Especiais


FESTIVAL DE BERLIM 2013 (I)

08.02.2013
Por Ricardo Cota
Ricardo Cota comenta os filmes exibidos no Festival de Berlim 2013

NA COMPETITIVA, DESTAQUE PARA O CINEMA PACIENTE DE JAFAR PANAHI





Todos nós, autores e leitores deste site, torcemos para o fim das sanções impostas pelo regime iraniano ao diretor Jafar Panahi, condenado a seis anos de prisão e a vinte sem exercer a profissão de cineasta por ser considerado promotor de ”propaganda contra o sistema”. E por isso admiramos sua determinação criativa de. mesmo diante de todas as limitações, encontrar brechas para enviar suas mensagens cinematográficas para o mundo. Mas o principal: seus filmes são de interesse não por ele se encontrar preso, mas por ser inventivo até trancado num armário escuro.

Em Closed Curtain é o que chega a acontecer em pelo menos uma sequência, quando o protagonista, trancado num armário com seu cachorro para não ser descoberto pelo exército, ainda assim filma sua condição iluminando o espaço com apenas uma lanterna. Closed Curtain inicia e termina com o mesmo plano. De dentro de uma casa, o espectador vê o exterior pelas frestas de uma grade. Acompanha-se a chegada de um homem com um cachorro na mochila. O espaço vira exílio para ambos, pois os cães foram considerados seres impuros pelo regime autoritário.

Para maior segurança, o cidadão fecha as janelas com uma cortina evidenciando ainda mais o distanciamento entre ele, seu cão e o mundo. A situação se torna mais tensa quando um casal de refugiados políticos invade a casa, apesar da reação contrária do dono do cachorro. Uma relação de proximidade entre o senhor e a jovem se adensa até que entra em cena o mais inusitado dos personagens: Jafar Panahi, ele mesmo, que passa a dividir o território com seus personagens.

A quebra de barreira entre cineasta e atores propõe mas não realiza supostas pretensões metalinguísticas. Ela ocorre com naturalidade. São dois mundos não conflitantes e muito menos reflexivos. São estruturas que se acumulam e revelam o estado de confusão e de indefinição artística do diretor impedido de exercer seu ofício autoritariamente e que resiste através do simples ato de filmar, de acumular ideias, de criar e de documentar tudo como parte de um único processo.

Closed Curtain, ao contrário do que supõem os reducionistas, não mistura ficção e realidade. Closed Curtain soma ficção e realidade. O cinema de Jafar Panahi deixou de fazer do protesto sua arma. Ele é hoje o cinema da perplexidade, da constatação do absurdo político pelo simples clicar de uma câmera ou mesmo de um smartphone. O protesto é o simples registro, a simples negação a se submeter a uma ordem estúpida de não filmar. As imagens do diretor pacato, ao fogão, esquentando a toda hora um chá tranquilizante, é a sua mensagem mais direta. Em paz, resisto. E em paz registro. A luta continua. Agora também contra a perseguição ao cães.



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FILME SOBRE ARTISTA PLÁSTICO IRANIANO MOSTRA A FORÇA DO DOCUMENTÁRIO EM BERLIM



Exibido na mostra Panorama Dokumente, dedicada exclusivamente a documentários inéditos, Fifi Howls From Happiness, de Mitra Farahani, é um dos candidatos mais fortes ao prêmio do júri popular na categoria. Apoiado numa entrevista com o celebrado artista plástico Bahman Mohasses, que obteve fama no regime do Xá, “Fifi” surpreende por fugir às características dos documentários formais sobre personagens ao estabelecer entre diretora e entrevistado uma relação calcada na simpatia e no respeito (mais dela do que dele), que descamba para a metalinguagem, resultando num filme feito praticamente a quatro mãos.

Mitra, de 37 anos, já é veterana em Berlim. Em 2002 ganhou o Teddy Bear (prêmio dado a filmes de temática gay) com Juste Une Femme. Em 2004 exibiu Tabous – Zohre & Manouchehr. Depois de passar um tempo detida pelo governo iraniano, em 2009, Mitra, que também é artista plástica, conseguiu escapar e decidiu partir ao encontro de Bahman Mohasses para documentar sua história. O encontro se dá num pequeno hotel da Itália, onde o pintor, escultor e poeta vive seu exílio.

