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ENTREVISTÃO – JOÃO MOREIRA SALLES

09.05.2003
Por Críticos.com.br
O ELOGIO DO RECATO

(DANIEL SCHENKER WAJNBERG, MARCELO JANOT e MARIA SÍLVIA CAMARGO)



O que gosto no filme e que gostaria que o público visse é que, através do Nelson, eu tento celebrar determinadas virtudes que acho importantes: esta que é do recato, por exemplo. No mundo que a gente vive, não só no Brasil mas no mundo inteiro, todo mundo expõe a sua intimidade, que é uma coisa muito preciosa. Acho que toda vez que você franqueia sua intimidade, você se embrutece. Que afeto é este que não é precioso? O que é precioso tem que ser guardado entre poucas pessoas, se é de todo mundo não é mais precioso.



João Moreira Salles



Assim como seu personagem, o cineasta João Moreira Salles é um árduo defensor do recato, da preservação de sua intimidade. O filme Nelson Freire, o primeiro documentário de João feito para cinema, não deixa de ser um reflexo disso. Em 60 minutos de bate-papo com a equipe de Críticos.com.br, transcritos abaixo na íntegra, João Moreira Salles esmiúça todo o seu processo de trabalho, numa valiosa aula de como fazer cinema. Boa leitura.



Críticos.com.br - O documentário tem beleza e delicadeza e, neste sentido, é bem



parecido com seu tema central, que é o Nelson Freire. Mas, enquanto cinema, parece um pouco tímido. Isto foi uma opção desde o começo?



JOÃO MOREIRA SALLES – Defina tímido.



Críticos.com.br – Você tem imagens diferentes umas das outras, mas nada tão elaborado quanto seus trabalhos dos anos 80.



JOÃO MOREIRA SALLES – Deixa ver como posso começar a falar sobre isto. Há pouco tempo houve uma retrospectiva no CCBB, dos meus filmes e dos do Waltinho [Walter Salles, irmão de João]. E me pediram para dizer algo sobre minha obra, se havia algo em comum entre eles. Lendo a lista dos documentários que fiz, muito francamente, eu disse: “no fundo ainda não tenho uma linguagem própria, como o Eduardo Coutinho tem. Eu tentei um pouco de tudo. Talvez isto seja uma maneira de me exprimir: você se exprime de todas as maneiras possíveis, achando que cada tema exige uma determinada aproximação”. Quando começei a fazer aquelas séries que nem sei se podemos chamar de documentários, China, o Império do Centro e América eu não tinha a menor idéia do que era fazer um documentário. Não tinha nenhuma reflexão crítica sobre o assunto, zero. Não sabia quem era Flaherty [Robert Flaherty (1884–1951), documentarista americano], nunca tinha ouvido falar no Vertov [Dziga Vertov(1895-1954), documentarista russo], fazia tudo na mais absoluta ignorância. E aí você fica reeinventando rodas que já existiam há muito tempo. No caso ali são documentários clássicos, no sentido de ter uma narração em off que conduz a ação, etc e tal, que é uma invenção do cinema inglês, do Grierson [John Grierson (1898-1972), documentarista inglês].



Depois eu fui fazer perfis, como o do Jorge Amado; fiz vídeos experimentais como o sobre a Ana Cristina César [Poesia é uma ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem]; alguma coisa que se aproxima do cinema direto, que foi a série Futebol; alguma coisa que se aproxima de uma reportagem, como Notícias de uma guerra particular e alguns documentários de ensaio, digamos assim, como O Vale e Santa Cruz. Então na verdade não tenho um raciocínio específico sobre documentário que atravessa estes anos todos em que eu faço documentário.



Pois bem. Quando fui fazer o Nelson Freire, desde o primeiro contato percebi que era impossível , ou melhor, que seria um erro tentar fazer um documentário que obedecesse a uma estrutura digamos cronológica, racional, onde cada cena viesse depois da outra por uma questão de causa e de consequência, como todos os que fiz até hoje, onde há uma preocupação evidente com a clareza da narrativa. Quer dizer, existe uma tese por trás do documentário e as imagens avançam na direção desta idéia, de expor essa idéia da forma mais clara possível. Ou seja, se uma cena está num lugar, ela não poderia estar em outro, não há permuta possível. Isto é uma maneira de perceber o mundo de forma lógica, quer dizer, uma coisa traz conseqüências e portanto a conseqüência tem que vir depois da causa, e por aí vai.



Quando conheci o Nelson percebi que neste caso específico poderia fazer uma coisa que sempre desejei: dar um descanso à razão. A minha leitura do documentário não seria necessariamente a leitura verdadeira, existiriam outras possíveis. Então, na minha cabeça, é um documentário feito para ser percebido muito mais pelos sentidos do que propriamente pela razão. É um documentário mais para os ouvidos, e para os olhos, do que um documentário em que numa determinada seqüência você entende porque a outra existe. O que eu busquei – e o Felipe Lacerda também, que me ajudou no roteiro, e portanto assina o roteiro - é que do entrechoque de sequências surjam relações que não são óbvias: ecos afetivos, enfim. Na verdade este documentário poderia ser outro, estas 31 seqüências estão nesta ordem mas poderiam estar em outra ordem. Seria muito legal se no dia em que o DVD fosse lançado houvesse aquele recurso que tem no CD, em que você aperta uma tecla e ouve as faixas em random, em ordem “randômica” - que você pudesse apertar um botão, as seqüências se embaralhassem e você poderia ver o filme com uma outra sucessão de cenas, e talvez o contato de uma cena com outra produzisse coisas novas.



