do festival, Frederico trouxe a São Luís o cineasta filipino Brillante Mendoza, aclamado em festivais internacionais, mas pouco conhecido do público brasileiro. Com o apoio do Instituto Goethe, organizou uma retrospectiva de filmes de Werner Herzog. Devido ao contundente corte orçamentário sofrido esse ano, não conseguiu homenagear o diretor macedônio Milcho Manchevski, normalmente lembrado por Antes da Chuva . O tributo acabou concentrado no ciclo Claude Chabrol, composto por quatro filmes do cineasta: Nas Garras do Vício , Delegado Lavardin , Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo e Mulheres Diabólicas .
Como prêmio da mostra competitiva, Frederico oferece a distribuição em circuito do melhor filme brasileiro e do melhor estrangeiro, de acordo com as decisões dos júris. Ano passado venceu O Moinho e a Cruz , de Lech Makewski, coprodução Polônia/Suécia exibida na abertura dessa segunda edição e que está chegando agora às salas de exibição. Na recém-encerrada edição, ocorrida entre 14 e 20 de junho, o júri consagrou Anistia , coprodução Albânia/Grécia/França, assinada por Bujar Alimani, e o brasileiro Onde Borges Tudo Vê , de Taciano Valério. O primeiro conta a história de um homem e uma mulher que se conhecem em constantes idas à penitenciária para visitar seus parceiros presos. Alimani filma bem, especialmente as cenas de sexo, nas quais os rostos dos parceiros mal aparecem, e destaca a intolerância como força repressora da mudança. O segundo é centrado no cego Napoleão, amante da obra do escritor argentino Jorge Luis Borges.
A seleção internacional foi marcada por bons filmes. O israelense O Policial , de Nadav Lapid, entrelaça a jornada de um grupo de policiais da elite antiterrorista com as ações de jovens extremistas que se opõem à desigualdade social. O diretor aborda separadamente cada um dos núcleos. Na primeira parte, confronta o público com o mundo acentuadamente masculino dos policiais (evidenciado na forma como se cumprimentam, no modo como se vestem e nas brincadeiras violentas que travam) e os acordos internos realizados com o intuito de escapar de responsabilidades. Na segunda, revela a agressividade de jovens radicais, que não medem esforços para alcançar seus objetivos. O encontro entre ambos é explosivo.
O espanhol Ondas , de Alberto Morais, parte da determinação de um homem idoso, Miguel, de voltar a Argèles-sur-Mer, no Sul da França, logo após a morte da mulher. É uma viagem solitária que o leva a revisitar experiências dolorosas. Monossilábico, Miguel trava discretos encontros a partir do momento em que seu carro quebra e passa a depender da ajuda de desconhecidos. O americano Sozinha , de Mark Jackson, acompanha uma adolescente durante o período em que cuida de um idoso em estado vegetativo numa casa localizada numa região isolada que a impossibilita de manter muito contato com o mundo externo. Solitária, ela começa aos poucos a enveredar por uma relação perversa com aquele de quem deveria cuidar. É um desdobramento previsível da situação-base, mas o filme surpreende em certos aspectos – na maneira como ela se relaciona com o corpo do homem, considerando a revelação de sua sexualidade, e na ausência de vínculos afetivos, a não ser aqueles atados ao passado.
O público saiu sensibilizado da sessão do brutal Clip , da diretora sérvia Maja Milos, sobre o mergulho de uma adolescente – cujo pai sofre de doença terminal e a mãe, de depressão – no mundo do sexo e das drogas. O único filme que parece ter destoado na seleção foi o fraco Quero ser um Soldado , produção espanhola de Christian Molina, sobre um menino seduzido pelo universo de violência que encontra nas imagens televisivas. O diretor culpa a TV, como se fosse a responsável por desvirtuar o garoto, e aposta numa construção maniqueísta (há sempre um anjo mau e um anjo bom duelando próximos do pequeno protagonista), que também se estende para o relacionamento familiar (o pai conivente, a mãe consciente). A presença do filme evidencia uma tentativa dispensável de buscar interação com uma faixa de público mais abrangente. Ainda fizeram parte da competição, Crulic , coprodução Romênia/Polônia de Anca Damian, Irmãos , filme venezuelano de Miguel Rasquin, o argentino Moacir , de Tomás Ligpot, e o polonês O Batismo , de Marcin Wrona.
Na seleção brasileira, o festival trouxe Horas Vulgares , de Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize, filme algo posado, que busca a suavidade e a delicadeza do toque entre personagens que conversam baixo, em tom íntimo, e se movimentam na cadência do jazz. Boa parte deles gravita em torno de Lauro, que retorna para o convívio dos amigos, mas externando uma angústia sem fim (“Eu sou desses que vai morrer por uma razão que ninguém vai entender”, diz, em dado momento). Já Rânia , de Roberta Marques, mostra o esforço da personagem-título, uma adolescente do morro Santa Terezinha, em Fortaleza, para buscar melhores condições de vida através da paixão pela dança. As dificuldades, porém, levam-na a começar a flertar com a prostituição. Há uma espécie de celebração da protagonista, a julgar pelo encanto (não totalmente justificado) que exerce sobre os personagens, como os professores de dança. O filme se inscreve na vertente da não-atuação, na medida em que procura ocultar do espectador o processo de construção dos personagens, os mecanismos de interpretação, na tentativa de transmitir o máximo de veracidade. Cabe destacar os trabalhos de fotografia (de Heloisa Passos), que flagra o mundo sob a perspectiva de Rânia e também daqueles que a vêem, e de trilha sonora (de Bernardo Uzeda).
Também integraram a seleção os longas Estradeiros (de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, diretora do bom curta Praça Walt Disney , exibido em São Luís), HU (de Pedro Urano, diretor de fotografia de vários filmes, entre eles o ótimo curta Corpo Presente , de Marcelo Pedroso, incluído na competição), Mentiras Sinceras (de Pedro Asbeg, a partir da montagem de Paulo de Moraes para Mente Mentira , de Sam Shepard), No Lugar Errado (de Guto Parente, Pedro Diogenes, Luiz e Ricardo Pretti) e Augustas (de Francisco Cesar Filho).