Essa postagem será atualizada regularmente ao longo do Festival, diretamente de Cannes
(X) JÚRI OUSA E ACERTA EM CHEIO AO DAR PALMA DE OURO AO LIBERTÁRIO “A HISTÓRIA DE ADÈLE”
Para quem esperava do júri presidido por Steven Spielberg um resultado mais convencional, apostando as fichas em “A Grande Beleza”, potente exercício de estilo de Paolo Sorrentino, o resultado da mostra competitiva do 66o Festival de Cinema de Cannes foi uma verdadeira paulada. Justíssima, por sinal, e digna de todos os reconhecimentos.
Seria de muita má-fé acreditar que, no ano em que seis franceses concorreram, a escolha justamente de um francês tenha sido influência de qualquer tipo de pressão. A contemporânea e veraz história de amor entre duas pós-adolescentes é filmada com vigor, realismo e autenticidade. A cena de sexo entre as duas protagonistas, que já entrou para a história, foi pelo visto aprovada pelo júri, que esnobou assim os gays patetas de “Behind the Candelabra” (isso ainda vai virar musical da Broadway), o decadentismo de Sorrentino e sobretudo a apelação entediante à violência gratuita. Muito bom quando júri e Prêmio da Crítica vão para o mesmo filme. Vitória do cinema.
A se lamentar apenas que Adèle Exarchopoulos (já eleita, sem consulta, musa deste críticos.com) não tenha levado o prêmio de melhor atriz. Mas não há pressa. Ainda vamos ouvir muito este nome nas próximas décadas. Além do mais, Berenice Bejo, como a esposa atormentada de “O Passado”, mereceu. Palmas também, sem trocadilho, para o alcoólico senil de Bruce Dern no precioso “Nebraska”, que desbancou Toni Servillo, para “Tal Pai, Tal Filho”, Prêmio do Júri, e “Inside Lewis Davis”, dos irmãos Coen, Grande Prêmio do Júri. Ou seja, à exceção de Amat Escalante, melhor diretor por “Heli”, quem não brincou com fogo na última edição de Cannes saiu bem na foto.
(IX) SEMANA DA CRÍTICA PREMIA "SALVO"
O italiano “Salvo”, filme de estreia co-dirigido por Fabio Grassadonia e Antonio Piazza, foi o grande vencedor da 52a Semana da Crítica do Festival de Cannes. Presidido pelo cineasta português Miguel Gomes, diretor de “Tabu”, o júri optou pela ousadia formal em detrimento da comunicabilidade do indiano “The Lunchbox”, que seduziu o mercado com seu humor melancólico inspirado no epistolar “Charing Cross Road” e que está com a carreira internacional assegurada.
Melhor para “Salvo”, filme que este crítico considerou potencial vencedor do Camera D’Or, concedido a cineastas estreantes, que ganha com o prêmio um impulso comercial necessário. Com grande personalidade de estilo, “Salvo” sem dúvida destaca-se como exercício de cinematografia e justifica a apreciação da crítica. Porém o roteiro frouxo e inverossímil (ver post número 1 desta cobertura), deixa muitas promessas pelo caminho. Esperemos que pelo caminho também não fiquem Fabio Grassadonia e Antonio Piazza, os diretores laureados da elogiada Semana da Crítica.
(VIII) JAMES GRAY ADORMECE E JODOROWSKY ILUMINA EM IMPRESCINDÍVEL DOCUMENTÁRIO
E lá se vai mais um superestimado. Depois de Nicolas Widing Refn frustrar os admiradores do seu potente “Drive”, como este crítico, chegou a vez de James Gray não mostrar a que veio. “O Imigrante”, que alimentava grandes expectativas, tem de tudo, menos alma. Tem Marion Cotillard no elenco, tem um roteiro de pretensões épicas, tem um fotógrafo aplicado em dar um tom pastel linear coerente, mas não tem punch. Filme de época que se refugia nos cenários de estúdio para não revelar a fragilidade da produção, “O Imigrante” é um roteiro original de James Gray desprovido de qualquer convicção. A trama pretende acompanhar a trajetória de uma imigrante polonesa recém-chegada aos Estados Unidos dos anos 20. Não bate nem como filme de época nem como releitura de um tema pulsante no país de Obama. Tudo muito frio, fake e impessoal, como Joaquin Phoenix.