E foi um pouco isto que eu tentei fazer: dar um certo descanso para uma maneira muito cerebral de fazer documentários e partir para uma aproximação mais sensual, não no sentido do prazer, mas dos sentidos mesmo. Que é um pouco a influência que sofri nesses anos todos de contato com o Eduardo Coutinho. Num filme do Eduardo as pessoas vão falando e elas não obedecem a uma lógica cartesiana – você pode embaralhar estes depoimentos que você provavelmente vai produzir um filme diferente, vai ter impressões diferentes sobre ele. E tendo um personagem como o Nelson Freire, acho certo que seja assim. Ele não se relaciona com o mundo de forma verbal, lógica. Ele se relaciona com o mundo de forma afetiva, intuitiva. É assim que ele se relaciona com a música, ele não tem um discurso intelectual sobre a música, ele tem uma profunda intuição, que é afetiva, da música. Ele jamais vai tocar uma partitura porque ela o intriga intelectualmente. Ele irá tocar se ele gostar profundamente daquilo. Isto é uma coisa simples, se resume a uma única palavra que é ‘amor’. Tem que haver amor. Se houver amor, funciona, se não houver, não funciona.



O Nelson quando toca, e isto sempre me impressionou quando eu ia ouvi-lo no Maracanã…quer dizer… (risos) no Municipal - sempre tenho cometido este ato falho porque o futebol pra mim é tão importante quanto a música (risos). Municipal e Maracanã são dois lugares que eu costumo ir. Mas, retomando, quando eu ia ouvir o Nelson no Municipal uma das coisas que sempre me impressionava era a capacidade de produzir uma música extraordinariamente bela sem nenhum excesso, sem nenhuma retórica, sem nenhum gesto excessivo, sem nehuma máscara facial. A carta que o pai do Nelson escreve para ele não tem nenhum adjetivo e, no entanto, é uma carta de um amor como poucas vezes eu vi. É uma das mais lindas declarações de amor que eu já vi na minha vida, de um pai pra um filho, mas sem um excesso. É a beleza do João Cabral de Mello Neto, aquele rigor que não é matemático, mas que é o da beleza pura. Então seria errado se o documentário tentasse visualmente ser extraordinário, gongórico, virtuoso.



Então houve uma decisão a partir de conversas que tive com o Toca [Toca Seabra, o diretor de fotografia], disse “vamos fazer da maneira mais simples possível, a câmera fica sempre no ombro, por uma questão até de pudor, e quando o Nelson vier em direção a ela você se afasta dele”. Até porque uma das razões por que eu quis fazer o filme, além da coisa óbvia da música, era a minha vontade de investigar esta idéia que eu acho tão importante de ser defendida hoje em dia que é a idéia do recato. O recato implica em não invadir, não se aproximar, guardar uma certa distância respeitosa. E você não consegue fazer isso com a câmera no tripé, ela não tem mobilidade. Então foi assim: “vamos guardar sempre uma distância respeitosa do Nelson. Número dois: vamos esquecer a existência de luz. Não tem luz”. Decidimos não ter luz porque o Nelson não saberia se relacionar com a gente em situação artificial, que você ilumina, principalmente no início da filmagem.



Levamos dois anos para fazer este filme e foram dois anos importantes porque muitas coisas aconteceram do ponto de vista propriamente cinematográfico, coisas que aconteceram que a gente filmou. Se só tivéssemos filmado em seis meses não teríamos filmado o concerto de São Petesburgo, por exemplo. Mas aconteceu uma coisa muito mais importante nestes dois anos: a gente pôde se aproximar afetivamente dele. A entrevista que atravessa o filme inteiro foi feita num só dia e foi no último dia. Quando terminou aquilo, o filme tinha terminado.



Críticos.com.br – Houve uma conquista…



JOÃO MOREIRA SALLES – Que não foi uma conquista estratégica, de “vamos fazer assim que vai dar certo”. Ou acontece ou não acontece. Ou de fato você se torna amigo do Nelson ou não se torna amigo do Nelson. Não tem nenhuma estratégia de tentar uma aproximação afetiva em função do filme. Tudo aconteceu em função de um longo convívio, que produziu a possibilidade da aproximação. E uma aproximação muito respeitosa, recatada, suave. Não é, neste sentido, uma biografia do Nelson Freire. Tem fatos que são públicos da vida dele que não estão no filme porque ele não quis falar. E ele não quis falar não porque não possa falar. Por exemplo, a morte dos pais dele, que é traumática, uma história muito triste, é pública. No ultimo dia perguntei: “você quer falar sobre isto?” e ele disse “não, não quero falar. Não porque eu não possa falar, não é um trauma que me torna afásico, eu posso contar pra você, que é meu amigo, você vai entender. Eu vou dividir uma coisa com você que é importante pra mim, portanto eu só quero que essas palavras cheguem ao ouvido de quem sabe entender a importância que elas têm. Eu não quero falar da morte dos meus pais pro público porque eu não sei quem é o público, seria uma espécie de banalização do fato, de trivialização desse amor que eu sinto por eles”.