A princípio Mitra deixa Bahman à vontade. Tão à vontade que passa a aceitar suas sugestões de como o filme deve ser editado. Individualista convicto, contrário a todas as estruturas, inclusive a democracia, Bahman desenrola ao longo dos encontros sua filosofia própria, abordando temas como arte, homossexualismo e imortalidade. Seu gesto mais polêmico foi, ao sair do Irã, destruir grande parte de suas obras, rasgando telas e quebrando esculturas. “Arte é como a vida, e a vida não é eterna”, resume. Ao longo do filme, no entanto, o espectador percebe que o gesto de Bahman pode ser também uma reação a que sua obra fosse destruída por regimes ditatorais. No fundo, seu manifesto aparentemente egoísta reduz: “Se é para destruir, que seja por minhas mãos”.

O respeito da cineasta pelo mestre faz com que as ideias que ele propõe para o andamento do documentário sejam adotadas por ela na própria tela. Bahman sugere o filme em capítulos e diz como eles devem começar. Também indica as músicas que devem servir de trilha. Sua relação com a cineasta é tudo menos passiva. Em determinado momento, diante da obsessão de Mitra de filmar tudo, Bahman envenena: “Menina, se você tivesse nascido no comunismo ia receber uma medalha de honra ao realismo-socialista”. Mitra releva com grandeza e acompanha os hábitos de Bahman de fumar incessantemente, de rir das próprias piadas, de zombar da igreja católica e citar quase religiosamente trechos da versão cinematográfica de “O Leopardo”, dirigida por Luchino Visconti.

O mais emocionante fica para o o final, já depois da morte de Bahman, quando ouvimos em “off” a voz do artista “ditando” a última cena enquanto, na tela, Mitra a constrói, incluindo apenas um delicado toque viscontiano. A imagem desdiz sutilmente as afirmações peremptórias de Bahman Mohasses de que a imortalidade é uma ilusão. Ponto para a diretora, que encara o documentário não apenas como registro, mas como estrutura criativa de narração.







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DRAMA RURAL HOLANDÊS, MATADOR DE ALUGUEL PORTUGUÊS E SCARLETT JOHANSSON ESBANJANDO GOSTOSURA: FLASHES DE BERLIM



A mostra Panorama do 63º Festival Internacional de Cinema de Berlim abriu com o drama rural It’s All so Quiet, da cineasta holandesa Nanouk Leopold. Para a sala lotada do Friedrich Palast, a diretora fez uma apresentação curta mas com simpático toque de humor. “Estou muito feliz. Meu primeiro filme teve um público de três mil espectadores. Este, só hoje, nesta sala, já conseguiu a metade disso.”

O humor da apresentação, no entanto, não encontrou eco no realismo seco de It’s All Quiet. Em 94 minutos, Nanouk mostra o dia a dia de um pequeno sítio nos cafundós holandeses que vive dias de decadência. O patriarca agoniza na cama sem poder fazer absolutamente nada sem o apoio do filho. Este, por sua vez, cumpre as funções de acompanhante do pai e herdeiro da posse sem o menor entusiasmo. Tudo ocorre à sombra da trágica morte de um irmão, favorito do patriarca, e cujo nome é lembrado sempre como o verdadeiro herdeiro e perpetuador do agonizante empreendedorismo. A diretora consegue captar a difícil relação parental entre homens, sublinhando a aceitação reprimida e a negação explícita. Um exercício forte de naturalismo intimista.

Exibido na mostra Forum, Terra de Ninguém , da portuguesa Salomé Lamas, vencedor do DocLisboa de 2012, ecoa um outro doc: Eu Fui a Secretária de Hitler, de Andre Heller e Othmar Schmiderer. Como no filme alemão, a diretora se detém no depoimento de um único personagem, que em 72 minutos conta um impressionante relato de suas passagens como mercenário pelos governos de Portugal, Estados Unidos e Espanha com o único propósito de matar adversários indicados pelos governistas. Os relatos em si, sem qualquer imagem de apoio, já causam o desconforto necessário para colocar o espectador diante da seguinte questão: quem é pior – os que ordenam ou os que cumprem? A conclusão por ambos não vai ser difícil.

O refresco da Berlinale fica por conta de Don Jon’s Addicction, dirigido e estrelado por Joseph Gordon-Levitt, exibido no Panorama. No filme de estreia, o ator-diretor optou por uma comédia de costumes – ou seriam maus costumes? – do contemporâneo mundo virtual. Seu personagem é jovem, bonito, sarado e pegador. Mas vive em crise porque prefere as fantasias das redes de sexo pornô à crueza do sexo real, com sua dinâmica própria bem distinta da dinâmica mecânica do sexo por computador. Sua vida promete mudar quando ele se apaixona por uma irresistível Scarlett Johansson, no auge da forma, exibindo sensualidade e entrega de tirarem o fôlego. Mas a adição fala mais alto e o jovem terá que tomar uma lição de vida da experiente Julianne Moore para voltar ao real.