Mas Cannes resiste. E resiste no revelador documentário do jovem e talentoso Frank Pavich, “Jodorowsky’s Dune”. Do alto dos seus 84 anos de pura genialidade multimídiatica, o ator, escritor, roteirista, cineasta, tarólogo e o que mais lhe couber em termos curriculares Alejandro Jodorowsky conta com detalhes o megalomaníaco processo de filmagem do seu maior delírio cinematográfico: a realização do filme “Duna”.
Logo de início, Jodorowsky, no seu estilo franco, entrega por que tanto fascínio pelo livro de Frank Herbert : “Porque eu nunca li!” Segue-se uma aventura quixotesca em que o Sancho Pança será o produtor Michael Seydoux, que tentará viabilizar o inviável: o delírio de Jodorowsky. Para resumir a escala delirante, Jodorowsky quer no elenco Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dali. Na trilha, Pink Floyd. O mais curioso é que em sua viagem assumidamente megalômana, Jodorowsky consegue atrair cada um dos players para sua empreitada, quase sempre ao acaso.
Com o auxílio do diretor de arte Chris Foss e do técnico de efeitos especiais Don O’Bannon (ambos iriam trabalhar juntos em “Alien”), Jodorowsky produz o mais espetacular storyboard da história do cinema, que será levado para a avaliação dos maiores produtores hollywoodianos. O projeto é admirado mas considerado irrealizável e, lentamente, o sonho de Jodorowsky, que chegou a colocar o filho durante dois anos sob uma preparação intensiva de jiu-jitsu para participar do filme, evapora.
Anos depois, o projeto é absorvido pela filha de Dino de Laurentis e vira filme, dirigido por David Lynch. Jodorowsky, que só viu o filme por imposição do filho, apesar da admiração por Lynch confessa ter vibrado ao perceber que se tratava de um completo fracasso. Mas sua alma está para além de mesquinharias. Aos poucos, Jodorowsky começa a perceber que aquele seu storyboard reverbera. E “Jodorowsky’s Dune” mostra ao que veio ao comparar cenas concebidas pelo criador e seus pares em filmes como, acreditem!, ‘Guerra nas Estrelas”, “Flash Gordon” e até mesmo no recente “Prometheus”, de Ridley Scott.
Em sua visão holística do mundo, Jodorowsky, o mago da ambição, interpreta todo o processo não como um fracasso, mas como uma contingência do espírito criador que, entre tentativas e erros, sempre vence. Seu “Dune”, portanto, persiste.
(VII) PAIXÃO ARREBATADORA DE ‘A HISTÓRIA DE ADÈLE’ E VIAGEM SENTIMENTAL DE ‘NEBRASKA’ AREJAM UM FESTIVAL BANHADO EM SANGUE
Cannes enfim respira. Saem de cena os crânios despedaçados, braços decepados e vísceras à mostra dos filmes de violência gratuita, para dar vez a filmes que falem de algo um tanto relegado por aqui: a vida comum. Depois do despropositado banho de sangue de “Only God Forgives”, do superestimado Nicolas Winding Refn, vaiado na sessão de gala, "A Vida de Adèle – Capítulos 1 e 2”, e "Nebraska", de Alexander Payne, abriram alas para o “ordinary people” mostrar o seu valor.
Dirigido pelo francês Abdellatif Kechiche, “A Vida de Adèle” é uma destemida incursão na transição de uma adolescente à vida adulta através da descoberta da sexualidade. Adèle (Adèle Exarchopoulos, nadando de braçada para a Palma de Melhor Atriz) é um espelho da protagonista do romance “A Vida de Marianne”, de Marivaux, que ela lê em conjunto com os amigos de classe. Ingênua e solitária, vive uma vida comum, da escola para casa. Ainda sem saber se vai de meninos ou de meninas, percebe, como a personagem de Marivaux, num olhar-relâmpago o amor à primeira vista por Emma (Léa Seydou, ótima também), uma descolada estudante de artes plásticas que há muito já sabe o que quer.
