Pense na entrada do Maracanã em dia de clássico, em decisão de campeonato: filas, falatório, expectativas em alta, apostas. É com uma disposição parecida que os indianos costumam encarar uma sessão de cinema na India. Com uma produção que ultrapassa a marca dos mil filmes por ano, cinema na India não é simplesmente uma questão de entretenimento, mas de relação com a própria cultura. A frase até poderia soar clichê, não estivesse ela relacionada a uma noção de "respeito" que na indústria do cinema ao redor do mundo está pra lá de desgastada. Se atualmente o grande público entende por "cinema" aquilo que se encontra em títulos como Era do Gelo e O Espetacular Homem Aranha, isso é o triste sintoma de um modo de produção que perdeu completamente a especificidade de seu produto. Esse cinema (pelo menos aquele que se convenciona chamar de "comercial") abre mão de ser uma linguagem, de se constituir como opção de captura de determinada compreensão de mundo para se transformar em bem de consumo instantâneo, que se esgota no momento em que acontece (como um refrigerante, uma pipoca, ou um hambúrger).
Ora, na India, esse mesmo cinema comercial ainda é um reduto onde a própria cultura, em toda a sua riqueza e pluralidade de línguas, sotaques, cores e tradições, se encontra, se realimenta e se coloca em questão. A mostra BHAVA: Universo do Cinema Indiano no Brasil, em cartaz no CCBB de Brasília entre os dias 24 de julho e 19 de agosto, traz um recorte bastante representativo desse pedaço de mundo, onde ainda predominam as salas de rua, e onde a produção se define menos por narrativas de gênero (comédia, drama) que pelas regiões de origem: há o cinema em Malayalam (do estado de Kerala), em Bengali (do Bengal) e em Hindi (do norte do país, e que se tornou internacionalmente conhecido como Bollywood). Composta (ou tecida) por trinta filmes, a BHAVA (termo sânscrito para "emoção") compreende uma mistura eclética de produção independente, de arte e comercial, de ficção e documentário, de temas infantis e adultos, de adaptações literárias, discussões de gênero, política, religião e opção sexual.
A curadoria da mostra (que, aliás, pega carona na última semana da exposição INDIA!, com ótima repercussão em todas as cidades pelas quais passou) optou por um recorte que privilegia a produção recente: quase todos os filmes foram produzidos no final dos anos 2000. E a tirar por uma rápida olhada na programação, percebe-se que se trata de uma cinematografia capaz de surpreender, pelo tanto que permite descobrir de semelhanças e identificações. Tome-se, a título de exemplo, Dharm, de Bhavana Talwar (2007). A história gira em torno de um episódio da vida do sacerdote brâmane Pandit Chaturvedi. Respeitado por um comportamento ilibado, e por uma vida pautada pelos cânones da tradição, a aparente linearidade do cotidiano do sacerdote é abalada pela chegada de um bebê abandonado à porta da casa, e adotado pela família. Ao longo do tempo, uma forte e apaixonada relação filial se desenvolve entre o menino e o disciplinado reverendo. Até o momento em que uma revelação ameaça colocar tudo abaixo. Ao descobrir que a mãe verdadeira do amado rebento pertence à casta inimiga (muçulmana), Pandit precisa decidir o que é mais importante: se livrar da criança e se manter na pureza da tradição, ou ceder à dor do coração que sangra a perda de um filho. Uma história que coloca em jogo um drama típico da modernidade: a ruptura de fronteiras entre público e privado, a subjetividade do sujeito pensada como algo tão importante quanto o conjunto de regras sob o qual ele está circunscrito. Filmes como esse iluminam que, seja no Brasil como na India, a forma de contemplar os acontecimentos e as cenas do dia-a-dia é, cada vez mais, a um só tempo universal em suas questões e singular em seus processos. O que o cinema indiano contemporâneo traz a nós é a extraordinária possibilidade de nos pensar como nações irmanadas em suas necessidades mais fundamentais. Bhava Vida!
Obs: Ok, a imagem da entrada do Maracanã na primeira linha é um pouco exagerada e espetaculosa, mas confira o belo vídeo feito pelo colega crítico Carlos Alberto Mattos durante sua viagem à India em 2005 e diga se não dá vontade de sair correndo pra assistir a um filme indiano.