Oportuno, de pegada fácil e humor imediato, Don Jon’s Addiction até mostra um diretor promissor, de comunicação fácil e observação social esperta. Mas entre os mecanismos do riso fácil e a coragem para se aprofundar nos deslocamentos do sexo por teclado, o filme fica com as curvas, lábios, sorrisos e madeixas de Johansson como portadores de sua melhor mensagem. O que não é pouco.



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KUNG FU NOIR MOSTRA POR QUE WONG KAR WAI É GRANDE MESTRE



Antes da sessão de abertura do 63º Festival de Cinema de Berlim, Wong Kar Wai subiu ao palco do monumental Friedrichstadt-Palast e celebrou: “Para mim é uma honra abrir um festival internacional como este com um filme do gênero kung fu”. E em seguida esclareceu: “Ao contrário do que muitos pensam, o kung fu não trata de luta, mas de princípios e filosofia. E é disso que meu filme trata”.

The Grandmaster, exibido hors concours, não é portanto um filme de kung fu qualquer. A primeira sequência, arrebatadora, mostra um tratamento das lutas bem diferente daquele imortalizado nos filmes de Bruce Lee, por sinal citado em justa homenagem ao término do filme. Numa noite chuvosa e escura, os personagens exibem seus dotes marciais num embate fotografado com requintes de esteticismo em cada detalhe, dos pingos de chuva às gotas de sangue, que sem o exibicionismo da moda salpicam na tela. Kar Wai recorta a luta em closes e detalhes dos golpes, sobretudo de pés e punhos, seguidos de plongées giratórios que resplandecem a aura de balé marcante das artes marciais.

Ao longo do filme, outras lutas virão. Pelo menos duas antológicas, a do casal de protagonistas na escada de um bordel, que é quase um tango marcial, e o conflituoso choque entre irmão e irmã à beira de uma linha de trem. São momentos em que o tratamento cinematográfico típico de Kar Wai, o maior esteta do cinema contemporâneo, encontra-se com o kung fu. Tudo em original estado de harmonia e sublimação.

O filme é um épico de duas horas mostrando a história de um casal de mestres de kung fu que transitam de partes distintas da China. Ela, do norte; ele do sul. Os dois se encontram na cidade de Foshan durante a invasão japonesa de 1936. Seus métodos são diferentes e seus destinos também. Ela (Ziyi Zhang, estupenda) enfrenta o ódio pelo irmão colaboracionista, de quem tenta se vingar por haver traído as doutrinas paternas. Ele (Tony Leung, sempre aplicadíssimo) segue um caminho próprio, solitário, depois da perda dos filhos e da mulher. O kung fu, de alguma maneira, é por vezes refúgio e extensão dos dramas internos de ambos.

Entre idas e vindas, o roteiro trata de questões como lealdade, traição, fidelidade e, é claro, amor, o território por onde o diretor de Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love)transita com naturalidade. É mais uma vez o estilo de Kar Wai, com seus cortes curtos, composições de elementos que ganham vida própria, como lâmpadas, flâmulas, cerejeiras, flocos de neve, pingos de chuva e a eterna fumaça, seja do ópio, do cigarro ou mesmo dos trens que levam e trazem sua narrativa. A edição dos filmes de Kar Wai merece um estudo próprio. De alguma forma, remete aos ideogramas, cujo sentido nasce da soma de traços e símbolos.

Perto do final do filme, a protagonista diz que os princípios deixados por seu pai se resumem a três verbos: ser, conhecer e fazer. Ela pecou no último. Kar Wai sabe como poucos diretores contemporâneos fazer da técnica e de seus técnicos aliados em busca de um formalismo particular. O cineasta também conhece, e não esconde, muito da história do seu ofício, daí a citação final justíssima ao Enio Morricone do fundamental Sergio Leone de Era Uma vez na America, grande referência do filme. Finalmente, ao contrário de sua protagonista, Kar Wai faz. The Grandmaster reaviva os filmes de kung fu, lhes confere status definitivo de gênero a ser respeitado e mostra porque o cineasta já deixou de ser referência para assumir a condição de grande mestre do cinema moderno.



 



 

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