A paixão entre as duas explode e Adèle passa por cima das manifestações de bullying para seguir o seu caminho, e o de Léa, claro. As cenas de amor entre as duas são de uma intensidade explícita, capazes de apagar de vez as pudícias risíveis de Michael Douglas e Matt Damon em “Behind the Candelabra”. A longa sequência entre as duas revela a maturidade de Kechiche em filmar cenas de sexo sem gratuidade. Na cama, os corpos de Adèle e Emma, para além da esfregação, mimetizam os nus de Egon Schiele, pintor austríaco fonte de inspiração para os trabalhos da própria Emma.
Cinematograficamente, “A Vida de Adèle”, no ano de exaltação do cinema francês em Cannes, apresenta um cineasta de pulso firme com admirável estilo visual próprio. “A Vida” é um filme de closes. Closes de beijos, closes de deglutições, closes de olhares, closes de bocas e de sexo. Há momentos em que o espectador pode até tentar espremer os cravos das atrizes, de tão próximos que estão seus rostos. É também um filme de ambiente, como as salas de aula de Adèle aluna e depois professora, os bares gays, os quartos, as passeatas e as mesas de jantar onde os franceses praticam seus esportes favoritos: comer e falar.
Filme de forte personalidade, “A História de Adèle” foi exibido ainda sem créditos, o que dá a impressão de que o que foi visto aqui não será o corte definitivo. Reforça a tese a longa duração, três horas, e um final muito aquém do que se espera deste filme que lembrou a Cannes porque é mais complexo mostrar cenas de sexo do que de violência.
“Nebraska”, de Alexander Payne, também tira a sua força de uma história de gente como a gente. Woody Grant (Bruce Dern, ótimo) é um velho aposentado que recebe um desses bilhetes promocionais que prometem milhões caso o sujeito faça assinatura de seus produtos. Alcóolico e senil, Woody interpreta que ganhou o milhão e espalha sua conquista para todos. Com pena do pai, o filho David (Will Grant) sustenta a ilusão e promete levá-lo até o centro da cidade, onde ele acredita que irá receber a grana. O percurso, que ganha a companhia da mãe desbocada (June Squibb, divertidíssima) e do irmão de David, permite à família realizar uma viagem sentimental e nostálgica, mas sem pieguice, ao passado.
Filmado em expressivo preto e branco, “Nebraska” é mais uma incursão de Payne pela América profunda, desta vez centrado no esgarçamento de uma sociedade em crise econômica, improdutiva, desconectada do passado e sem qualquer pretensão quanto ao futuro, como o personagem do filho David. Mais do que uma referência geográfica, Nebraska aqui é o nowhere espiritual em que transitam iludidos e descrentes. Sweet and sad.
(VI) DECADÊNCIA COM ELEGÂNCIA: SORRENTINO PARTE PARA A GLÓRIA E SODERBERGH PARA A APOSENTADORIA
A decadência esteve no ar de Cannes em dois filmes de cortes bem distintos: “La Grande Bellezza”, de Paolo Sorrentino, e “Behind the Candelabra”, de Steven Soderbergh. Ambos acompanham a trajetória de dois artistas, o fictício escritor Jep Gambardella e o conhecido virtuoso Liberace.
Interpretado pelo candidatíssimo à Palma de Ouro Toni Servillo, Gambardella ecoa o antológico jornalista Marcello Rubini, vivido por Marcello Mastroianni em “A Doce Vida”, de Federico Fellini. Numa Roma cercada de beleza e decadência, Gambardella é o entediado flâneur que testemunha a derrocada dos valores morais, espirituais e políticos em jantares, recepções e festas regadas a álcool e cocaína. À sombra de um livro bem-sucedido, afoga-se na impotência criativa. Em sua “amarga vida”, tudo existe, tudo é triste, tudo é enfado.