Eu acho que ele tem toda razão em relação a isso. O que gosto no filme e que gostaria que o público visse é que, através do Nelson, eu tento celebrar determinadas virtudes que acho importantes: esta que é do recato, por exemplo. No mundo que a gente vive, não só no Brasil mas no mundo inteiro, todo mundo expõe a sua intimidade, que é uma coisa muito preciosa. Acho que toda vez que você franqueia sua intimidade, você se embrutece. Que afeto é este que não é precioso? O que é precioso tem que ser guardado entre poucas pessoas, se é de todo mundo não é mais precioso. O que há de mais precioso do que o afeto? E, no entanto, as pessoas imediatamente querem se franquear para o mundo, querem aparecer na capa da revista, querem casar para que a revista fotografe. Vão pra lua-de-mel com uma revista atrás. Eu acho isto trágico, porque na verdade isto é um embrutecimento da sensibilidade, dos afetos.



Então no fundo esta simplicidade a que você alude, ela é muito mais simples, neste sentido mais do que América, que tem uma certa grandiloquência visual. Nada disto prestaria para o Nelson Freire porque de certa maneira eu diria que o documentário é mais imponente do que o personagem. O personagem é pequeno, nesse sentido de ser recatado e não querer ser mais do que a música que produz, e isto contaminou o filme – eu acho que é uma boa contaminação.



Críticos.com.br – Quando você determinou isto com ele? Logo no começo ou durante o filme?



JOÃO MOREIRA SALLES – Logo na primeira conversa com ele entendi que tipo de personagem tinha nas mãos. Para todos os efeitos, eu, que sou muito influenciado pelo cinema direto…todos os grandes personagens do cinema direto são uma antítese do Nelson Freire: eram o Kennedy, o Bob Dylan, o Marlon Brando, personalidades cativantes, expansivas, que têm uma capacidade extraordinária de cativar a câmera, de seduzir a câmera. O Nelson é exatamente o inverso disto. Então havia um paradoxo interessante, ‘será que é possível fazer um filme em torno de um personagem que não quer ser filmado?’. É claro que isso era uma dúvida. Eu não queria fazer um filme sobre música clássica, só com o Nelson tocando. Isto só teria interesse como documento, enquanto registro, mas eu não faria se fosse apenas isso. Me interessava falar do recato, do pudor, da idéia de que você produz beleza mas você não precisa se vangloriar disto, que é um valor muito importante de ser defendido, e que não depende de um talento extraordinário.



Neste documentário sobre o Lula que eu e o Eduardo Coutinho estamos fazendo você tem um peão do ABC anônimo dizendo como ele fica orgulhoso quando uma peça que ele faz fica perfeita, bem torneada. Basta isto a ele. Este sentido de responsabilidade: “fiz o meu melhor”. E isto não precisa ficar anunciado na revista Caras. O Nelson tem muito disso. Tem uma sequência do filme – que, para mim é a música mais sublime do filme, o terceiro movimento do Brahms (Concerto n˚ 2) - que ele toca com um violoncelo, aquela é uma música que é o seguinte… se Deus existe, Deus ouviu, é sublime. E você olha pra cara do Nelson e do violoncelista, não há um gesto a mais. Isto se aproxima daquele sentimento profundo que determinadas pessoas têm porque têm fé. Fico muito comovido com isto, é a sensação do respeito diante de algo maior do que você. E aí você não vira artista-herói, o centro do mundo, você escapa da armadilha de acreditar na sua própria importância, de se sentir mais vaidoso do que a música que você está produzindo. Eu acho que este é um valor que deve ser defendido, principalmente hoje em dia. Pra mim o filme só poderia ser franciscanamente simples, do contrário estaria dizendo uma outra coisa.



Críticos.com.br – De alguma forma você também acaba subvertendo o que se espera de uma biografia tradicional…



JOÃO MOREIRA SALLES – Sim, o filme só tem aquilo que o Nelson ofereceu para o filme.



Críticos.com.br – A partir do momento em que você está querendo buscar a verdade, dentro do estilo do cinema direto, e você tomou vários cuidados como a luz, a câmera e a lenta aproximação, você não acha que, ainda assim, nos momentos de intimidade, quando ele está com a amiga argentina Marta Argerich você não o sente pouco à vontade, percebendo a presença da câmera?



JOÃO MOREIRA SALLES – Acho que não. Sei que o Carlinhos [Carlos Alberto Mattos, do Críticos.com.br] escreveu isto na sua crítica. Mas este é um filme aberto, que dá margem a inúmeras leituras, inclusive esta, que é uma leitura muito interessante: em se tratando de alguém tão tímido talvez o cinema direto não seja a linguagem apropriada para chegar nele. Mas acho que não fiz um filme de cinema direto. Em cinema direto você não conversa com seu personagem. Uma série de recursos que eu utilizo que são absolutamente anátema no cinema direto.



No caso da Marta, acho o seguinte: tem uma seqüência em que ele está muito tenso com ela, mas ele não está tenso porque estou filmando, mas sim porque ele está entrando em contato com uma partitura que ele não conhece, que ele nunca viu na vida. É a concentração do artista tentando entender uma peça que ele não conhece. Então talvez isto dê a sensação de que é uma tensão da filmagem, mas é uma tensão do ofício, da mesma maneira que ele fica extraordinariamente tenso antes de entrar no palco. Tem uma seqüência que saiu do filme porque o filme ficou muito longo, em que ele está tenso, tenso, tenso, e é possível que alguém achasse que era porque eu estava filmando-o, e eu já o vi inúmeras vezes nos bastidores sem câmera e é rigorosamente a mesma coisa. É a tensão da responsabilidade, a tensão do ofício.