Para acompanhar a melancólica viagem existencial de Gambardella em busca da beleza perdida, Paolo Sorrentino, pela quinta vez batalhando a Palma de Ouro, fez uma opção ousada por uma abordagem subjetiva. O que se vê na tela descola do real e aproxima-se mais de uma tradução introspectiva da concepção de mundo de Gambardella, forjada à base dos clássicos da literatura e da música. É com ceticismo, mas não sem lirismo, que o protagonista amarga a decadência no compasso do bate-estaca das noitadas do high society.
Sorrentino sustenta com destemor a presunção do título a cada plano. Tudo é belo, tudo é grande, tudo é totalizante desde a sequência inicial, provavelmente a mais bela de todo o festival, em que um corte abrupto transfere o espectador de uma solar Roma clássica para o terraço das concorridas festas. Além de Fellini, Sorrentino cita a acidez do olhar sobre a burguesia do Antonioni de “A Noite” apoiando-se na fôrma estética do Visconti de “Ludwig”. Nada é vazio na grande noite de Gambardella, que discute a idealização do belo e a necessidade de um olhar sobre a fé genuína, aquela das beatas centenárias, e não a dos dogmas fossilizados da igreja. O prêmio ecumênico está no bolso. A Palma, pelo visto, a caminho.
Destino oposto segue o medíocre “Behind the Candelabra”, de Steven Soderbergh. Difícil entender o que motivou projeto tão bizarro, que entrega mais da visão de mundo dos produtores americanos do que da vida do pai de Elton John e avô de Lady Gaga. Inspirado na biografia de Scott Thorson, um dos amantes traídos do devorador de homens Liberace, o filme sucumbe a um olhar que se quer audacioso mas que escorrega nos próprios limites que se impõe para poupar o mainstream de maiores constrangimentos.
As cenas de amor entre Liberace (Michael Douglas, patético) e Scott (Matt Damon, esforçado) são de um ridículo atroz. Há sempre um mecanismo, seja corporal ou de explícita dissimulação, para esconder os beijos ou amenizar as cenas de sexo entre os dois. Quem mais sofre é o verdadeiro Liberace, que sai do filme sem que entendamos quais motivações o levaram a camuflar sua óbvia homossexualidade e, pior, qual teria sido a relevância de sua vida artística.
“Behind the Candelabra” é o que não pode ser, ou seja, Michael Douglas e Matt Damon fazendo-se de casal apaixonado. Quem salva a pele é Rob Lowe, numa encarnação perfeita de um cirurgião plastificado que vende aos dois a ilusão da eterna juventude, um bom tema que o filme propõe mas que como todo o resto se desfaz em purpurina. Soderbergh, que vem anunciando dramaticamente aos quatro ventos a aposentadoria, já pode preparar o pijama. Sem drama.
(V) PALESTINO, INDIANO E CAMBOJANO BOMBAM CANNES
A cada ano o tapete vermelho de Cannes se afirma como ponta de lança do multiculturalismo, ampliando as fronteiras que separam o etnocentrismo ocidental do restante do planeta. Este ano, mesmo com a presença ostensiva do cinema francês, a multiplicidade permanece. Para o bem de todos. A seguir, três exemplos: o palestino “Omar”, de Hany Abu-Assad (presente na mostra Un Certain Regard); o indiano “The Lunchbox”, de Ritesh Batra (Semana da Crítica) e o cambojano “The Missing Picture”, de Rithy Pahn (Un Certain Regard).
“Omar” é obra do mesmo diretor do combativo “Paradise Now” (2005), nomeado ao Oscar, que acompanhava os dilemas de dois amigos de infância convocados a se tornarem homens-bomba. O novo filme trata da vida do personagem-título, que numa Palestina ocupada se vira para furar bloqueios, encontrar seus amigos e uma paquera bem encaminhada. Mas para manter a rotina Omar precisa pular muros, desviar de balas e aguentar o esculacho bárbaro da polícia militar. A rotina de desrespeito alimenta o ódio do jovem e de seus amigos, que elaboram um atentado bem-sucedido mas que deixa como sequela a prisão de Omar. Brutalmente torturado, ele é chamado para colaborar com os invasores sob cruel tortura psicológica. A preço elevado, ganha tempo para pensar em liberdade. O que se segue é um jogo de intrigas dentro do núcleo palestino cujo desfecho comprova que estimular a paranoia na resistência pode ser tão eficaz quanto um tiro de fuzil.
“Omar” confirma um diretor maduro, de obra estimulante e em progresso. Aqui, mesmo diante do peso da trama, o desenvolvimento do roteiro permite tiradas arejadas de humor, que incluem citações a Marlon Brando e típicas traquinagens juvenis. A câmera adota um estilo moderno, ditado por travellings rítmicos, edição compacta e um uso vertiginoso do steadicam, principalmente nas cenas de perseguição claustrofóbicas nas ruelas palestinas que tanto remetem a nossas favelas. Recebeu aplausos entusiásticos e gritos de “bravo”. Com certeza, está na pauta do júri, do qual por sinal faz parte a brasileira Ilda Santiago.
Com vida promissora no mercado internacional, “The Lunchbox” pega pelo argumento irresistível. Às vésperas de se aposentar, um velho burocrata do estado leva sua vida medíocre como um relógio, até que um dia sua quentinha do almoço chega com um tempero diferente. Ele agradece com um bilhete que chega às mãos de uma entediada dona de casa, cuja marmita enviada ao marido diariamente fora trocada. Como o casamento vai mal e o marido já esqueceu do tempero da patroa, a troca não é desfeita e a narrativa epistolar entre o amanuense e a mal amada segue sem que eles nunca se encontrem.
Inevitável lembrar de “Nunca te Vi Sempre Amei”, na verdade “Charing Cross Road” (1987), com Anthony Hopkins e Anne Bancroft. Mas “The Lunchbox” tem sabor próprio e a pimenta do Subji são as observações periféricas do caos urbano desde a cena inicial, que mostra o processo inacreditável de entregas de quentinhas. O assunto, por sinal, alimenta a melhor tirada do filme, quando o entregador se indigna ao se informado de que houve uma troca: “Impossível, nosso sistema já foi estudado até por gente de Harvard”. Portanto, nem tão caótico assim.
Por fim, “The Missing Image” é um documentário (sim, há documentários em Cannes!) narrado em forma autobiográfica e com reflexões metalinguísticas. Criado sob o regime do Khmer Vermelho, Rithy Pahn, nascido em Phnon Penh, bombardeia de forma impiedosa, mas em tom sempre sereno, o regime de Pol Pot, ditador impiedoso que exterminou com a indústria do cinema e dentre as poucas vezes em que se preocupou com a captação de imagens do seu governo não gostou do resultado e mandou matar o câmera. O cineasta encontra uma solução lúdica para a carência de registro, reproduzindo em sets preciosos, e sem animação, cenários com bonecos de barro. Um pouco longo, às vezes muito cerebral, “The Missing Image” foi o filme político mais direto exibido até agora em Cannes. Curioso que há algumas décadas Godard e cia dificilmente deixariam um filme assim passar sequer pela alfândega. Mas os tempos mudaram. E hoje o vermelho que dita as regras é o do tapete, não o do Khmer.
(IV) VIOLÊNCIA EXPLODE EM FILMES CHINÊS, HOLANDÊS E ATÉ NA CROISETTE!
Fim de semana marcado pela violência fora e dentro das telas. Tiros alarmantes de estopim na Croisette, operação policial contra a prostituição e um assalto milionário de uma joalheria dividiram o noticiário com o dia-a-dia do mais importante Festival de Cinema do mundo, que se viu obrigado a reforçar a segurança da entrada do Palais e das salas de projeção, aumentando ainda mais o estresse de uma Cannes mega credenciada e chuvosa. A tensão das ruas ecoou em pelo menos dois filmes exibidos na competitiva: “A Touch of Sin”, do chinês Jia Zhangke, e “Borgman”, de Alex Van Warmerdam.
“A Touch of Sin” acrescenta uma dose pesada de violência à conhecida paleta humanista do mesmo diretor do potente “O Mundo”(2004). Seu olhar continua atento às inquietudes da China contemporânea, só que agora centrado no fenômeno cada vez mais constante das explosões de violência cotidianas, sejam no campo ou na cidade. O título, segundo o realizador, faz uma alusão ao filme tailandês “A Touch of Zen” de King Hu, o pai dos wuxia pian (filmes de artes marciais). Zhangke, que se encontra justamente terminando as filmagens de Qing Dinasty, um filme de artes marciais, rendeu-se ao estilo, que ele mesmo define como “mais selvagem e mais direto”, dos filmes de King Hu.