Por que acho que na seqüência com a Marta ele não considera a filmagem uma invasão disto que é tão precioso para ele? Pelo seguinte - esta é uma tese minha, que desenvolvi há pouco tempo pensando sobre o filme: afinal de contas, porque o Nelson quis que este filme fosse feito? Esta é uma boa pergunta, porque ele é um cara que realmente acha que basta tocar e até pouco tempo atrás achava que bastava tocar ao vivo, pois ele não gravava. Ele acha que é pra isto que ele vive e isto é o suficiente, e toda a concentração dele, todo o esforço dele, deve-se creditar a isso. De repente aparecem duas pessoas que ele não conhecia, o Flávio Pinheiro e eu, com a proposta de fazer o filme. Porque ele disse sim? Tenho duas hipóteses, e acho que a segunda vai responder a tua pergunta.



A primeiro é uma hipótese mais superficial, mas eu acho que contribui para que o Nelson tenha feito o filme: ele tem uma imensa admiração pela Guiomar Novaes e não existe nenhum registro audiovisual da Guiomar, é uma vergonha. Quer dizer, você pode ouvi-la, mas não pode vê-la. Parece que existe uma imagem, de uma TV de São Paulo, de 40 segundos dela tocando, mas é uma coisa absolutamente precária. E eu acho que o Nelson deve ter pensado sobre isto e achado que seria importante daqui a cinqüenta anos ter um registro dele guardado, ter um registro de que houve no Brasil um pianista extraordinário.



Mas eu não acho que essa seja a razão principal. A segunda razão é o seguinte: o Nelson me disse uma vez assim: “As pessoas acham que basta ter nascido com talento para ter o seu destino já traçado. Isto não é verdade. Quantos meninos prodígio eu já vi que deixaram de ser meninos e nunca cumpriram o prodígio? Isto já aconteceu tantas vezes. Por que então que alguém se torna um grande pianista e outros não? no meu caso específico muito claramente por causa de duas coisas: pelo amor da minha família por mim [que está no filme expresso pela carta]. Se não houvesse isto eu não teria me transformado no pianista que sou. A segunda coisa é o amor da minha professora de piano por mim”. O Nelson já estava desistindo da carreira naquele momento e foi salvo pela professora.



Então acho que ele quis que o filme fosse feito como uma homenagem a estas duas declarações de amor, a este amparo afetivo que ele teve, do pai por um lado, da professora por outro, e que tornaram possível a carreira do Nelson. Se ele não tivesse o amparo afetivo que teve, pelo que vocês vêem no filme, ele sozinho no mundo teria muita dificuldade.Ele é uma pessoa pra quem o mundo é difícil, o mundo é uma coisa contra a qual ele luta o tempo todo. Dá pra ver no filme como a infância dele foi difícil, ele era frágil, doente. E se não houvesse alguém que o ajudasse nesta luta, que tornasse a vida mais possível e suave, ele provavelmente não teria se transformado no Nelson Freire. E eu acho que a razão pela qual ele fez o filme foi então pra homenagear e deixar claro pra todo mundo que se não fossem o pai, a mãe, a família, a professora, ele não seria o Nelson Freire.



E onde é que entra a Marta nesta história? A partir desta constatação, ele quis que o filme fosse feito porque ele quis declarar o seu amor por tudo aquilo que é importante na vida dele. E o filme, no fundo, tem 31 seqüências, né? Pois poderia se chamar 31 Variações em torno do Tema do Amor, pois é o amor que percorre todas estas sequências: o amor dele pelo cinema americano; o amor dele pela Guiomar Novaes; o amor dele pela Marta; o amor dele pelo jazz; o amor dele pela cadela Danuza, amor pela professora de piano, amor pelo pai e a mãe. Então, quando ele diz: “vem filmar com a Marta Argerich”, ele que desejou aquela seqüência. Não fui eu quem impus. Foi ele quem disse: “você não pode entender quem eu sou se você não entender minha amizade pela Marta, então vem filmar”. Mas ele também me disse: “vai ser muito difícil você entender a qualidade da minha amizade, porque ela não é expressa verbalmente, é pelo olhar e evidentemente pela música”. Então não há muito sentido em achar que ele se sente invadido porque no fundo é ele quem está querendo dizer que ela faz parte do patrimônio afetivo dele. E como o filme no fundo é uma radiografia do patrimônio afetivo do Nelson, acho que não faria sentido não ter a Marta.



Críticos.com.br – O fato de ele topar ser invadido também não necessariamente significa que ele vá se sentir à vontade.



JOÃO MOREIRA SALLES – É, e você sabe que tem uma outra coisa também. No primeiro dia de filmagem foi um pouco tenso, porque ela não entendia direito o que a gente estava fazendo ali. Isto aconteçe quase sempre com uma equipe de documentário, você marca e a pessoa diz: “tá, passa lá em casa”. Não se trata de ‘passar’ por duas horas, você tem que ficar um mês com a pessoa. As pessoas tendem a confundir com reportagem. A Marta julgou que seria uma coisa de meia hora e nós passamos dois dias lá dentro. No início ela ficou um pouco tensa e ele ficou tenso por perceber isto. Mas não acho que seja uma tensão produzida por uma invasão de privacidade.