Dividido em quatro contos cruéis do mundo moderno, “A Touch of Sin” trava o tempo todo um diálogo entre a China atual e os rastros do seu passado, seja político, social ou ético. O caldeirão de misturas aquece os dramas de um sindicalista solitário que resolve suas reivindicações a bala, aliás, balas de um poderoso cano duplo; um matador profissional em crise familiar; uma recepcionista de sauna adúltera capaz de transformar em sabre uma simples faca e um empobrecido Werther da periferia.
A conexão entre as histórias não é óbvia. O que aproxima os personagens é a realidade opressiva de um país marcado pela injustiça trabalhista, pela corrupção, pelo desemprego, pela informalidade e por uma crise moral desprovida de esperança. E é nesse ambiente desolador que a violência prospera. As explosões de violência que tanto chocaram os espectadores por aqui, se vistas pelo prisma do irracionalismo e do desespero, até se justificam. Mas não conseguem apagar a impressão de que Jia Zhangke buscou um atalho fácil e, na maioria das vezes, gratuito para promover sua obra e atrair a atenção. O filme de artes marciais futuro promete mais.
Explosões de violência tampouco faltam no ambíguo “Borgman”, do diretor cujo sobrenome, para nós, vem como piada pronta: Warmerdann. O alvo aqui é o conformismo burguês da classe média alta holandesa. Um casal vê seu cotidiano se transformar aos poucos com a chegada de um estranho morador de rua recebidos a socos e pontapés pelo marido mas que consegue criar uma cumplicidade paralela com a esposa. Seus métodos de aproximação são bem particulares, seguindo rituais de assassinato e de ocultamento de corpos que, de tão esdrúxulos, arrancaram risadas de um público visivelmente desconcertado.
Reunindo uma seita de obscuros dogmas, Camiel Borgman (Jan Bijvoet), o protagonista, é um anjo (ou seria demônio?) exterminador do conformismo. Poupa as crianças, atraídas para o seu grupo de pessoas marcadas com cicatrizes cujo propósito é tão somente destruir o que lhe desagrada. Sem nada em seu lugar. Pouco tolerante, determinista e arbitrário. Assim é o mundo de Borgman. Prefiro Bergman.
(III) ULISSES, BRECHT E NIETZSCHE DANÇAM AO EMBALO DO FOLK DOS IRMÃOS COEN
O título acima pode sugerir que “Inside Llewyn Davis” é um amálgama de referências de citações literárias, teatrais e filosóficas. Nada disso. Quando no piloto da direção estão os irmãos Coen tudo pode vir junto e misturado com naturalidade e, melhor, um refinado tempero de humor.
A citação a Homero não é novidade. “E aí, meu irmão, Cadê Você?" (2000) tinha raízes fincadas na "Odisseia" de Ulisses, criativamente adaptada para os Estados Unidos dos anos 30. “Inside Lllewyn Davis" também é uma narrativa elíptica e a seu jeito épica. Mas o simbolismo da ambiência e o desenho hiper-realista dos personagens que o cercam aproximam o filme mais de abordagens espectrais, como “Barton Fink", Palma de Ouro em 1991, e “O Homem que Não Estava Lá" (2001).
O roteiro inspira-se na trajetória de Dave Van Ronk, lendário guitarrista folk que jamais obeve reconhecimento comercial, cujo repertório bebia na mesma fonte das raízes musicais em que bebeu Bob Dylan, por sinal lembrado em sutil citação quase no final do filme. Llewyn Davis (Oscar Isaac, forte concorrente a melhor ator) é o típico clochard brechtiano, um primo não muito distante do antológico big Lebowsky.