Críticos.com.br – Queria voltar à questão da fotografia. A opção pela câmera na mão se dá por este aspecto de querer invadir o menos possível, para o Nelson não notar muito a presença dela, ou para dar um dinamismo maior ao filme, já que ele é um personagem mais tímido e o tema também é mais flat?



JOÃO MOREIRA SALLES – Acho que é muito mais pela primeira coisa do que pela segunda. É muito mais para que não se monte um aparato, um set, e o Nelson se sinta aprisionado dentro dele. Uma câmera na mão e a ausência de luz nos dá inteira liberdade de acompanhar o Nelson por onde ele for, ao contrário do outro procedimento que é aquele que diz, “olha, Nelson, só aqui porque se você andar pra lá você fugiu do campo e não há como te acompanhar”. Acho que tem, em parte, um pouco do que você falou também principalmente em relação à música. Música clássica é filmada de forma muito solene o tempo todo, rígida, careta. Não precisa ser assim. Na música clássica em geral a câmera está num tripé. Acho que é uma música de uma extraordinária vitalidade e energia, e pode ser filmada um pouco como se fosse rock and roll. A gente brincava um pouco com isso no concerto de São Petesburgo, a câmera que está perto dele ela tem a vitalidade de uma câmera de concerto de rock, e não há porque não fazer assim.



Críticos.com.br – Enquanto você fazia o filme como foi se ver diante do impalpável? Eu estava lembrando de uma sequência em que a platéia é filmada enquanto ele está tocando, vê-se a platéia sendo atingida, sendo afetada. Então houve conscientemente uma preocupação de conseguir captar o impalpável, o sentido de transcendência que a música provoca?



JOÃO MOREIRA SALLES – Você está falando do indizível, daquilo que não pode ser dito por palavras…Isto é uma consequência direta do personagem que eu resolvi filmar. As pessoas dizem : “o Nelson tem dificuldade falar”. Não, o Nelson fala coisa lindíssimas sem usar palavras – e eu não me refiro apenas à música dele. O Nelson presta a mais linda homenagem à Guiomar Novaes sem dizer uma única palavra – só ouvindo a Guiomar. Tolamente, quis perguntei a ele sobre a Guiomar, e ele tentou falar. Mas dizia coisas como “a mais extraodinária pianista que o Brasil já produziu”, “foi a maior do seu tempo”. Eram frases que não tinham força. Todo mundo poderia dizê-las. O Nelson percebeu isto, a impotência da palavra diante do fato. O fato era tão maior que aquela frase tola. Então ele disse: “espera aí”. E foi pegar um disco dela e me disse: “ouve”. E aí eu percebi que ele estava falando da Guiomar com o rosto dele. A câmera é muito simples neste momento, é só o rosto dele ouvindo a Guiomar e se emocionando com ela. Como ele é um sujeito que graças a Deus não afeta a dor que porventura sente, ele não exagera os próprios sentimentos, não explicita. Então na hora que ele vai chorar ele corta a emoção, e me pergunta: “você gostou?”.



Ele diz muita coisa sem abrir a boca. Acho que isto é da ordem da transcendência. De uma comunicação que não é verbal. Que se aproxima muito de uma experiência para quem tem fé, uma experiência religiosa. Você não nomeia o absoluto. O absoluto por definição não tem nome. Diante dele você se cala e se relaciona de outra maneira. Pra um músico como o Nelson, em determinados momentos a música é isso, é um absoluto extraordinário sobre o qual o discurso verbal é pobre. Quem tem uma profunda compreensão da música, uma profunda relação com ela – e eu nem acho que seja este o meu caso –, nas salas de concerto você encontra estas pessoas, você não vai entender o que está acontecendo ali perguntando para a pessoa e esperando que ela responda, mas sim olhando para o rosto dela e vendo como ela está reagindo. Da mesma maneira como na Igreja: quem tem fé não fala da fé que tem. Silencia sua fé. E isto é da ordem do mistério, do indizível, do que se cala. À medida que fui fazendo o filme, isto foi me interessando e me interessando muito. Além do que, vivemos num mundo em que se fala demais, tá todo mundo falando muito. E é legal poder dizer tanta coisa com o silêncio. Este é um filme que usa muito o silêncio. Por causa do Nelson, acho que, diferentemente dos meus outros filmes, uso muito mais reticências do que pontos. Frases interrompidas que frases que se concluem. É tudo muito aberto, inconcluído.



Críticos.com.br – No aspecto do indizível, você tem uma boa sacada que é filmar bastante os olhos dele…



JOÃO MOREIRA SALLES – Quando ele fala da Guiomar, principalmente.



Críticos.com.br – Em outros trechos também, até tocando. Mas vocês filmaram as platéias de vários outros concertos?



JOÃO MOREIRA SALLES – Não. Só daquele. É muito difícil filmar platéia principalmente em película, por causa da luz. A platéia está sempre no escuro até a hora em que o pianista se retira. No caso de São Petesburgo, o teatro é um teatro curioso porque ele é todo branco e mantém as luzes acesas. É o único que conheço que funciona assim, e foi o único lugar em que consegui filmar a platéia.



Críticos.com.br – Estava pensando como foi o diálogo de artistas. Quer dizer, guardadas as devidas diferenças entre o trabalho do Nelson Freire e o seu trabalho, como foi dialogar artisticamente, onde há alguma semelhança entre o seu trabalho e o trabalho dele? Houve alguma interação neste sentido?



JOÃO MOREIRA SALLES – Vocês fazem perguntas que nunca me fizeram antes. Isto é bom, isto é ótimo. (risos)



Críticos.com.br – Espero que seja um elogio.(risos)



JOÃO MOREIRA SALLES – É um grande elogio, mas ao mesmo tempo uma grande responsabilidade da minha parte. Olha, eu fico pouco confortável com a palavra artista quando você se refere não só a mim como ao documentarista. O documentarista não pode ter a pretensão de um artista. Então eu vou recusar a sua pergunta se formulada desta maneira. E vou respondê-la de uma maneira mais simples. Falar, independentemente do fato de ser ou não artista, como é que nós nos relacionamos, como duas pessoas que se encontraram e não se conheciam e como uma influenciou a outra. Acho que tenho determinadas preocupações em relação às coisas do mundo que na minha cabeça sempre foram muito mais trabalhadas cerebralmente, pensadas de forma crítica, do que o Nelson . A maneira como ele se relaciona com as coisas é muito mais intuitiva do que analítica. Eu sou muito mais analítico, mais crítico e menos intuitivo.



Mas por vias diferentes eu cheguei a um lugar parecido com o do Nelson no que diz respeito a o que eu acho que deve ser preservado, do que acho que é vulgar e deve ser excluído da minha vida. E é isto que fez com que houvesse uma empatia entre o Nelson e eu. Este desejo de recato, esta vontade de apenas fazer bem o que você faz. É algo que eu também quero perseguir na minha vida e no meu trabalho. Então acho que respondo à sua pergunta dizendo: o Nelson no Municipal e eu o assistindo, adolescente, espantado com a capacidade que ele tem de produzir uma música extraordinariamente bela, pessoal e nada fria, de forma absolutamente contida. Isto é um valor que eu acho extraordinário.



Fazer um filme sobre ele é tentar reproduzir um pouco isto na linguagem que eu escolho para documentá-lo. É um filme onde não há uma fusão, onde a letra branca surge sobre o fundo negro, é meu primeiro filme sem trilha sonora – isto se você entender trilha sonora como uma música que se aplica a uma imagem para dar à imagem o sentido que ela sozinha não tem. A música do filme está sendo produzida em tempo real, mas ela não atravessa o que o Nelson está dizendo. Não tem nenhuma fala dele com a música por baixo. Então tem essa boutade: eu, que já fiz filme sobre violência, etc, vou fazer um filme sobre música que tecnicamente não tem trilha sonora.



Então é um filme que tentou alcançar na sua feitura, na sua falta de penduricalho, de retórica, a mesma bela simplicidade que o Nelson tem quando produz a sua música. Claro que guardadas todas as diferenças. Acho que ele é um talento excepcional no sentido de que existem poucas pessoas no planeta que podem tocar como ele toca e evidentemente há uma distância monumental entre o que o Nelson é capaz de fazer e o que eu sou capaz de fazer. Acho que deste encontro de sensibilidades parecidas resultou um filme que eu acho que tem muito a cara dele e muito a minha cara. Nesse sentido é um filme sincero que reproduz o que eu e Nelson achamos do mundo. E ele reflete um pouco a música que o Nelson faz. Bela, porém simples. Muito complexa - simples no sentido de não se anunciar como extraordinária. Simples como o cinema de Eduardo Coutinho, que é tudo, menos simples. Mas ele tem uma austeridade que produz a extraordinária beleza. Quando o Nelson toca é isso que acontece. E eu gostaria que o filme tivesse conseguido reproduzir na sua estrutura, na maneira como filmei e na simplicidade como eu o editei, aquilo que ele tenta flagrar.



Críticos.com.br – Queria que você falasse da seqüência que eu acho que vai gerar maior número de comentários e interpretações, que é a seqüência em que você registra a tentativa daquela equipe de TV francesa de entrevistá-lo. Daquilo a gente pode fazer várias leituras: primeiro, você pode ter pretendido mostrar o quanto resultaria num desastre se você optasse por fazer seu filme naquele caminho. Segundo, você estaria, com aquela cena, reforçando o lado de cinema direto e verdadeiro do seu filme, colocando aquilo como uma antítese a ele, e o terceiro seria que você teve intenção de mostrar o quanto é ridículo este estilo de documentário, onde é tudo muito fake. Porque depois você reforça esta tese no final, quando você foca o rosto do Nelson diante daquela pergunta ridícula.



JOÃO MOREIRA SALLES – Olha, todas estas leituras fariam sentido se este fosse um documentário roteirizado, se eu pudesse ter antecipado aquela cena. Acredito cada vez mais que as coisas só significam o que elas são, não outras coisas. Os eventos são singulares. Aquilo não representa nada além daquilo mesmo. Não vejo que aquilo seja uma afirmação geral sobre um estado de alguma coisa. Já me perguntaram: “ali você está criticando o jornalismo de televisão?” Eu podia ter flagrado uma entrevista extraordinariamente bem feita por um jornalista bem preparado. E, se tivesse algum valor para o meu documentário esta cena estaria incluída sem que ali eu estivesse fazendo uma apologia do estado extraordinário e magnífico do jornalismo no mundo. Acho que, se tem uma coisa que o Eduardo Coutinho ensina é que só há valor no singular. As coisas dizem respeito a si mesmas. Acho que todas estas leituras são legítimas, mas elas são leituras.