Desgarrado do establishment, vive sem dinheiro, dormindo em sofás alheios e batalhando pelo sucesso. Sua atitude, como a de Lebowsky, mescla cinismo explícito, disfarçada prepotência, mas sobretudo um humor derrisório e ferino. Seu simples olhar para o conformismo ao redor, seja musical ou comportamental, arranca risadas do espectador e reflete o espírito combativo dos 60. Quando sua irmã lhe pergunta por que não se contenta em ser como o pai, Llewyn responde: “Você acha que quero apenas “existir?’”. Típica tirada vintage sixties.
Entre números musicais e participações pontuais luxuosas, como as de Carey Mulligan, John Goodman (excepcional) e F. Murray Abraham, o filme segue sua saga homérica no ritmo das baladas. No descaminho de Llewyn podem aparecer caretas de plantão, mulheres libertárias, músicos viciados em heroína e um pai que oferece a grande cena do filme, em que fruição estética confunde-se com incontinência estomacal.
Embora não seja um filme arrebatador, “Inside Lllewyn Davis" cativa pela cumplicidade que estabelece com o espectador, rompendo qualquer distanciamento crítico entre o público e o anti-herói. O grande achado é a narrativa elíptica, cujo desfecho está aberto a interpretações. A chave, no entanto, parece levar ao mito do eterno retorno nietzscheano. Muitas vezes a vida aparenta dar voltas no mesmo lugar. Mas é apenas aparência. Que o digam aqueles que dificilmente se repetem, como os irmãos Coen.
(II) IRANIANO DECEPCIONA E JAPONÊS EMOCIONA EM FILMES SOBRE DISTINTAS SEPARAÇÕES
Um dos mais esperados filmes do 66o Festival de Cannes, "O Passado (Le Passé)", de Asghar Farhadi, não conseguiu esquentar uma Cannes chuvosa, fria e estressada. Farhadi tornou-se diretor cultuado depois do êxito de "Procurando Elly" (2009) e "A Separação (2011)", ambos vencedores do Urso de Ouro em Berlim. "A Separação" venceu ainda o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Natural, portanto, que as portas do mundo se abrissem para Farhadi.
Realizador de uma obra poderosa em sua terra natal, da qual os filmes supracitados são apenas expoentes, Farhardi vasculhou como poucos os conflitos éticos, morais, matrimoniais, filosóficos e até cartoriais de seu país de conturbada natureza política e impositiva resistência cultural. "O Passado" é seu primeiro filme realizado fora do Irã, mas nem por isso desapegado de seus temas mais caros.
Difícil não vê-lo como uma espécie de "A Separação 2". Depois de quatro anos de separação, Ahmad (Ali Mosaffa) viaja de Teerã a Paris para finalmente conceder o divórcio a Marie (Bérénice Bejo), sua esposa francesa. O que encontra pela frente é uma realidade pouco acolhedora. Marie está no terceiro relacionamento e acumulou mais dois filhos, além de Lucie (Pauline Burlet), sua filha com Ahmad. No final da adolescência, Lucie vive uma crise por não aceitar os amantes da mãe, sobretudo o último, Samir (Tahar Raim), cuja esposa se encontra em coma após uma tentativa frustrada de suicídio.
As razões que envolvem a ação suicida ocupam grande parte das discussões de "O Passado", revolvendo remorsos, amarguras, frustrações e atos impensados de amor declarado e ódio recalcado. Há muito diálogo e muita reflexão sobre o peso da verdade e a difícil superação do passado, fonte do saber e dos tabus que atormentam os personagens. A impressão é que Farhadi não conseguiu desatar com segurança o nó da trama, repetindo-se à exaustão e partindo para uma improvável apelação emotiva na cena final. Que volte logo a Teerã. Paris lhe aculturou. Reduziu a energia do seu cinema às palavras, no pior estilo bavare.
"Tal Pai Tal Filho", terceiro filme em Cannes do sempre pertinente Hirokazu Koreeda, também trata de separação, no caso uma separação bastante inusitada. Ryota (Masaharu Fukuyama) é um bem-sucedido executivo japonês. Vive confortavelmente com sua esposa e o filho de sete anos um modelo ideal de vida burguesa. A aparente felicidade desaba quando eles recebem a notícia de que o filho fora trocado na maternidade de uma província (escolhida por ter sido a mesma em que a mulher de Ryota nasceu) e que a justiça determina que, agora, ele seja retrocado entre as famílias.