Aquilo aconteceu por puro acaso, o Nelson estava num estúdio e um amigo dele bateu à porta e pediu a ele que ajudasse a divulgar o festival que estava organizando dando aquela entrevista. E como eu não tinha mais nada para fazer naquele momento, fui junto. E subitamente começou a acontecer aquela coisa. O que acho realmente bacana em documentário, que existe menos na ficção, é esta intuição do momento. Esta capacidade de decodificar o instante, de entender que aquilo que está acontecendo naquele instante é interessante para você e, ao mesmo tempo, saber como filmar. Porque tudo está sendo decidido naquele momento: ‘então eu filmo a criança ou a mãe? O rosto do Nelson ou o jornalista ?’ Isso tudo tem que ser decidido na hora, sem roteiro. Tem uma câmera, pelo menos cinco personagens ali e você tem que tomar decisões instantâneas pensando na história que você quer contar e na edição – se você terá imagens necessárias pra conseguir dizer aquilo que vocêestá intuindo que está acontecendo na sua frente. O único valor daquela sequência é este, eu acho, e ela de fato permite diversas leituras.



Outro dia a [jornalista] Maria do Rosário Caetano me fez uma pergunta muito boa sobre aquela cena. Ela achou que aquilo era uma grande crítica à dificuldade de ser brasileiro. Porque, se você é brasileiro lá fora, você só pode ser bom porque você é folclórico. Então seu único interesse para eles reside no fato de que você fala com sotaque – coisa que o Nelson não faz, o francês dele é perfeito, mas o Nelson com sotaque perfeito não interessa – ou os trópicos atrapalham seu modo de tocar. Só interessa o estilo “Carmem Miranda com banana na cabeça”. Se ele entrasse com uma banana na cabeça... Então ela acha que esta cena significa isto. E talvez signifique.



A grande vantagem dos discursos abertos é que eles permitem qualquer tipo de interpretação. Do meu ponto de vista ela representa apenas o momento do ridículo daquela sequência. E explica, de certa maneira, porque o Nelson quase sempre diz não às entrevistas, porque quase sempre é isto que acontece. E ele tem que se dedicar ao trabalho dele,. sem perder tempo com esse tipo de coisa. E isto me lembra uma outra coisa: todo mundo me pergunta, ‘você é irmão do Waltinho, quando é que você vai fazer o seu primeiro longa de ficção?’ É uma pergunta curiosa, porque ninguém pergunta ao sujeito que tem dez longa metragens de ficção quando é que ele fará o seu primeiro documentário.Existe na cabeça de quase todo mundo uma concepção hierárquica.



Críticos.com.br – Como se você estivesse fazendo teatro infantil e depois…



JOÃO MOREIRA SALLES – Exatamente isto. Acho que não há nada que eu não queira exprimir que eu não possa exprimir pelo documentário. O documentário é um dispositivo poderoso, como é a ficção, e por enquanto não senti necessidade da ficção. Em segundo lugar, ele me dá uma coisa que a ficção não me daria: este exercício constante de ler o mundo que o fotógrafo de rua tem, e esta capacidade de saber a hora em que o mundo está sendo eloqüente. É decodificar o instante. E isto só o documentário e a fotografia de rua te permitem ter. Por isto que a ficção tem vários takes, para você poder eliminar os acasos e terminar com o plano que você imaginou. A graça do documentário é não poder imaginar o filme antes de fazê-lo. A graça é ser surpreendido o tempo todo, você depender desesperadamente do acaso.



Tem uma sequência que para mim é uma grande metáfora do documentário: é a sequência (essa em que o Nelson está muito tenso) em que ele está lendo uma partitura pela primeira vez junto com a Marta. Ele está tenso porque é a primeira vez que ele está vendo aquilo, e ele precisa entender aquilo – até porque ele está sendo filmado. Ele não quer errar, ele quer interpretar corretamente de pronto. E no fundo, nos melhores momentos da nossa profissão o que a gente faz é uma leitura à primeira vista do mundo. O mundo está acontecendo e você tem que entender a partitura na hora. É o que aconteceu na sequência da televisão: eu estava vendo aquilo pela primeira vez. Eu tinha que entender, decodificar, registrar e pensar na edição no próprio momento em que aquilo ocorria. E isto é uma coisa que parece extraordinária no documentário e que tem a ver com a idéia do acontecimento.



O documentário é um pouco esta arte de estar presente na hora do acontecimento, sabendo que ele não se repetirá. Quando ele acontece pela segunda vez ele passa a ser uma reprodução. E é isto que eu gosto do cinema direto, e não a ingenuidade de supor que ele te dá um acesso à realidade sem mediação nenhuma, que é possível o documentário objetivo. É claro que é sempre uma construção. Diria mais, é a síntese do encontro do mundo com a minha imaginação. E resulta na minha versão do Nelson Freire que não é o Nelson Freire, é a minha impressão dele. Isto o cinema direto que descobriu, mais do que qualquer outra escola do cinema não-ficcional. Descobriu que você precisa olhar para o mundo e observá-lo, saber onde ele está se manifestando.



Tem uma cena do primeiro documentário do cinema direto, que é o Primary [1960], sobre a campanha do Kennedy que ele chega num comício numa igreja e a comunidade ali reunida é de católicos poloneses e a Jacqueline tem que falar algumas palavras em polonês, língua que ela não fala. Ela decorou. E aí o Maysles [Albert Maysles, 1933-, documentarista americano] percebe que ela está nervosa. Se você tem os recursos tradicionais do documentário, ou seja, a narração, a trilha, etc, você consegue dizrer de forma muito simples que ela está nervosa. Por exemplo, poderia haver uma voz em off avisando: “Jacqueline está nervosa”. Mas como o cinema direto abriu mão de todos estes recursos – pelas razões erradas, porque achou que abrindo mão de trilha, de entrevista, de intervenção você teria um acesso direto à realidade, um retrato fiel do mundo – porém, como você abriu mão destes recursos você tem que olhar desesperadamente para ela e saber onde ela está exprimindo o nervosismo dela. E aí ele percebe que é nas mãos. Então subitamente você tem um corte e vê-se as mãos dela entrelaçadas atrás nas costas e os dedos mexendo. Visualmente você percebe que ela está nervosa e isto é muito mais forte que qualquer locução. O cinema direto fez isso, obrigou o documentarista a olhar o mundo, olhar os detalhes do mundo.



Você tem que estar extraordinariamente atento ao mundo. E ter que estar atento ao mundo é uma coisa que tem valor. Significa dizer que os pequenos gestos interessam, as pequenas coisas são capazes de dizer muito. Dedos escondidos atrás das costas de alguém são muito eloqüentes. Então, se você está disposto a achar que isto é eloqüente, então uma vida mediana é eloqüente. Uma vida sem grandes feitos pode ser profundamente tocante. Um discurso de uma pessoa comum dizendo coisas comuns pode ser lindo. E o Eduardo Coutinho está aqui para provar que isto pode ser verdade. E por isto só me interessa o documentarista que sai para o mundo disposto a se surpreender com ele. O documentarista que já saiu pro mundo com uma tese prévia, querendo colher as imagens que caibam numa tese que ele tem, é um documentarista que vai produzir um filme sem força, sem vitalidade. É uma das maneiras que você tem de distinguir o que é ficção e o que é documentário, como você incorpora ou não o acaso.



O documentário precisa do acaso, toda a vitalidade do documentário nasce do acaso. Nasce do Nelson dizer: “peraí, eu não vou mais falar sobre a Guiomar porque eu estou vendo que não funciona. Mas deixa eu pôr um disco”. Isso não foi planejado. E v. tem que entender que é no rosto que ele estava homenageando ela. Há dez anos, quando eu ainda era ingênuo na minha profissão, eu diria para o Toca: “desliga a câmera, vamos ouvir isto porque ele quer, apenas por respeito, e depois a gente retoma a entrevista”. Com o tempo, vendo cinema direto, vendo o Coutinho, percebi que é o olhar que exprime. São as pequenas coisas e não as grandes.



Críticos.com.br – Você seguia o Nelson ao longo de um dia de trabalho inteiro?



JOÃO MOREIRA SALLES – Não. Eu perguntava o que seria possível. Dizia que tudo, a princípio, me interessava, mas que não queria produzir nada que trouxesse algum desconforto. Então ele dizia: “agora eu estou estudando, estou muito concentrado, agora não, daqui a pouco sim”, etc e tal. Era tudo negociado.



Críticos.com.br – Porque este é seu primeiro filme lançado no cinema? Você pensou em lançar este no cinema porque o momento está propício a isto?



JOÃO MOREIRA SALLES – Não, isso é uma outra coisa. Acho muito legal colocar no cinema. Mas não acho mais legal do que estar na TV. Quer dizer, não existe a piada do teatro infantil: “eu estava trabalhando na TV, finalmente cheguei à maturidade com o cinema”. Acho essencial continuar a fazer TV, é o veículo pelo qual a grande maioria dos brasileiros entra em contato com o audiovisual. Então você não pode achar que o cinema é mais importante que a TV. Nunca tive o fetiche da grande sala. É muito legal estar nela, nunca me senti frustrado porque fazia documentários para a televisão. O Nelson foi para o cinema por uma única razão, que me parece muito clara: por causa da música. No concerto de São Petesburgo são 80 e tantos músicos captados por 16 microfones. É muito difícil entender a complexidade daquilo tudo se você está ouvindo isto numa caixinha de som da TV. Vocês que são de cinema, é como você assistir visualmente a um filme de David Lean numa TV de 12 polegadas. Miau, o filme vai embora. De certa maneira, é a mesma coisa que acontece do ponto de vista sonoro com o Nelson Freire: se você ouve o Nelson Freire pequenininho, o filme todo fica pequenininho. Então desde o início achei que este era um filme que precisava ser ouvido no cinema, muito mais do que visto no cinema. O próximo, que é sobre o Lula, também vai para o cinema porque é um filme em parceria com o Eduardo Coutinho. Como ele só trabalha para o cinema, a minha parte do documentário também vai para o cinema. Mas o seguinte provavelmente volta para a televisão.



Críticos.com.br – Mas aí é papo para uma outra conversa.



LEIA A ENTREVISTA DE EDUARDO COUTINHO

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