A revelação abre uma fenda nos conceitos concretos do arrogante Ryota, principalmente quando ele conhece a família do seu verdadeiro filho, composta por um casal de classe média baixa que vive às custas de um armazém de peças eletrônicas. Com a sutileza peculiar a seus filmes anteriores, Como “Ninguém Pode Saber” e "O Que Eu Mais Desejo", o cineasta consegue infiltrar o espectador nos hábitos mais íntimos da sociedade japonesa contemporânea. O choque cultural e econômico entre as famílias é apresentado sem grandes evidências, através de códigos de conduta mínimos, que podem se revelar na postura, nos gestos ou nos jogos comuns entre adultos e crianças.
Bem estruturado, "Tal Pai Tal Filho" estremece as convicções sobre os laços de sangue, o caráter de personalidade e até mesmo do livre-arbítrio infantil. Por sinal, são as crianças, em seu movimento natural, que dão a melhor resposta às angústias do falso onipotente Ryota. Na sala do Grand Théâtre Lumière teve gente que chorou. Não sei não, drama familiar contemporâneo, crianças, lágrimas contidas, Spielberg na presidência do júri... "Tal Pai Tal Filho" está no páreo.
(I) DISSOLUÇÃO FAMILIAR FRANCESA E NOVA MÁFIA DE PALERMO NA ABERTURA DA SEMANA DA CRÍTICA EM CANNES
França e Itália abriram a 52a Semana da Crítica do Festival de Cannes com dois filmes distintos no gênero mas próximos na propagação da imagem de uma Europa dispersa, solitária e carente. “Suzanne”, de Katel Quillevere, descreve com naturalismo convencional o lento processo de desagregação de uma família de baixa classe média. Nicolas (François Damiens) é o pai das jovens Maria (Adele Haenel) e Suzanne (Sara Forestier). Viúvo, o humilde caminhoneiro lida com dificuldade usual a divisão entre o asfalto e a vida doméstica, acompanhando com aflita atenção o crescimento das meninas, de personalidades bem diferentes.
Maria, a mais velha, é centrada trabalhadora e conformada; Suzanne, por sua vez, segue descolada, seduzida pelos chamados do “amour fou”. A previsibilidade de suas vidas só é interrompida pela brutal intervenção do acaso. Enquanto Maria curte a solitude, Suzanne derrama paixão, engravida precocemente e se perde na lábia de um larápio.
De narrativa convencional, “Suzanne” manipula bem as elipses e a trama segura a atenção do espectador ao longo das três décadas de história. O acompanhamento da dissolução familiar não se permite rompantes emocionais e tudo, até a vida na prisão, passa naturalidade e amoralismo. Nossos dramaturgos de novela não aprovariam.
“Salvo”, por outro lado, apesar da radical mudança de gênero, também foca no abandono, físico e espiritual. Filme de estreia co-dirigido por Fabio Grassadonia e Antonio Piazza, concorre também ao prêmio Camera D’Or. Seu alvo é a nova máfia de Palermo, desglamurizada, embrutecida, mas aferrada às velhas regras de vingança. O início chega a ser promissor, com uma sequência de tiros hiperrealista, no melhor estilo José Padilha. A promessa melhora quando o protagonista, Salvo (Saleh Bakri), chega à casa de um chefe de quadrilha adversária e encontra Rita (Sara Serraiocco), jovem cega irmã do chefão. A tensão entre os dois é transmitida por uma câmera ansiosa por captar ações e reações do onipresente Salvo e da frágil Rita.
Mas o caldo esfria a partir do momento em que, inexplicavelmente, Rita passa a enxergar e desenvolver a síndrome de Estocolmo com seu carrasco. O retorno da visão rende algumas inventivas intervenções cinéticas, sobretudo com o uso da câmera subjetiva. Mas dura pouco. A criatividade é suplantada por uma relação improvável e pouco estimulante. Por ser primeiro filme, pode levar a Camera D’Or. E só. Em seu começo, a Semana da Crítica ficou assim: na promessa.